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O pensamento mítico e o bricolage, Cheat Sheet of Law

Uma análise comparativa entre o pensamento mítico e o bricolage, explorando as semelhanças e diferenças entre essas duas formas de atividade. O autor discute como o pensamento mítico, assim como o bricolage no plano prático, elabora conjuntos estruturados utilizando resíduos e fragmentos de acontecimentos, em contraste com a ciência, que busca antecipar e obter novas mensagens. Além disso, o texto aborda a posição intermediária da arte entre o pensamento mítico e a ciência, destacando como a criação artística pode combinar aspectos estruturais e acontecimentais. O documento também estabelece paralelos entre o jogo e o rito, mostrando como ambos se relacionam de maneira semelhante à ciência e ao bricolage. Essa análise comparativa oferece insights sobre as diferentes formas de pensamento e atividade humana, explorando suas semelhanças, diferenças e interações.

Typology: Cheat Sheet

2023/2024

Uploaded on 08/02/2024

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A ciência do concreto
[capítulo I de “O Pensamento Selvagem”]
CLAUDE LÉVI-STRAUSS
Aprouve-nos, durante muito tempo, mencionar línguas a que faltam termos
para exprimir conceitos, tais como os de árvore ou animal, se bem que elas
possuam todas as palavras necessárias a um inventário minucioso de espécies
e de variedades. Mas, invocando esses casos em favor de uma suposta
inaptidão dos "primitivos" ao pensamento abstrato, omitíamos, então, outros
exemplos, que atestam que a riqueza em palavras abstratas não é só apanágio
das línguas civilizadas. Assim o chinuque, língua do noroeste da América do
Norte, faz uso de palavras abstratas para designar muitas propriedades ou
qualidades dos seres e das coisas. "Este procedimento", diz Boas, "é nela mais
freqüente do que em qualquer outra língua que eu conheça". A sentença: o
homem mau matou a pobre criança, traduz-se assim em chinuque: a maldade
do homem matou a pobreza da criança; e para dizer que uma mulher usa um
cesto demasiadamente pequeno: ela coloca raízes de potentilha na pequenez
de um cesto para conchas. (Boas 2, pp. 657-658.)
Em todas as línguas, aliás, o discurso e a sintaxe fornecem os recursos
indispensáveis para suprir as lacunas do vocabulário. E o caráter tendencioso
do argumento, evocado no parágrafo anterior, é bem posto em evidência
quando se nota que a situação inversa, isto é, aquela em que os termos muito
gerais prevalecem sobre as denominações específicas, foi também explorada
para afirmar a indigência intelectual dos selvagens:
"Dentre as plantas e os animais, o índio só dá nome às espécies úteis
ou nocivas; as outras são classificadas, indistintamente, como ave,
erva daninha, etc." (Krause, p. 104.).
Um observador mais recente parece igualmente acreditar que o índio
denomina e conceitua somente em função de suas necessidades.
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A ciência do concreto

[capítulo I de “O Pensamento Selvagem”]

CLAUDE LÉVI-STRAUSS

Aprouve-nos, durante muito tempo, mencionar línguas a que faltam termos para exprimir conceitos, tais como os de árvore ou animal, se bem que elas possuam todas as palavras necessárias a um inventário minucioso de espécies e de variedades. Mas, invocando esses casos em favor de uma suposta inaptidão dos "primitivos" ao pensamento abstrato, omitíamos, então, outros exemplos, que atestam que a riqueza em palavras abstratas não é só apanágio das línguas civilizadas. Assim o chinuque, língua do noroeste da América do Norte, faz uso de palavras abstratas para designar muitas propriedades ou qualidades dos seres e das coisas. "Este procedimento", diz Boas, "é nela mais freqüente do que em qualquer outra língua que eu conheça". A sentença: o homem mau matou a pobre criança, traduz-se assim em chinuque: a maldade do homem matou a pobreza da criança; e para dizer que uma mulher usa um cesto demasiadamente pequeno: ela coloca raízes de potentilha na pequenez de um cesto para conchas. (Boas 2, pp. 657-658.)

Em todas as línguas, aliás, o discurso e a sintaxe fornecem os recursos indispensáveis para suprir as lacunas do vocabulário. E o caráter tendencioso do argumento, evocado no parágrafo anterior, é bem posto em evidência quando se nota que a situação inversa, isto é, aquela em que os termos muito gerais prevalecem sobre as denominações específicas, foi também explorada para afirmar a indigência intelectual dos selvagens:

"Dentre as plantas e os animais, o índio só dá nome às espécies úteis ou nocivas; as outras são classificadas, indistintamente, como ave, erva daninha, etc." (Krause, p. 104.). Um observador mais recente parece igualmente acreditar que o índio denomina e conceitua somente em função de suas necessidades.

"Lembro-me ainda da hilaridade provocada, entre meus amigos das ilhas Marquesas (...) pelo interesse (a seus olhos, pura tolice) demonstrado pelo botânico de nossa expedição de 1921, em relação às "ervas daninhas" sem nome ("sem utilidade"), que ele colhia e queria saber como se chamavam." (Handy e Pukui, p. 119, n.° 21.) Entretanto, Handy compara essa indiferença à que, em nossa civilização, manifesta o especialista em relação aos fenômenos que não dizem respeito, imediatamente, a seu campo de ação. E quando sua colaboradora indígena acentua que no Havaí "cada forma botânica, zoológica ou inorgânica que se sabia ter sido denominada (e personalizada) era... uma coisa utilizada", ela tem o cuidado de acrescentar: "de uma forma ou de outra" e precisa que se "uma variedade ilimitada de seres viventes do mar e da floresta, de fenômenos meteorológicos ou marinhos não tivessem nome" a razão seria não serem julgados "úteis, ou... dignos de interesse", termos não equivalentes, visto como um se situa no plano prático e o outro no plano teórico. A continuação do texto o confirma, reforçando o segundo aspecto em detrimento do primeiro: "A vida era a experiência investida de exata e precisa significação"(id., p. 119).

Na verdade, a triagem conceptual varia conforme a língua, e, como observava muito bem, no século XVIII, o redator da palavra "nome" na Enciclopédia, o uso de termos mais ou menos abstratos não é função de capacidades intelectuais, mas de interesses desigualmente marcados e detalhados de cada sociedade particular, dentro da sociedade nacional: "Subi ao observatório; cada estrela não é mais, ali, apenas uma estrela; é a estrela b do Capricórnio, é a estrela g do Centauro, é a estrela z da Grande Ursa, etc.; entrai num picadeiro, ali cada cavalo tem seu nome próprio, o "Brilhante", o "Duende”, o "Fogoso", etc." Aliás, mesmo se a observação sobre as línguas ditas primitivas, evocada no principio deste capítulo, devesse ser tomada ao pé da letra, não se lhes poderia imputar ausência de idéias gerais: as palavras carvalho, faia, bétula, etc, não são menos abstratas que a palavra árvore e, de duas línguas, das quais uma possuísse somente este último termo, enquanto que a outra, ignorando-o, dispusesse de várias dezenas ou centenas destinadas às espécies e às variedades, seria a segunda e não a primeira, sob este ponto de vista, a mais rica em conceitos.

"As faculdades aguçadas dos indígenas lhes permitiam notar exatamente os caracteres genéricos de todas as espécies vivas, terrestres e marinhas, assim como mudanças as mais sutis de fenômenos naturais, tais como os ventos, a luz e as cores do tempo, as ondulações ligeiras das vagas, as variações da ressaca, as correntes aquáticas e aéreas. (Handy e Pukui, p. 119.) Um uso tão primário como a mastigação de bétel pressupõe nos hanunoo das Filipinas, o conhecimento de quatro variedades de nozes de areca e de oito produtos que as substituem, de cinco variedades de bétel e de cinco produtos de substituição ( Conklin 3 ):

"Todas, ou quase todas, as atividades dos hanunoo exigem uma íntima familiaridade com a flora local e um conhecimento preciso das classificações botânicas. Contrariamente à opinião segundo a qual as sociedades que vivem em economia de subsistência só utilizariam uma pequena fração da flora local, esta última é utilizada numa proporção de 93%." (Conklin I, p. 249.) Isto não é menos verdadeiro no que concerne à fauna. "Os hanunoo classificam as formas locais da fauna de aves em 75 categorias (...) distinguem cerca de 12 espécies de cobras (...) 60 tipos de peixes (...) mais de uma dúzia de crustáceos do mar e da água doce e outros tantos tipos de aranhas e miriápodes (...) Os milhares de formas de insetos estão agrupados em 108 categorias designadas por nomes, das quais 13 para as formigas e as térmites. Identificam mais de 60 classes de moluscos marinhos e mais de 25 moluscos terrestres e de água doce (...) 4 tipos de sanguessugas sugadoras de sangue (...)”: total, 461 tipos zoológicos recenseados ( id., pp.67-70)

A respeito de uma população das Filipinas, um biólogo assim se exprime:

"Um traço característico dos negritos, que os distingue de seus vizinhos cristãos das planícies, consiste em seu conhecimento inesgotável dos reinos vegetal e animal. Este saber não requer somente a identificação

específica de um número fenomenal de plantas, de aves, de mamíferos e de insetos, mas, também, o conhecimento dos hábitos e dos costumes de cada espécie (...).

"O negrito está completamente integrado em seu meio e, coisa ainda mais importante, estuda sem cessar tudo que o cerca. Muitas vezes, vi um deles, incerto sobre a identidade de uma planta, provar o fruto, cheirar as folhas, quebrar e examinar uma haste, observar o habitat. E é somente depois de verificar todos esses dados, que declarará conhecer ou não a planta em questão."

Depois de haver demonstrado que os indígenas se interessam também pelas plantas que não lhes são diretamente úteis, por causa das relações de significação que os ligam aos animais e aos insetos, o mesmo autor prossegue;

"O sentido agudo de observação dos pigmeus, sua consciência plena das relações entre a vida vegetal e a vida animal (...) são ilustrados de forma surpreendente por suas discussões sobre os costumes dos morcegos. O tididin vive sobre as folhagens secas das palmeiras, o dikidik, sob as folhas da bananeira selvagem, o litlit, nos bambuzais, o kolumboy, nas cavidades dos troncos de árvores, o konanabá, nos bosques espessos, e assim por diante.

"Desta forma os negritos pinatubo conhecem e distinguem os costumes de 15 espécies de morcegos. E não é menos verdadeiro que a sua classificação de morcegos, como a dos insetos, aves, mamíferos, peixes e plantas, baseia-se, principalmente, nas semelhanças e nas diferenças físicas.

"Quase todos os homens enumeram, com a maior facilidade, os nomes específicos e descritivos de, pelo menos, 450 plantas, 75 aves, de quase todas as cobras, peixes, insetos e mamíferos e, mesmo, de 20 espécies de formigas (...) 1 e a ciência botânica dos mananambal, feiticeiros-curandeiros de um e outro sexos, que utilizam constantemente plantas em sua arte, é simplesmente assombrosa." (R. B. Fox, pp. 187- 188.)

visíveis e, entre os brancos, um indivíduo sem treinamento seria incapaz de as distinguir (...). Realmente, nada impediria a tradução em tewa de um tratado de botânica." (Robbins, Harrington e Freire-Marreco, pp. 9, 12.)

Numa narração pouco romanceada, E. Smith Bowen chistosamente contou sua contusão quando, ao chegar a uma tribo africana, quis começar por aprender a língua: seus informantes acharam muito natural, no estágio elementar de seu ensino, juntar grande número de espécimes botânicos, nomeados no momento da apresentação, mas aos quais a pesquisadora era incapaz de identificar, não tanto pela sua natureza exótica, como porque ela nunca se havia interessado pelas riquezas e diversidades do mundo vegetal, ao passo que os indígenas consideravam tal curiosidade como que adquirida.

"Este povo é cultivador: para ele as plantas são tão importantes, tão familiares quanto os seres humanos. De minha parte, nunca vivi em fazenda e não estou mesmo muito certa de distinguir as begônias das dálias ou das petúnias. As plantas, como as equações, têm o hábito traiçoeiro de parecerem semelhantes e serem diferentes ou de parecerem diferentes e serem semelhantes. Em conseqüência, eu me atrapalho em botânica como em matemática. Pela primeira vez na minha vida, encontro-me numa comunidade onde as crianças de dez anos não me são superiores em matemática, mas estou também num lugar onde cada planta, selvagem ou cultivada, tem nome e uso bem definidos, onde cada homem, cada mulher e cada criança conhece centenas de espécies. Nenhum deles quererá jamais acreditar que eu seja incapaz, mesmo que o queira, de saber tanto quanto eles." (Smith Bowen, p.22.) Nitidamente diferente é a reação de um especialista, autor de uma monografia, em que descreve perto de 300 espécies ou variedades de plantas medicinais ou tóxicas, utilizadas por certas populações da Rodésia do Norte:

"Fiquei sempre surpreendido com a solicitude com a qual o povo de Balovale e das regiões vizinhas aceitava falar sobre seus remédios e seus venenos. Estariam lisonjeados pelo interesse que eu demonstrava

por seus métodos? Considerariam nossas conversas como uma troca de informações entre colegas? Ou quereriam exibir seu saber? Qualquer que pudesse ser a razão de sua atitude nunca se faziam rogar. Lembro-me do danado de um velho Luchazi, que trazia braçadas de folhas secas raízes e hastes, para ensinar-me todos os seus usos. Seria de herborista ou feiticeiro? Nunca pude penetrar esse mistério, mas verifico, com tristeza, que não lhe possuirei nunca a ciência da psicologia africana nem a habilidade para cuidar de seus semelhantes: associados, meus conhecimentos médicos e seus talentos teriam formado uma combinação bem útil." (Gilges, p. 20.) Citando um extrato de suas notas de viagem, Conklin quis ilustrar esse contacto íntimo entre o homem e o meio, que o indígena impõe, perpetuamente, ao etnólogo:

"A 0600 e sob uma chuva fina, Langba e eu deixamos Parina na direção de Binli (...). Em Arasaas, Langba me pediu para cortar várias tiras de casca de 10x 50cm, da árvore anapla Kilala ( Albizia procera ( Roxb. ) Benth.) para preservar-nos das sanguessugas Esfregando com a face interna da casca, os tornozelos e pernas, já molhados pela vegetação, gotejante de chuva formava-se uma espuma rósea, que era excelente repulsivo. No caminho perto de Aypud, Langba parou, de repente; enfiou, com presteza, seu bastão na beira do caminho e arrancou uma raiz, uma erva, tawag kugun buladlad (Buchnera urticifolia R. Br.) que, me disse ele, lhe serviria de isca (...) em uma armadilha para javalis. Alguns instantes mais tarde, e nós andávamos depressa, ele fez uma parada igual, para arrancar uma orquídeazinha terrestre (difícil de ver sob a vegetação que a cobria) chamada lyamliyam (Epipogum roseum (D. Don ) Lindl. ) planta empregada para combater, magicamente/os insetos parasitas das culturas. Em Binli, Langba, teve o cuidado de não estragar sua apanha, remexendo uma sacola de palmas trançadas, para encontrar apug, cal extinta e tabaku (Nicotiana tabacum L.), que queria oferecer à gente de Binli, em troca de outros ingredientes para mascar. Depois de uma discussão sobre os respectivos méritos das variedades locais de bétel-pimenta (Piper betle L.), Langba obteve permissão para cortar

a precisão dos conhecimentos zoológicos e botânicos dos índios do nordeste dos Estados Unidos da América e do Canadá: montanhês, naskapi, micmac, malecite, penobscot, o etnólogo, que melhor os estudou, prossegue:

"Isto se poderia esperar, no referente aos hábitos da caça grossa, de onde provêm a alimentação e as matérias-primas da indústria indígena. Não é surpreendente que o caçador penobscot, do Maine, possua melhor conhecimento prático dos hábitos e do caráter do alce do Canadá que o mais experimentado zoólogo. Mas, quando apreciamos, no seu justo valor, .o cuidado que os índios tiveram em observar e sistematizar os fatos científicos relacionados com as formas inferiores da vida animal, ser-nos-á permitido demonstrar alguma surpresa.

"Toda a classe de répteis (...) não oferece nenhum interesse econômico para estes índios; eles não comem a carne das cobras nem a dos batráquios, nem utilizam parte alguma de seu despojo, exceto, cm casos muito raros, para a confecção de amuletos contra a doença ou a bruxaria." (Speck I, p. 273.)

E, entretanto, como demonstrou Speck, os índios do nordeste elaboraram uma verdadeira herpetologia, com lermos distintos para cada gênero de répteis, e outros reservados às espécies ou variedades.

Os produtos naturais, utilizados pêlos povos siberianos para fins medicinais, ilustram, por sua definição precisa e pelo valor específico que lhes é dado, o cuidado, a inventiva, a atenção à minúcia, a preocupação das distinções que devem ter empregado os observadores e os teóricos, nas sociedades desse tipo; aranhas e vermes brancos engolidos (itelmene e iakute, para a esterilidade); gordura de escaravelho preto(ossete, contra hidrofobia); barata esmigalhada, fel de galinha (russos de Surgut, contra abscesso e hérnia); vermes vermelhos macerados (iakute, contra o reumatismo); fel de solha (buriate, contra doenças dos olhos); cadoz, caranguejo de água doce, engolidos vivos (russos da Sibéria, contra epilepsia e outras doenças); toque de bico de picanço, sangue de picanço, insuflação nasal de pó de picanço mumificado, ovo tragado de pássaro kukcha (iakute, contra dores de dentes,

escrófulas, doenças dos cavalos e tuberculose, respectivamente); sangue de perdiz, suor de cavalo (oirote, contra hérnias e verrugas); caldo de pombo (buriate, contra tosse); pó de patas moídas da ave tilegus (kazak, contra dentadas de cão hidrófobo); morcego seco, pendurado ao pescoço (russos de Altai, contra febre); instilação da água proveniente de um pedaço de gelo suspenso no ninho da ave remiz (oirote, contra doenças dos olhos). Somente entre os buriate, e limitando-se ao urso, a carne deste possui 7 virtudes terapêuticas distintas, o sangue 5, a gordura 9, o cérebro 12, a bile 17 e o pêlo

  1. Do urso também, os kalar recolhem os excrementos empedrados, no fim da hibernação, para debelar prisão de ventre (Zelenine, pp. 47-59). Achar-se-á, num estudo de Loeb, um repertório assim tão rico com referência a uma tribo africana.

De tais exemplos, que se poderiam tirar de todas as regiões do mundo, concluir-se-ia, de bom grado, que as espécies animais e vegetais não são conhecidas na medida em que sejam úteis; elas são classificadas úteis ou interessantes porque são primeiro conhecidas.

Objetar-se-á que tal ciência não pode ser muito eficaz num plano prático. Mas, precisamente, seu primeiro objetivo não é de ordem prática. Ela responde a exigências intelectuais antes, ou em vez, de satisfazer necessidades.

A verdadeira questão, não é saber se o contacto de um bico de picanço cura dores de dentes, mas, se é possível, de certo ponto de vista, fazer juntos "irem" o bico do picanço e o dente do homem (congruência, cuja fórmula terapêutica não constitui mais que uma aplicação hipotética, entre outras) e, por intermédio desses agrupamentos de coisas e de seres, introduzir um princípio de ordem no universo; porquanto a classificação, qualquer que seja, possui uma virtude própria em relação à falta de classificação. Como escreve um técnico moderno da taxionomia:

"Os cientistas suportam a dúvida e a derrota, porque não podem agir de forma diferente. Mas a desordem é a única coisa que não podem nem devem tolerar. Todo o objetivo da ciência pura é levar, a seu ponto mais alto e mais consciente, a redução dessa forma caótica de

espírito supremo, reside em todas as coisas e, tudo o que encontrmoa em nosso caminho pode socorrer-nos (...). Fomos instruídos para prestar atenção a tudo o que vemos" ( id., pp. 73,81 ).

Esta preocupação da observação exaustiva e do inventário sistemático das relações e das ligações pode levar, às vezes, a resultados de boa ordem científica: é o caso dos índios blackfoot, que diagnosticavam a aproximação da primavera pelo desenvolvimento dos fetos do bisão, extraídos do ventre das fêmeas mortas durante a caça. Entretanto, não se podem isolar esses resultados de tantas outras aproximações do mesmo gênero declaradas ilusórias pela ciência. Mas não será que o pensamento mágico, essa "gigantesca variação sobre o tema do princípio da causalidade", diziam Hubert e Mauss (2, p. 61), se distingue menos da ciência pela ignorância ou pelo desprezo do determinismo, do que por uma exigência de determinismo mais imperiosa e mais intransigente e que a ciência pode, quando muito, julgar insensata e precipitada?

"Considerada como sistema de filosofia natural, ela (witchcraft) implica uma teoria das causas: a infelicidade resulta da feitiçaria, que trabalha em combinação com as forças naturais. Caso um homem receba uma chifrada de um búfalo, caso lhe caia na cabeça um celeiro cujos suportes tenham sido minados pelas térmites, ou contraia uma meningite cérebro- espinhal, os azande afirmarão que o búfalo, o celeiro ou a doença são causas que se conjugam com a feitiçaria para matar o homem. Pelo búfalo, pelo celeiro, pela doença, a feitiçaria não é responsável, pois existem por si mesmos; mas o é pela circunstância particular que os põe em relação destruidora com um certo indivíduo. O celeiro teria caído de qualquer maneira, mas foi pela feitiçaria que caiu em dado momento e quando certo indivíduo repousava embaixo. Entre todas essas causas, só a feitiçaria admite uma intervenção corretiva, porque somente ela emana de uma pessoa. Contra o búfalo e o celeiro, não se pode intervir. Ainda que sejam também reconhecidos como causas, não são significativas, no plano das relações sociais." (Evans-Pritchard I, pp. 418-419.)

Entre magia e ciência, a diferença primordial seria, pois, deste ponto de vista, que uma postula um determinismo global e integral, enquanto que a outra opera distinguindo níveis, dos quais apenas alguns admitem formas de determinismo tidas como inaplicáveis a outros níveis. Mas não se poderia mais longe e considerar o rigor e a precisão, que testemunham o pensamento mágico e as práticas rituais, como traduzindo uma apreensão inconsciente da verdade do determinismo como modo de existência dos fenômenos científicos de sorte que o determinismo fosse globalmente suspeitado e arriscado antes de ser conhecido e respeitado? Os ritos e as crenças mágicas apareceriam, então, como outras tantas expressões de um ato de fé numa ciência ainda por nascer.

Há mais. Não somente por sua natureza, estas antecipações podem ser, as vezes, coroadas de sucesso, mas podem também antecipar duplamente; sobre a própria ciência e sobre métodos ou resultados que a ciência só assimilará num estágio avançado de seu desenvolvimento, se é verdade que o homem enfrentou primeiro o mais difícil: automatização ao nível dos dados sensíveis, aos quais a ciência, durante muito tempo, voltou as costas e que começa apenas a reintegrar na sua perspectiva. Na história do pensamento científico, este efeito de antecipação produziu-se, aliás, repetidas vezes; como Simpsom (pp 84-85) demonstrou, com o auxílio de um exemplo tirado da biologia do século XIX, este efeito resulta de que - visto a explicação científica sempre corresponder à descoberta de uma ordenação - toda tentativa deste tipo, mesmo inspirada em princípios não-científicos, pode encontrar ordenações verdadeiras. Isto é mesmo previsível, se se admite que, por definição, o numero de estruturas é finito: "o pôr em estrutura , possuiria, então, uma eficácia intrínseca, quaisquer que fossem os princípios e os métodos em que se inspire.

A química moderna reduz a variedade de sabores e de perfumes a cinco elementos, diversamente combinados: carbono hidrogênio, oxigênio, enxofre e azoto. Formando quadros de presença e de ausência, calculando dosagens e limites chega a notar diferenças e semelhanças entre qualidades que: outrora, teria banido de seu domínio, por serem de "segunda ordem. Mas essas

tímida e balbuciante da ciência: pois nos privaríamos de todos os meios de compreender o pensamento mágico se pretendêssemos reduzi-lo a um momento ou a uma etapa da evolução técnica e científica. Mais como uma sombra que antecipa a seu corpo, ela é, num sentido, completa como ele, tão acabada e coerente em sua imaterialidade, quanto o ser sólido por ela simplesmente precedido. O pensamento mágico não é uma estréia, um começo, um esboço, parte de um todo ainda não realizado; forma um sistema bem articulado; independente, neste ponto, desse outro sistema que constituirá a ciência, exceto quanto à analogia formal que os aproxima; e que faz do primeiro uma espécie de expressão metafórica do segundo. Em lugar, pois, de opor magia e ciência, melhor seria colocá-las em paralelo, como duas formas de conhecimento, desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (pois sob este ponto de vista, é verdade que a ciência se sai melhor que a magia, se bem que a magia preforme a ciência no sentido de que triunfa também algumas vezes ), mas não pelo gênero de operações mentais, que ambas supõe, e que diferem menos em natureza que em função dos tipos de fenômenos a que se aplicam.

Estas relações decorrem, com efeito, das condições objetivas em que surgiram o conhecimento mágico e o conhecimento científico. A história deste último é bastante curta para que estejamos bem informados a seu respeito; mas o fato de a origem da ciência moderna montar apenas há alguns séculos cria um problema, sobre o qual os etnólogos ainda não refletiram suficientemente; o nome paradoxo neolítico caber-lhe-ia perfeitamente.

É na era neolítica que se confirma o domínio do homem sobre as grandes artes da civilização: cerâmica, tecelagem, agricultura e domesticação de animais. Ninguém, hoje, pensaria mais em explicar essas imensas conquistas pela acumulação fortuita de uma série de achados feitos por acaso ou revelados pelo espetáculo, passivamente registrado, de certos fenômenos naturais 3

Cada uma dessas técnicas supõe séculos de observação ativa e metódica, hipóteses ousadas e controladas, para serem rejeitadas ou comprovadas por meio de experiências incansavelmente repetidas. Notando a rapidez com que

as plantas originárias do Novo Mundo foram aclimatadas nas Filipinas, adotadas e denominadas pelos indígenas que, em muitos casos, parecem mesmo haver redescoberto seus usos medicinais, rigorosamente paralelos aos que eram tradicionais no México, um biólogo interpreta o fenômeno da seguinte maneira:

"As plantas cujas folhas ou talos têm sabor amargo são correntemente empregadas, nas Filipinas, contra dores do estômago. Toda planta introduzida que apresente o mesmo caráter, será imediatamente experimentada. É porque a maioria das populações das Filipinas faz, constantemente, experiências com plantas, que aprende depressa a conhecer, em função das categorias de sua própria cultura, os empregos possíveis das plantas importadas." (R. B. Fox, pp. 212- 213.) Para transformar uma erva silvestre em planta cultivada, um animal selvagem em doméstico, para fazer aparecer, num ou noutro, propriedades alimentícias ou tecnológicas que, na origem, estavam completamente ausentes, ou mal podiam ser suspeitadas; para fazer de uma argila instável, pronta a esboroar-se, a pulverizar-se ou a rachar-se, uma louça sólida e estanque (mas somente com a condição de haver determinado, entre uma multidão de matérias orgânicas e inorgânicas, a mais própria para servir de detergente, assim como o combustível conveniente, a temperatura e o tempo de cozimento, o grau de oxidação eficaz); para elaborar as técnicas, muitas vezes longas e complexas, que permitissem cultivar sem terra, ou então sem água, transformar grãos ou raízes tóxicas em alimentos, ou então, ainda, utilizar essa toxidade para a caça, a guerra, o ritual, foi preciso, não duvidamos, uma atitude de espírito verdadeiramente científica, uma curiosidade assídua e sempre desperta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer, porque uma pequena fração apenas das observações e das experiências (às quais é preciso supor que tenham sido inspiradas, então, e sobretudo, pelo gosto de saber) poderiam dar resultados práticos e imediatamente utilizáveis. Ainda deixamos de lado a metalurgia do bronze e do ferro, a dos metais preciosos, e, mesmo, o simples trabalho do cobre nativo, por martelagem, que precedeu a

organizada que é mais vantajoso, para o pensamento e para a ação, proceder como se uma equivalência, que satisfaz o sentimento estético, correspondesse também a uma realidade objetiva. Sem que nos caiba aqui.procurar por que, é provável que espécies dotadas de algum caráter digno de nota - forma, cor ou cheiro - dêem ao observador o que se poderia chamar "direito de seguir” : o de postular que esses caracteres visíveis são o signo de propriedades igualmente singulares, mas ocultas. Admitir que a própria relação entre ambos seja sensível (que um grão em forma de dente proteja das picadas, de cobra, que um suco amarelo se]a específico para distúrbios biliares, etc.), vale, a título provisório, mais que a indiferença a qualquer conexão; pois, a classificação, embora heteróclita e arbitrária, salvaguarda a riqueza e a diversidade do inventário; decidindo-se que é preciso levar tudo em conta, facilita-se a formação de uma "memória".

Ora, é um fato que métodos dessa ordem podiam conduzir a certos resultados que eram indispensáveis para que o homem pudesse abordar de outro viés a natureza. Longe de ser, como se tem afirmado muitas vezes, a obra de uma "função fabuladora" que dê as costas à realidade, os mitos.e os ritos oferecem, como valor principal, ter preservado até a nossa época, de uma forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e continuam sem dúvida) exatamente adaptados a descobertas de um certo tipo: as que "a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativas do mundo sensível em termos de sensível. Esta ciência do concreto devia ser, .essencialmente, limitada a outros resultados que os prometidos às ciências exatas e naturais, mas não foi menos científica e seus resultados não foram menos reais. Afirmados dez mil anos antes dos outros, eles são sempre o substrato de nossa civilização.

Aliás, subsiste entre nós uma forma de atividade que, no plano técnico, permite muito bem conceber o que, no plano da especulação, pôde ter sido uma ciência, que preferimos chamar "primeira" ao invés de primitiva; é a comumente designada pelo termo bricolage*.

No seu sentido antigo, o verbo bricoler se aplica ao jogo de péla e de bilhar, à caça e à equitação, mas sempre para evocar um movimento incidental:

o da péla que salta, o do cão que erra ao acaso, o do cavalo que se afasta da linha reta para evitar um obstáculo E em nossos dias, o bricoleur é o que trabalha com as mãos, usando meios indiretos se comparados com os do artista. Ora, o próprio do pensamento mítico é exprimir-se com o auxilio de um repertório cuja composição é heteróclita e que, apesar de extenso, permanece não obstante limitado; é preciso, todavia que dele se sirva, qualquer que seja a tarefa que se proponha, porque não tem mais nada a seu alcance. Aparece, assim, como uma espécie de bricolage intelectual, o que explica as relações que se observam entre ambos.

Como o bricolage, no plano técnico, a reflexão mítica pode atingir, no plano intelectual, resultados brilhantes e imprevistos. Reciprocamente, foi muitas vezes notado o caráter mito-poético do bricolage; seja no plano da arte dita "bruta" ou ingênua; na arquitetura fantástica da vila do carteiro Cheval, nos cenários de Georges Méliès; ou, ainda, naquela, imortalizada por As grandes esperanças, de Dickens, mas, sem dúvida alguma, inspirada primeiro na observação, do "castelo" suburbano de Mr. Wemmick, com sua ponte-levadiça em miniatura, seu canhão salvando às nove horas e seu canteiro de alfaces e pepinos, graças ao qual seus ocupantes poderiam sustentar um cerco, se preciso (...).

A comparação merece ser aprofundada, pois dá melhor acesso às verdadeiras relações entre os dois tipos de conhecimento científico que distinguimos. O bricoleur está apto a executar grande número de tarefas diferentes; mas, diferentemente do engenheiro, ele não subordina cada uma delas à obtenção de matérias-primas e de ferramentas, concebidas e procuradas na medida do seu projeto: seu universo instrumental é fechado e a regra de seu jogo é a de arranjar-se sempre com os meios-limites, isto é, um conjunto, continuamente restrito de utensílios e de materiais, heteróclitos, além do mais porque a composição do conjunto não esta em relação com o projeto do momento, nem, aliás, com qualquer projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as ocasiões que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque, ou para conservá-lo, com resíduos de construções e de destruições anteriores. O conjunto dos meios do bricoleur não se pode definir