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Uma análise detalhada do pensamento político de nicolau maquiavel, um dos mais influentes filósofos políticos da história. Aborda temas como a natureza humana na visão de maquiavel, sua concepção de estado e poder, a separação entre política e moral, bem como a evolução da interpretação de suas ideias ao longo do tempo. O texto destaca a importância de maquiavel na fundação da ciência política moderna e sua influência em diferentes correntes ideológicas, desde o fascismo até o marxismo. Além disso, discute a imagem controversa de maquiavel, visto ora como um vilão maquiavélico, ora como um defensor da liberdade. O documento oferece uma perspectiva abrangente e nuançada sobre o pensamento deste pensador político fundamental.
Typology: Cheat Sheet
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Sumário
Quando o florentino Niccolò di Bernardo Machiavelli nasceu, em maio de 1469, sua Itália estava desfigurada. Dividida e domi- nada por potências estrangeiras, a Itália não existia como Estado nacional. Como uma colcha de retalhos, estava dividida em ver- dadeiros feudos dominados pelo Papa, pe- los Médicis, pelos Aragão e invadida por Carlos VIII da França. Crescendo nesse universo, o jovem Maquiavel tinha um sonho. O sonho de um dia ver sua Itália unificada, sob um governo forte, capaz de pacificar as dissensões exis- tentes e sufocar a ambição dos aproveitado- res de plantão, que, movendo-se tão-somen- te à custa dos próprios interesses, lançavam suas regiões em alianças com potências es-
Antonio de Freitas Júnior
Antonio de Freitas Júnior é Doutor em Di- reito pela Universidade de Valência, Espanha. Procurador Federal, Brasil. Assessor Jurídico da Presidência da República, Brasil. Professor da Faculdade NOVAFAPI. Pesquisador do Ins- tituto Intercultural para la Autogestión y la Acción Comunal – INAUCO , Espanha, e do Instituto de Iberoamérica y el Mediterráneo – IBEM , Espanha.
“O destino determinou que eu não saiba discutir sobre a seda, nem sobre a lã; tampouco sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar sobre o Estado. Será preciso submeter-me à promessa de emudecer, ou terei que falar sobre ele”. Carta de Maquiavel a Francesco Vettori, Embaixador florentino em Roma, em 1513.
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trangeiras contra outras cidades e regiões dentro da península itálica. Apesar de não possuir uma família no- bre ou rica, Maquiavel recebeu uma exce- lente educação clássica e, na infância, já do- minava a retórica greco-romana, bem como redigia em latim. Como era de se esperar, Maquiavel ocu- pou postos de destaque em Florença, mas com a vitória dos Médicis, em 1512, foi for- çado a abandonar seu cargo, além de ser preso e torturado. Durante esse exílio políti- co, Maquiavel escreve suas principais obras políticas: O Príncipe , entre 1512 e 1513; Co- mentários sobre a primeira década de Tito Lívio , entre 1513 e 1519; A arte da guerra , entre 1519 a 1520. Escreve, ainda, a comédia A Mandrá- gora e a biografia de Castruccio Castracani, além de ensaios literários e poesias. Sua úl- tima obra foi História de Florença , escrita en- tre 1520 e 1525. Maquiavel falece em 1527. Entretanto, o nome Maquiavel desperta até hoje uma idéia que supera os muros es- tritamente acadêmicos e invade o imaginá- rio coletivo. Derivações de seu nome exis- tem e são usadas com freqüência nos meios de comunicação, como se depreende das expressões maquiavélico e maquiavelismo , ambas de significado bastante pejorativo. Norberto Bobbio (1995, p. 738), em seu Dicionário de Política, interpreta o verbete maquiavelismo como: “É uma expressão usada especial- mente na linguagem ordinária para indicar um modo de agir, na vida po- lítica ou em qualquer outro setor da vida social, falso e sem escrúpulos, implicando o uso da fraude e do en- gano, mais que da violência. ‘Maqui- avélico’ é considerado, em particular, aquele que quer se mostrar como ho- mem que inspira sua conduta ou de- terminados atos por princípios morais e altruísmo, quando, na realidade, persegue fins egoísticos. Esta expres- são constitui, portanto, na linguagem ordinária, uma prova da reação que a doutrina de Maquiavel suscitou e con-
tinua suscitando na consciência po- pular, e da tendência que considera essa doutrina como imoral. Esta expressão, além disso, pode ser usada também em sentido técnico, para indicar a doutrina de Maquiavel ou, mais genericamente, a tradição de pensamento baseada no conceito de Razão de Estado”. Mas, quais foram os fatores que determi- naram a associação do nome do pensador florentino a termos e expressões ligados a pensamentos tão mesquinhos e pejorativos? Por que a expressão maquiavelismo está as- sociada à idéia de velhacaria, traição, astú- cia, perfídia, falta de escrúpulos e imorali- dade? Muitos foram os fatores que ajudaram a popularizar a associação do nome de Maquiavel e suas acepções com tais idéias. A mais importante, nos parece, surgiu no mo- mento em que sua principal obra, O Príncipe , foi condenada pela Igreja Católica. A obra foi publicada pela primeira vez em 1531, portanto após a morte de Maquiavel, com au- torização do Papa Clemente VIII. Posterior- mente, a Igreja Católica julgou-a “escrita pela mão do diabo” e, em 1557, o Papa Paulo IV denunciou o autor como “impuro e celera- do”, culminando com sua colocação no Index , pelo Concílio de Trento. Na época da Reforma Protestante, os je- suítas imputaram a alcunha de “discípulos de Maquiavel” aos protestantes, tamanha era a antipatia da Igreja Católica para com o pensador florentino. Ademais, o popular dramaturgo William Shakespeare, na época vitoriana, chamou Maquiavel de “The Murderous” e identifi- cou-o com o diabo ao denominá-lo “old Nick”, entre outros dramaturgos como Marlowe. Na lição de Claude Lefort, citada por Maria Tereza Sadek (1996, p.13-14): “... o maquiavelismo serve a todos os ódios, metamorfoseia-se de acordo com os acontecimentos, já que pode ser apropriado por todos os envolvi- dos em disputa. É uma forma de des-
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tado, bem como os sintomas e remédios efica- zes, pois basta verificar sua eficácia, para as perturbações da ordem instalada. A essa busca da realidade e não da fic- ção Maquiavel denominou busca pela verità effettuale , ou seja, a verdade efetiva do mun- do. Por utilizar-se dessa metodologia, al- guns críticos já o compararam com Galileu Galilei, que também se utilizou de semelhan- te metodologia nas ciências físicas. Maquiavel, partindo da busca da verità effettuale , descobre os fatores transitórios e circunstanciais que existem nas diversas ordens estatais. E cria uma verdadeira “cha- rada” para seus leitores e intérpretes. Toda vez que se lê Maquiavel, pensa-se algo dife- rente. O enigma maquiavélico é explicado por Maria Tereza Sadek (1996, p. 18-19) nas seguintes palavras: “Tem-se sempre a sensação de que é necessário ler, reler, e voltar a ler a obra e que são infindáveis as suas possibilidades de formalização. Sua armadilha é atraente – fala do ‘poder’ que todos sentem, mas não conhecem. Porém, para conhecê-lo é preciso su- portar a idéia da incerteza, da contin- gência, de que nada é estável e que o espaço da política se constitui e é regi- do por mecanismos distintos dos que norteiam a vida privada. E mais ain- da: o mundo da política não leva ao céu, mas sua ausência é o pior dos in- fernos. Por outro lado, a forma que usa para expor suas idéias exige atenção. Não só porque recoloca e problemati- za velhos temas, mas sobretudo por- que rediscute-os incessantemente, obrigando o leitor a pôr sempre em xeque a primeira compreensão. Por isso, qualquer tentativa de sistemati- zar os escritos de Maquiavel é sempre provisória e sujeita a novas interpre- tações. Vale assim, para os seus escri- tos, a mesma metodologia que usava para ler a realidade e, afinal, de há muito sua obra deixou de ser apenas uma referência de erudição ilustrada.
Pelo que significa e tem significado nas práticas históricas é ela própria simul- taneamente um monumento e um ins- trumento político, retornando sempre como um enigma complexo que só pode ser decifrado pela análise de sua pre- sença concreta e sua ‘verità effettuale’”.
Contrariamente ao pensamento de Rosseau e Hobbes, a natureza humana, para Maquiavel, não significa necessariamente o bem. Para Maquiavel (1997, p. 107), os ho- mens são geralmente “... ingratos, volúveis, simulados e dissimulados, covardes e ga- nanciosos de ganhos”. Analisando a história, Maquiavel extrai essas características da natureza humana, elementos da mais pura malignidade, e con- sidera-os imutáveis. As paixões humanas geradas por tais características da sua na- tureza má os empurram para a discórdia e a anarquia. Daí concluir que o poder político deriva da pior parte da natureza humana, ou seja, de sua parte malévola. Assim, além de uma filosofia da histó- ria, Maquiavel se utiliza de uma segunda ferramenta na construção de seu pensamen- to político: a psicologia humana. É no estudo da história, aliado ao conta- to com os poderosos de seu tempo, que Maquiavel forma sua compreensão da psi- cologia humana, sintetizada na afirmação de que os homens são egoístas e ambiciosos e de que somente a lei poderia bloquear suas paixões. Destarte, o governante que desejasse êxi- to deveria aliar o conhecimento da história à compreensão da natureza humana, pois, dessa maneira, conseguiria adiantar-se aos acontecimentos futuros e estaria melhor pre- parado para enfrentá-los.
Maquiavel acreditava que atividade po- lítica era algo dessacralizado, livre de dog-
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mas e crenças na predestinação da vida humana. Para aqueles que acreditavam nes- sas idéias, o homem era mero joguete nas mãos do destino, ou seja, nas mãos de Deus. O destino seria traçado pela providência di- vina, cabendo ao homem ser uma mera víti- ma impotente desse destino divino. Concordando em parte com tais idéias, Maquiavel imagina o homem político como senhor de, pelo menos, metade de seu desti- no, posto que agiria guiado exclusivamente pelo seu livre arbítrio. Maquiavel, assim, li- berta o homem da passividade diante de seu destino, mostrando-lhe a possibilidade de interferir na história e no seu futuro. Maquiavel denominou fortuna a metade da vida humana que não pode ser controla- da pelo homem. E identificou-a não a algo terrível, mas a uma bondosa deusa, possui- dora da honra, da riqueza, da glória, do poder, ou seja, possuidora de todos aqueles bens aos quais os homens naturalmente al- mejam. Destarte, por ser mulher, a fortuna precisava ser seduzida, e, para tanto, basta- ria que se apresentasse um homem de virili- dade e coragem inquestionáveis. Um homem possuidor de virtù. O homem de virtù é ca- paz de seduzir a deusa fortuna , porque sabe o momento exato, criado por esta, para agir com sucesso. Assim, para Maquiavel (1997, p. 158-159), somente o homem de virtù poderá seduzir a fortuna : “Acredito que é melhor ser impe- tuoso do que cauteloso, pois a sorte é uma mulher, sendo necessário, para dominá-la, empregar a força; pode-se ver que ela se deixa vencer pelos que ousam, e não pelos que agem friamen- te. Como mulher, é sempre amiga dos jovens – mais bravos, menos cuidado- sos, prontos a dominá-la com maior audácia”. Portanto, a combinação do modo de agir com as sutilezas de cada momento seria a cha- ve da felicidade humana para Maquiavel, como leciona Carlos Estevam Martins (1996, p. 16-17):
“O necessário é manter-se à frente dos acontecimentos, procurando impri- mir-lhes rumo e alternativas, dado que a ‘fortuna’ é um rio impetuoso e os ho- mens devem prevenir-se com a edifica- ção de diques e barragens. A vontade criadora não passa, assim, de um mé- todo para a ação, pois o agir humano está condicionado pela necessidade. O carisma da ‘virtù’ é próprio da- quele que se conforma à natureza de seu tempo, apreende-lhe o sentido e se capacita a realizar praticamente a ne- cessidade latente nas circunstancias”.
Uma das comprovações categóricas da imoralidade e falta de escrúpulos do pensa- mento maquiavélico, bastante usual, cons- titui-se na afirmação de que “os fins justifi- cam os meios”. Entretanto, para a maioria dos não leitores de Maquiavel, que se utili- zam dessa afirmação para criticá-lo, o des- conhecimento do real contexto em que foi prolatada tal sentença não os exime de erro. Maquiavel (1998, p. 93) afirmou categorica- mente na obra O Príncipe : “Na conduta dos homens, especialmente dos príncipes, con- tra a qual não há recursos, os fins justificam os meios”. É necessário não esquecer o contexto da península itálica na época de Maquiavel e seu sonho de vê-la unificada e livre das po- tências estrangeiras que a dominavam e ex- ploravam as divergências internas. Diante dessa afirmação, para Maquiavel (1998), ao príncipe que unificasse a penín- sula itálica tudo seria permitido, pois, para a criação e manutenção do Estado, os ho- mens o isentariam de toda a culpa pelo uso dos meios mais absurdos e condenáveis do ponto de vista moral e ético cristão. A políti- ca possui, destarte, uma lógica e ética pró- prias, e o príncipe, na execução do seu pro- jeto de criação e manutenção do Estado, es- taria utilizando-as na construção da “razão de Estado”.
Brasília a. 44 n. 174 abr./jun. 2007 211
MARTINS, Carlos Estevam. Nicolau Maquiavel. São Paulo: Nova Cultura, 1996. (Os Pensadores).
NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
PAUPÉRIO, Artur Machado. Teoria geral do estado.
SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel : o cida- dão sem fortuna, o intelectual de vitù. São Paulo: Ática, 1996. (Os clássicos da política).
WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1996. 1 v. XAVIER, Livio. Nicolau Maquiavel. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Pensadores).