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Liberdade, Conectividade e Precariedade. Breves Apontamentos Teóricos Sobre a Uberização da Economia, Essays (university) of Geography

Liberdade, Conectividade e Precariedade. Breves Apontamentos Teóricos Sobre a Uberização da Economia

Typology: Essays (university)

2019/2020

Uploaded on 04/28/2020

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temas de economia aplicada
24 temas de economia aplicada
outubro de 2016
Liberdade, Conectividade e Precariedade: Breves Apontamen-
tos Teóricos Sobre a Uberização da Economia
Julio Lucchesi Moraes (*)
1 Introdução
O presente artigo dá sequência à série de reflexões
sobre as principais inflexões na Economia Europeia
por efeito do avanço da pauta digital. A proposta é
seguir dentro de um recorte concomitantemente te-
mático e geográfico. Tomando por locus analítico o
contexto francês, nossas atenções se centrarão desta
vez na problematização da Uberização da Economia.
Compreender os efeitos de tal fenômeno envolve ir
além da análise do impacto das caronas remuneradas
vinculadas ao aplicativo da multinacional norte-ame-
ricana. De fato, o modelo de negócios de intermediação
(ou, mais acert adamente, de desintermediação) de ser-
viços proposto pelo Uber abre portas para um amplo
debate econômico, social e político. Nesse contexto,
embora a França compartilhe com outras localidades
do globo atritos e resistências em relação ao cresci-
mento desse gênero de atividade, no país se encon-
tram particularidades adicionais que possibilitam
uma reflexão mais acurada da temática aqui proposta.
2 Uberização: do Mainstream ao Reformismo
Em janeiro de 2016, sindicatos de taxistas fecharam
os acessos viários a aeroportos e estações de trem de
Paris em oposição ao que consideraram concorrência
desleal de motorist as vinculados ao Uber. No ano ante-
rior, a prefeitura da cidade iniciou a cobrança de uma
taxa incidente sobre o serviço de compartilhamento
de imóveis disponibilizado pela plataforma AirBnB.
Também neste ano, Ted Sarandos, uma das mais altas
figuras do Netflix, foi protagonista de um debate no
célebre festival de cinema de Cannes. O executivo foi
questionado sobre os impactos que a empresa estaria
causando no ecossistema audiovisual europeu, uma
vez que o serviço de streaming não estaria sujeito
à mesma tributação que canais de televisão, contri-
buindo numa proporção reduzida para o subsídio da
produção local.
Embora aparentemente desconectados, os três even-
tos podem ser unificados em uma chave analítica
comum. A “Economia de Plataforma”, a “Segunda Onda
Digital” ou o “Capitalismo Digital” são alguns dos
termos mobilizados para descrever o atual momento
da História Econômica Global. Se essas terminologias
tentam abarcar num guarda-chuva teórico unificado
uma vasta gama de fenômenos, um segundo esforço
analítico envolve a identificação de grupos e empre-
sas “modelo” no atual panorama de mutações socio-
econômicas derivadas do incremento do substrato
digital. Bruno Teboul, professor da Universidade de
Paris-Dauphine e membro da Cadeira de Data Science
da École Polytechnique mobiliza alguns convenientes
acrônimos, como o grupo dos GAFA (Google, Amazon,
Facebook e Apple) ou dos NATU (NetFlix, Air BnB,
Tesla e Uber):
Com o advento da internet, das redes sociais e das tec-
nologias mobile, atores econômicos que eram jovens
há apenas uma década tornaram-se gigantes globais
digitais: Google, Amazon, Facebook, Apple, os chamados
“GAFA. Seu sucesso é refletido por um valor de mercado
astronômico, um número estonteante de usuários, uma
notoriedade universal. A hegemonia de tais grupos, con-
tudo, levanta questões quanto a sua visão de mundo, bem
como seus objetivos sociais. Podemos usar expressões
como “Googleização do Mundo”, “Economia dos GAFA” ou
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Liberdade, Conectividade e Precariedade: Breves Apontamen-

tos Teóricos Sobre a Uberização da Economia

Julio Lucchesi Moraes (*)

1 Introdução

O presente artigo dá sequência à série de reflexões sobre as principais inflexões na Economia Europeia por efeito do avanço da pauta digital. A proposta é seguir dentro de um recorte concomitantemente te- mático e geográfico. Tomando por locus analítico o contexto francês, nossas atenções se centrarão desta vez na problematização da Uberização da Economia.

Compreender os efeitos de tal fenômeno envolve ir além da análise do impacto das caronas remuneradas vinculadas ao aplicativo da multinacional norte-ame- ricana. De fato, o modelo de negócios de intermediação (ou, mais acertadamente, de desintermediação) de ser- viços proposto pelo Uber abre portas para um amplo debate econômico, social e político. Nesse contexto, embora a França compartilhe com outras localidades do globo atritos e resistências em relação ao cresci - mento desse gênero de atividade, no país se encon - tram particularidades adicionais que possibilitam uma reflexão mais acurada da temática aqui proposta.

2 Uberização: do Mainstream ao Reformismo

Em janeiro de 2016, sindicatos de taxistas fecharam os acessos viários a aeroportos e estações de trem de Paris em oposição ao que consideraram concorrência desleal de motoristas vinculados ao Uber. No ano ante- rior, a prefeitura da cidade iniciou a cobrança de uma taxa incidente sobre o serviço de compartilhamento de imóveis disponibilizado pela plataforma AirBnB. Também neste ano, Ted Sarandos, uma das mais altas figuras do Netflix, foi protagonista de um debate no célebre festival de cinema de Cannes. O executivo foi

questionado sobre os impactos que a empresa estaria causando no ecossistema audiovisual europeu, uma vez que o serviço de streaming não estaria sujeito à mesma tributação que canais de televisão, contri - buindo numa proporção reduzida para o subsídio da produção local.

Embora aparentemente desconectados, os três even- tos podem ser unificados em uma chave analítica comum. A “Economia de Plataforma”, a “Segunda Onda Digital” ou o “Capitalismo Digital” são alguns dos termos mobilizados para descrever o atual momento da História Econômica Global. Se essas terminologias tentam abarcar num guarda-chuva teórico unificado uma vasta gama de fenômenos, um segundo esforço analítico envolve a identificação de grupos e empre- sas “modelo” no atual panorama de mutações socio - econômicas derivadas do incremento do substrato digital. Bruno Teboul, professor da Universidade de Paris-Dauphine e membro da Cadeira de Data Science da École Polytechnique mobiliza alguns convenientes acrônimos, como o grupo dos GAFA (Google, Amazon, Facebook e Apple) ou dos NATU (NetFlix, Air BnB, Tesla e Uber):

Com o advento da internet, das redes sociais e das tec- nologias mobile, atores econômicos que eram jovens há apenas uma década tornaram-se gigantes globais digitais: Google, Amazon, Facebook, Apple, os chamados “GAFA”. Seu sucesso é refletido por um valor de mercado astronômico, um número estonteante de usuários, uma notoriedade universal. A hegemonia de tais grupos, con- tudo, levanta questões quanto a sua visão de mundo, bem como seus objetivos sociais. Podemos usar expressões como “Googleização do Mundo”, “Economia dos GAFA” ou

“Gafanomics”, tamanha a influência e o impacto cultural que tais em- presas nos impuseram nos últimos dez anos. Recentemente, estamos lidando com a emergência de um novo turbilhão digital, instigado por inovações revolucionárias com efeitos devastadores sobre a Econo- mia Tradicional, um fenômeno que se tornou conhecido pela expressão “Uberização” [da Economia]. […] Empresas como Uber, AirBnB, Lyft ou TaskRabbit são construídas sobre plataformas de contato di- reto entre prestadores de serviços (profissionais ou indivíduos) e consumidores (os chamados “cir- cuitos curtos”) a partir de conexões imateriais de ponta a ponta (geor- referenciamento em tempo real, meios de pagamento, avaliações, classificações etc.) (2016, p.4, tra- dução própria).

Mais do que uma camisa de força analítica, devemos ver nesse tipo de simplificação uma porta de en- trada para discussões econômicas ampliadas. De fato, diante de um fenômeno de elevada envergadura, a proposição de qualquer termo ou conceito generalizador é tentadora, porém complexa. O que o presente artigo ambiciona, assim, é a pro - blematização de certos aspectos- -chave do contexto socioeconômico francês, aí enxergando caracterís- ticas paradigmáticas da “Economia Tradicional” esquadrinhada por autores com Teboul e suposta - mente ameaçadas pelo avanço da nova voga digital. Sob o termo “Uberização”, portanto, estaremos

nos referindo a uma série de des - continuidades desestabilizadoras cujos impactos podem ser analisa- dos sob os mais diversos prismas analíticos.

Um primeiro ponto nev rálgico nas análises da Uberização da Economia (francesa, mas também mundial) ocorre a partir de uma polarização entre grandes conglo- merados versus pequeno produtor/ prestador de serviço, modelo de negócios digital versus analógico e, em muitos casos, grupos inter - nacionais versus atores locais. 1 O componente digital das GAFA ou das NATU gera ganhos de escala – no mais das vezes, internacionais

  • inacessíveis a grupos tradicionais locais, usualmente limitados aos espaços (físicos, simbólicos, insti- tucionais, regulatórios etc.) de seus mercados regionais. Não seria des- cabido pensar, nesse sentido, que dentro dessa primeira conceptuali- zação a problemática da nova voga digital figuraria como um capítulo adicional nos manuais de Micro ou Macroeconomia. A Uberização e os desafios dela resultantes poderiam ser encarados com o ferramental analítico tradicional.

Em oposição a esta visão continu- ísta, uma segunda abordagem – a qual poderíamos nomear reformis- ta ou institucional – reconhece uma descontinuidade qualitativa advinda da Economia Digital. O cerne (tanto político quanto teóri- co) da dinâmica econômica, contu- do, seguiria inalterado em relação

ao arcabouço ortodoxo. Certas par- ticularidades ou variações locais exigiriam a proposição de ajustes, tanto no plano conceitual quanto no desenho de políticas.

Dentro dessa abordagem, a Econo- mia de Plataforma ou a Economia Digital, por exemplo, poderiam ser conceptualizadas como ver - sões aprimoradas da Economia do Conhecimento ou da Economia de Redes. Embora distinto em termos de escala e volume de negócios, o universo digital poderia ser visto como uma extensão do universo analógico. Justifica-se, sob tal abor- dagem, uma série de políticas de salvaguarda das particularidades socioeconômicas francesas 2 cujo cerne seria a proteção do peque - no produtor local, supostamente prejudicado por uma competição desleal.

A regulação da atividade econô - mica das empresas GAFA ou NATU poderia se posicionar, nesse senti- do, na esteira de debates jurídicos e regulatórios já existentes, como o da proteção do pequeno comércio especializado versus grandes con- glomerados generalistas ou ainda a justificativa de salvaguarda dos setores culturais, garantida pela célebre cláusula da Exceção Cul - tural (posteriormente substituída pelo conceito de Diversidade Cul- tural), constantemente defendida pela França quando da assinatura de tratados e acordos comerciais internacionais.

Gráfico 1 – Volume do Emprego por Ocupação e Probabilidade de Automatização

Fonte: Adaptado de Bowles (2014).

Sob a luz de tais números, a Ube - rização da Economia precisa ser vista para além de uma simples (e inofensiva) inflexão no desenho de modelos de negócios: antevê-se aqui uma alteração efetivamente estrutural. Se for aceita a hipótese de que a lógica da Uberização é, de fato, tão disruptiva quanto que - rem crer certas leituras, não seria descabido propor que t ambém o ferramental teórico e político (ortodoxo) é, também ele, inapro- priado (ou obsoleto) para a plena compreensão do fenômeno e de suas implicações.

Diante de tal situação, é interes - sante perceber que também den- tro das correntes heterodoxas a temática da Uberização da Econo-

mia vem ganhando centralidade. Novamente, a escolha da França como país-modelo para tais análi- ses parece ser fortuita, haja vista a elevada concentração de autores e escolas de pensamentos dedi - cadas à compreensão justamente desse tipo de fenômeno. Ballon et al. (2016), por exemplo, propõem uma interessante linha argumen- tativa conectando a Uberização da Economia à Teoria da Regulação. 4

Se a leitura regulacionista discute a (in)existência de novos mecanis- mos estabilizadores da ordem capi- talista em tempos de digitalização ubíqua, outras leituras marxis - tas chegam a propor a existência mesmo de uma nova fase do modo de produção. Nesse veio de refle -

xões, podemos enquadrar a proble- mática da uberização da Economia dentro de conceitos como o de Hipercapitalismo, Capitalismo al- gorítmico ou ainda o Capitalismo cognitivo. As hipóteses de traba - lho de autores como Lipovetsky e Serroy (2011), Boutang (2007) ou Bernard Stiegler 5 implicam alte- rações que implodem as barreiras entre as distintas Ciências Huma- nas. Variáveis do universo econô- mico como produção, trabalho ou consumo ganham em tais leituras uma dimensão filosófica, ontoló- gica. Longe de figurar como uma evasão abstrata, evidencia-se aqui a urgência de repensar termos e conceitos desde suas origens. Vol- taremos a este tema nos próximos artigos da presente série.

Referências

BALLON, Justine et al. La Régulation contre- attaque : quatre doctorantes face aux héritages de la théorie de la regulation. Revue de la Régulation, 19, 2016. Dis - ponível em: <http://regulation.revues. org/11919>. Acesso em: 7 out. 2016.

BOUTANG, Yann Moulier. Le capitalisme cog- nitif. La nouvelle grande transformation. Paris: Éditions Amsterdam, 2007.

BOWLES, Jeremy Bowles. The computerisa- tion of European jobs. Brussels: Bruegel Institute, 24 Jul., 2014.

LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo : resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

READ, Jason. The politics of transindividuality. Leiden: Brill, 2015.

T E B O U L , B r u n o. L’ U b e r i s a t i o n , l’automatisation... Le travail, les emplois de la seconde vague du numérique. Big Data et Emploi: Seminaire en Economie. Compiègne, France, jan. 2016.

WORLD ECONOMIC FORUM [WEF]. The future of jobs : employment, skills and workforce strategy for the fourth indus- trial revolution. Genebra: WEF, 2016. Dis- ponível em: <http://www3.weforum.org/

docs/WEF_FOJ_Executive_Summary_Jobs. pdf>. Acesso em: 4 out. 2016.

1 Particularmente ilustrativa nesse sentido foi uma polêmica declaração de Alexandre Bompard, Presidente-Diretor Geral da FNAC que solicitava o abrandamento da legislação trabalhista francesa, alegando que a concor- rente Amazon realizava 25% de seus lucros no domingo. 2 Evita-se aqui a mobilização do termo “prote- cionismo”, entendendo que o conceito pode ser limitador e, em muitos casos, até mesmo pejorativo. 3 Voltaremos a abordar essa temática em artigo futuro da presente série, entendendo em que medida a própria conceptualização do “setor de serviços” precisa ser repensada no âmbito da Economia Digital. 4 “Nosso trabalho se inscreve na passagem de um modo de acumulação intensiva para um modo de acumulação extensiva, onde conceito de crise desempenha um papel ambíguo, sendo por vezes crise endógena, índice de uma crise subjacente e constante- mente adiada do modo de regulação, mas também como modo de funcionamento ‘nor- mal’ baseado na transformação radical de setores e de territórios. Essas permanentes e incessantes convulsões fazem necessária a

adição, à Teoria da Regulação (TR), de uma teoria da transformação […]. A TR sempre se interessou nas dinâmicas, concebidas origi- nalmente como endógenas por natureza e como elementos não impactantes na longa duração. Contudo, os novos objetos sobre os quais nos aproximamos da TR são mais dinâmicos, uma vez que se inverte o foco, ini- ciando a análise antes pelas lógicas disrup- tivas do que pelas contradições dinâmicas de formas institucionais e crises endógenas. Aos “–ismos”, Fordismo, Taylorismo, Toyotis- mo, sucedem-se as “–ações”: hibridização, globalização, europeização, regionalização e, mais recentemente, a uberização. […] [Temos aí] processos disruptivos, difusos e poliformes aos setores e aos territórios” (BALLON et al ., 2016, tradução própria). 5 Ver, sobre o tema, Read (2015). Obviamente, podemos destacar autores de outros países que também abordam a temática. Além do próprio Jason Read, mencionado acima, podemos destacar a figura de Trebor Scholz, dentre tantos outros.

(*)Graduado em Ciências Econômicas e dou- tor em História Econômica pela USP. Pes- quisador do Geopolitical Economy Research Group (GERG), da Universidade de Manitoba, Canadá. Trabalha com temas ligados a Eco- nomia Digital e Economia Criativa. (E-mail: julio.moraes@usp.br).