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historia medieval
Tipologia: Notas de estudo
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«Fazer livros é um trabalho sem fim», dizia o Eclesiastes, no tempo em que a Bíblia se chamava Vulgata. É um pouco o sentimento do autor considerando a presente obra quase a quarenta anos de distância ... Trabalho sem fim. Este tinha sido empreendido alguns anos após a minha saída da École des Chartes, na fascinação de uma descoberta ainda comple- tamente nova. Para mim, com efeito, como para toda a gente, no fim dos estudos secundários e de uma licenciatura clássica, a «Idade Média» era uma época de «trevas». Muniam-nos, tanto em literatura como em história, de um sólido arsenal de juízos prefabricados que nos levavam pura e simplesmente a declarar ingénuos os auditores de São Tomás de Aquino e bárbaros os construtores do Thoronet. Nada nesses séculos obscuros que valesse a pena de alguém se deter neles. Por isso não deixou de ser com um sentimento de resignação que abordei uma escola destinada nas minhas intenções a abrir-me uma carreira de bibliotecária. E eis que se me abriu uma janela para um outro mundo. E que após pouco mais de três anos de cursos — pontuados muitas vezes, é preciso dizê-lo, por crises de sono irreprimível, quando se tratava, por exemplo, de biblioteconomia ou de arquivística — «esses tempos a que chamamos obscuros» me apareciam numa luz insuspeitável. O mérito da escola era de nos colocar de repente em face dos próprios materiais da história. Nenhuma «literatura», muito pouca importância dada às opiniões emitidas por professores, mas uma exigência rigorosa perante textos ou monumentos da época tomados no sentido mais lato. Éramos levados, em suma, a ser técnicos da história, e isso era mais fértil que as diversas filosofias da mesma história que tínhamos tido ocasião de abordar anteriormente. No terceiro ano, sobretudo, a arqueologia e mais ainda a história do direito, ensinada por esse mestre que foi Roger Grand, faziam-nos penetrar numa sociedade nas suas estruturas profundas como na sua expressão artística; revê- lavam-nos um passado aflorando ainda o presente, um mundo que tinha visto apagar-se o lirismo, nascer a literatura romanesca e
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erguerem-se Chartres e Reims; a identificar uma estátua após outra, descobríamos personagens de uma grande humanidade; a folhear cartas ou manuscritos tomávamos consciência de uma harmonia da qual cada sinete, cada linha traçada, cada paginação pareciam deter o segredo. Tanto assim que, pouco a pouco, uma pergunta nascia, a qual, em tempos demasiado difíceis para deixar lugar para a contestação, mal ousávamos formular: por que razão nada nos tinha nunca deixado pressentir tudo isso? Por que razão esses programas que nunca nos faziam entrever senão um grande vazio entre o século de Augusto e o Renascimento? Por que razão tínhamos de adoptar sem discussão a opinião de um Boileau sobre os «séculos grosseiros» e acolher apenas com um sorriso indulgente a dos românticos sobre a floresta gótica? A presente obra nasceu destas interrogações e de uma série de outras semelhantes. E parece que hoje toda a gente as colocaria. Mas nem é mesmo essa a questão. Como entretanto começaram a viajar, os Franceses, como toda a gente, aprenderam a ver. Uma cultura latente que faltava completamente na minha juventude, em que a «Cultura» era ainda apanágio de uma sociedade muito restrita, difundiu-se. E se não chegámos ainda ao ponto de viajar tanto como os Anglo-Saxões, ou de ler tanto como os Irlandeses, o nível geral, sobretudo de há vinte e cinco anos para cá, contrariamente a tantos clamores pessimistas, parece-nos ter-se consideravelmente elevado. Tanto assim, que um pouco por toda a parte começa-se a saber discernir no nosso meio aquilo que merece ser admirado. «Vai passar a sua vida a reescrever essa obra», tinha-me dito, quando do seu aparecimento, Léon Gischia; e essa segurança, vinda de um pintor que eu admirava profundamente, ele próprio muito informado sobre as diversas formas de arte da nossa Idade Média, tinha- •me tocado. De facto, ele tinha razão. Todos os meus trabalhos iam ser consagrados a estudar, aprofundar, esclarecer os caminhos aqui abertos ou entrevistos, a tentar uma exploração mais completa, a querer fazê-la partilhar também por um público muito pronto para manifestar a sua curiosidade de espírito; isto sobretudo, notemo-lo, fora dos meios tradicionalmente votados à cultura clássica e a ela só. A propósito desta reedição, trinta e cinco anos exactamente após o seu aparecimento, punha-se a questão de rejuvenescer ou não a obra. Feita a reflexão, deixamo-la tal como foi escrita. Os leitores estão hoje aptos a cobrir as suas eventuais lacunas, graças a colecções como a de «Zodíaco» sobre a arte romana ou como os Cahiers de
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civilisation médiévale; ou ainda graças a esses estudos tão honestos, tão trabalhados, de Reto Bezzola, de Pierre Riché, de Paul Zumthor, de Léopold Génicot e de inúmeros eruditos americanos, Lynn White e tantos outros. Não deixaremos de notar aqui e além algumas aproximações. Assim, reproduzi bastante inocentemente o que me ensinaram relativo «ao esquecimento da escultura» até à época romana e gótica; os pintores do nosso tempo corrigiram de certa maneira a nossa visão e fizeram-nos compreender que os pintores de fescos romanos não estavam à espera de um Matisse para obedecer às «leis da perspec- tiva». Ou são ainda erros de detalhe: Abelardo nunca ensinou em Argenteuil; mas hoje já se sabe mais sobre ele. Teríamos querido rectificar do mesmo modo, aqui e além, im- precisões, detalhes que «fazem época», epítetos intempestivos, juízos um pouco peremptórios: culpa da juventude; mas ao suprimi-los correria o risco de suprimir também um certo fervilhar de entusiasmo devido a essa mesma juventude. Podemos invocar para ela a indul- gência do leitor. Essa mesma indulgência que me manifestou, na primeira vez que franqueei, muito intimidada, a porta das edições Grassei, o querido Henry Poulaille, então director do serviço lite- rário. A despeito das suas imperfeições, esta obra pode apresentar para outros uma iniciação um pouco comparável à que recebi na velha casa do n.° 19 da Rue de la Sorbonne.
Seria encetar um outro capítulo — sem dúvida o mais importante — dizer todo o reconhecimento que sinto para com todos os que inspi- raram, acolheram, encorajaram esta obra e me forneceram a sua matéria ou a sua forma. Recuando no tempo, haveria em primeiro lugar os que aconselharam ou quiseram esta reedição: Christian de Bartillat, das edições Stock, ou Françoise Verny, das edições Grassei. E além deles, tantos eruditos, mestres ou colegas. Apre- ciamos melhor, «quand le jour baissc aux fenêtres et que se taisent les chansortb-» ', o alcance do «qu'as-tu que tu ne 1'aies reçu?» 2
( 1 ) Quando o dia declina sob as Janelas e se calam as cançOes. (N. do R. ) ( 2 ) Que adquiriste tu que não tenhas recebido? (N. do R.)
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O que, aliás, se explica: durante esse período de perturbações e de decomposição total que foi a Alta Idade Média, a única fonte de unidade, a única força que permaneceu viva, foi precisamente o núcleo familiar, a partir do qual se constituiu pouco a pouco a uni- dade francesa. A família e a sua base fundiária foram assim, devido às circunstâncias, o ponto de partida da nossa nação. Esta importância dada à família traduz-se por uma preponde- rância, muito marcada na Idade Média, da vida privada sobre a vida pública. Em Roma, um homem não tem valor senão enquanto exerce os seus direitos de cidadão: enquanto vota, delibera e participa nos negócios do Estado; as lutas da plebe para obter o direito de ser representada por um tribuno são a este nível bastante significativas. Na Idade Média, raramente se trata de negócios públicos: ou melhor, estes tomam logo o aspecto de uma administração familiar; são con- tas de domínio, regulamentos de rendeiros e de proprietários; mesmo quando os burgueses, no momento da formação das comunas, recla- mam direitos políticos, é para poderem exercer livremente o seu ofí- cio, não serem mais incomodados pelas portagem e pelos direitos de alfândega; a actividade política, em si, não apresenta interesse para eles. De resto, a vida rural é então infinitamente mais activa que a vida urbana, e, tanto numa como noutra, é a família, não o indivíduo, quem prevalece como unidade social. Tal como nos aparece no século X, a sociedade assim compre- endida apresenta como traço essencial a noção de solidariedade familiar saída dos costumes bárbaros, germânicos ou nórdicos. A família é considerada como um corpo, em todos os membros do qual circula um mesmo sangue, ou como um mundo reduzido, desem- penhando cada ser o seu papel com a consciência de fazer parte de um todo. A união não repousa, pois, como na antiguidade romana, sobre a concepção estatista da autoridade do seu chefe, mas sobre esse facto de ordem biológica e moral, ao mesmo tempo, de acordo com o qual todos os indivíduos que compõem uma mesma família estão unidos pela carne e pelo sangue, os seus interesses são solidários, e nada é mais respeitável que a afeição que naturalmente os anima uns para com os outros. Tem-se muito vivo o sentido desse carácter comum dos seres de uma mesma família:
Les gentils fils des gertiils péres Des gentils et des bonnes mères lis ne font pas de pesants heires [hoirs, héritiers] 2
2 Os gentis filhos dos gentia pois/Dos gentis e dos boas mães/Não se tornam herdeiros pesados.
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diz um autor do tempo. Aqueles que vivem debaixo de um mesmo tecto, que cultivam o mesmo campo e que se aquecem no mesmo fogo, ou, para empregar a linguagem do tempo, os que participam do mesmo «pão e pote» 3 , «que cortam a mesma côdea», sabem que podem contar uns com os outros, que o apoio da sua corte não lhes faltará. O espírito de grupo é, com efeito, mais potente aqui do que poderia ser em qualquer outro agrupamento, já que se funda sobre os laços inegáveis do parentesco pelo sangue e se apoia sobre uma comunidade de interesses não menos visível e evidente. O autor de quem foi citado o extracto precedente, Étienne de Fougères, protesta no seu Livre des Manières [Livro das Maneiras] contra o nepotismo dos bispos; todavia, reconhece que estes fariam bem em rodear-se dos seus parentes «se estão de boas relaçõe.», pois, diz ele, nunca podemos ter a certeza da fidelidade dos estranhos, enquanto os nos- sos, pelo menos, não nos faltarão. Partilha-se, pois, as alegrias e os sofrimentos; recolhe-se em casa os filhos daqueles que morreram ou estão em d;ficuldades, e todas as pessoas de uma mesma casa se agitam para desagravar 4 a injúria feita a um dos seu~> membros. O direito de guerra privada, reconhecido durante grande parte da Idade Média, não é senão a expressão da solidariedade familiar. Correspondia, no seu iníc:o, a uma necessidade: quando da fraqueza do poder central, o indivíduo não podia contar com qualquer outra ajuda a não ser a da corte para o defender, e durante toda a época das invasões ficaria entregue, sozi- nho, a toda a e pécie de perigos e de misérias. Para viver era preciso fazer frente, agrupar-se — e que grupo valeria alguma vez mais que uma família resolutamente unida? A solidariedade familiar, exprimindo-se se fosse preciso pelo recurso às armas, resolvia então o difícil problema da segurança pes- soal e da do domínio. Em certas províncias, particularmente no Norte da França, o habitat traduz este sentimento da solidariedade: o prin- cipal compartimento da casa é a sala, a sala que preside, com a sua vasta lareira, às reuniões de família, a sala onde se reúnem para comer, para festejar nos casamentos e nos aniversário^ e para velar os mortos; é o hall dos costumes anglo-saxões — porque a Inglaterra teve na Idade Média costumes semelhantes aos nossos, aos quais permaneceu fiel em muitos pontos. A esta comunidade de bens e de afeição é necessário um admi- nistrador. É naturalmente o pai de família que desempenha este papel.
³ Em português a expressão correspondente será «comer da mesma gamela». (N. do R) 4 O desagravo é no Portugal medieval o direito de revindicta. (N. do R.)
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do testamenteiro não intervém. Pela morte de um pai de família, o seu sucessor natural entra de pleno direito em posse do património. «O morto agarra o vivo», dizia-se ainda, nessa linguagem medieval, que tinha o segredo das expressões surpreendentes. É a morte do ascendente que confere ao sucessor o título de posse que o coloca de facto na posse da terra; o homem de lei não tem, como nos nossos dias, de passar por isso. Embora os costumes variem conforme o lugar, fazendo aqui do mais velho, além do mais novo o herdeiro natural, embora a maneira como sobrinhos e sobrinhas possam pre- tender à sucessão, à falta de herdeiros directos, varie de acordo com as províncias, pelo menos uma regra é constante: não se recebe uma herança senão em virtude dos laços naturais que unem uma pessoa a um defunto. Isto quando se trata de bens imóveis; os testamentos nunca dizem respeito senão aos bens móveis ou a terras adquiridas durante a vida e que não fazem parte dos bens de família. Quando o herdeiro natural é indigno do seu cargo, notoriamente, ou se é, por exemplo, pobre de espírito, são admitidas alterações; mas em geral a vontade humana não intervém contra a ordem natural das coisas. «Instituição de herdeiro não tem lugar», tal é o adágio dos juristas de direito consuetudinário. É neste sentido que ainda hoje se diz, falando das sucessões reais: «O rei morreu, viva o rei.» Não há interrupção, nem vazio possível, uma vez que só a hereditariedade designa o sucessor. Por isso a gestão dos bens de família se encontra continuamente assegurada. Não deixar o património enfraquecer, tal é realmente o fim que visam todos os costumes. Por isso nunca havia senão um único herdeiro, pelo menos para os feudos nobres. Temia-se a fragmenta- ção, que empobrece a terra, dividindo-a até ao infinito: o parcela- mento foi sempre fonte de discussões e de proces:os; prejudica o culti- vador e dificulta o progresso material — porque, para poder aprovei- tar os melhoramentos que a ciência ou o trabalho põem ao alcance do camponês, é necessário um empreendimento de certa importância, que possa se necessário suportar fracassos parciais e em qualquer caso fornecer recursos variados. O grande domínio, tal como existe no regime feudal, permite uma sábia exploração da terra: pode-se deixar periodicamente uma parte em pousio, o que lhe dá tempo para se renovar, e variar as culturas, mantendo, de cada uma delas, uma harmoniosa proporção. Por isso a vida rural foi extraordinariamente activa durante a Idade Média e uma grande quantidade de culturas foi introduzida em França durante essa época. O que foi devido, em grande parte, às facilidades que o sistema rural da época oferecia ao espírito de iniciativa da nossa raça. O camponês de então não é nem um retardatário nem um rotineiro. A
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unidade e a estabilidade do domínio eram uma garantia tanto para o futuro como para o presente, favorecendo a continuidade do esforço familiar. Nos nossos dias, quando em presença se encontram vários herdeiros, é preciso desmembrar o fundo e passar por toda a espécie de negociações e de resgates para que um deles possa retomar a empresa paterna 7. A exploração cessa com o indivíduo. Ora, o indi- víduo passa enquanto o património fica, e, na Idade Média, tendia-se para residir. Se existe uma palavra significativa na terminologia me- dieval, essa palavra é mansão .senhorial, o lugar onde se está, manere — o ponto de ligação da linhagem, o tecto que abriga os seus membros, passados e presentes, e que permite às gerações sucederem-se paci- ficamente. Bem característico também, o emprego dessa unidade agrária que se denomina manse — extensão de terra suficiente para que uma família possa nela fixar-se e viver. Variava naturalmente com as regiões: um cantinho de terra na gorda Normandia ou na rica Gasconha traz mais ao cultivador que vastas extensões na Bretanha ou no Forez; a manse tem pois uma extensão muito variável conforme o clima, as qualidades do solo e as condições de existência. É uma medida empí- rica, e, característica essencial, de base familiar, não individual: resume por si só a característica mais saliente da sociedade medieval. Assegurar à família uma base fixa, ligá-la ao solo de qualquer forma, para que aí tome raízes, possa dar fruto e perpetuar-se, tal é a finalidade dos nossos antepassados. Se se pode traficar com as riquezas móveis e dispô-las por testamento, é porque por essência são mutáveis e pouco estáveis; pelas razões inversas, os bens fun- diários K, propriedade familiar, são inalienáveis e impenhoráveis. O homem não é senão o guardião temporário, o usufrutuário; o verda- deiro proprietário é a linhagem. Uma série de costumes medievais decorrem desta preocupação de salvaguardar o património de família. Assim, em caso de falta de herdeiro directo, os bens de origem paterna voltam para a família do pai e os de origem materna para a da mãe — enquanto no direito romano só se reconhecia o parentesco por via masculina. É aquilo a que se chama o direito de retorno, que desempata conforme a sua origem os bens de uma família extinta. Do mesmo modo, o asilo de linhagem dá aos parentes mesmo afastados direito de preferência quando por uma razão ou por outra um domínio é vendido. A ma- neira como é regulada a tutela de uma criança que ficou órfã apre-
(7) .Sabemos que disposições r e c e n t e s v i e r a m felizmente modificar o redime das sucessões. (8) Bens fundiários p r o p r i e d a d e s r ú s t i c a s , l i g a d a s à t e r r a , à a g r i - c u l t u r a Base da economia medieval. (N. do R.)
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senta também um tipo de legislação familiar. A tutela é exercida pelo conjunto da família, e aquele cujo grau de parentesco designa para administrar os bens torna-se naturalmente o tutor. O nosso conselho de família não é senão um resto do costume medieval que regula o arrendamento dos feudos e a guarda das crianças. A Idade Média tem, aliás, tão viva a preocupação de respeitar o curso natural das coisa?, de não criar prejuízos quando aos bens familiares, que, no caso em que aqueles que detêm determinados bens morram sem herdeiro, o seu domínio não pode voltar para os ascen- dentes; procura-se os descendentes mesmo afastados, primos ou paren- tes, tudo menos fazer voltar estes bens para os seus precedentes possessores: «Bens próprios não voltam para trás.» Tudo pelo desejo de seguir a ordem normal da vida, que se transmite do mais velho para o mais novo, e não volta para trás: os rios não voltam à nas- cente, do mesmo modo os elementos da vida devem alimentar aquilo que representa a juventude, o futuro. De resto é mais uma garantia para o património da linhagem este virar-se necessariamente para seres jovens, portanto mais activos e capazes de o fazer valer mais longamente. Por vezes, a transmissão dos bens faz-se de uma forma muito reveladora do sentimento familiar, que é a grande força da Idade Média. A família (aqueles que vivem de um mesmo «pão e pote») constitui uma verdadeira personalidade moral e jurídica, possuindo em comum os bens de que o pai é o administrador; pela sua morte, a comunidade reconstitui-se com a orientação de um dos filhos-família, designado pelo sangue, sem que tenha havido interrupção da posse dos bens nem transmissão de qualquer espécie. É aquilo a que se chama a comunidade silenciosa, de que faz parte qualquer membro da casa de família que não tenha sido expressamente posto «fora do pão e pote». O costume sub:istiu até ao fim do Antigo Regime e podem-se citar famílias francesas que durante séculos nunca pagaram o mínimo direito de sucessão. O jurista Dupin assinalava deste modo, em 1840, a família Jault que não o pagava desde o século xiv. Em todos os casos, mesmo fora da comunidade silenciosa, a fa- mília, considerada no seu prolongamento através das gerações, per- manece o verdadeiro proprietário dos bens patrimoniais. O pai de família que recebeu estes bens dos antepassados deve dar conta deles aos seus descendentes; seja ele servo ou senhor, nunca é o dono absoluto. Reconhece-se-lhe o direito de usar, não o de abusar, e tem, além disso, dever de defender, de proteger e de melhorar a sorte de todos aqueles, seres e coisas, de que foi constituído o guardião natural.
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E foi assim que se formou a França, obra destes milhares de famílias, obstinadamente fixadas ao solo, no tempo e no espaço. Fran- cos, Borgonheses, Normandos, Visigodos, todos esses povos móveis, cuja massa instável faz da Alta Idade Média um caos tão descon- certante, formavam, desde o século X, uma nação, solidamente ligada à sua terra, unida por laços mais seguros que todas as federações cuja existência se proclamou. O esforço renovado dessas famílias micros- cópicas deu origem a uma vasta família, um macrocosmo, cuja bri- lhante administração, a linhagem capetiana simboliza à maravilha, gloriosamente conduzindo de pai para filho, durante três séculos, os destinos da França. É certamente um dos mais belos espectáculos que a história pode oferecer, essa família sucedendo-se à nossa cabeça em linha directa, sem interrupção, sem desfalecimento, durante mais de trezentos anos — um tempo igual ao que se passou desde o apare- cimento do rei Henrique IV até à guerra de 1940... Mas o que importa compreender é que a história dos Capetos directos não é senão a história de uma família francesa entre milhões de outras. Esta vitalidade, esta persistência na nossa terra, todos os lares de França a possuíram, num grau mais ou menos equivalente, excepção feita a acidentes ou acasos, inveitáveis na existência. A Idade Média, saída da incerteza e do desacordo, da guerra e da invasão, foi uma época de estabilidade, de permanência, no sentido eti- mológico da palavra. Facto que se deve às suas instituições familiares, tais como as expõe o nosso direito consuetudinário. Nelas se conciliam com efeito o máximo de independência individual e o máximo de segurança. Cada indivíduo encontra em casa a ajuda material, e na solidariedade familiar a protecção moral de que pode ter necessidade; ao mesmo tempo, a partir do momento em que se pode ter necessidade; ao mesmo tempo, a partir do momento em que se basta a si próprio, ele é livre, livre de desenvolver a sua iniciativa, de «fazer a sua vida»; nada entrava a expansão da sua personalidade. Mesmo os laços que o ligam à casa paterna, ao seu passado, às suas tradições, não têm nada de entrave; a vida recomeça inteira para ele, tal como, biologi- camente falando, ela recomeça inteira e nova para cada ser que vem ao mundo — ou como a experiência pessoal, tesouro incomunicável que cada um deve forjar para si próprio, e que só é válido desde que do próprio. É evidente que uma semelhante concepção da família basta para fazer todo o dinamismo e também toda a solidez de uma nação. A aventura de Robert Guiscard e dos irmãos, filho-segundos de uma
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das nossas necessidades? — os nossos costumes que nunca foram mais que os nossos próprios hábitos constatados e formulados juridicamente, os usos de cada indivíduo ou, melhor ainda, do grupo de que cada um fazia parte. O direito romano tinha sido concebido por um Estado urbano, não por uma região rural. Falar da Antiguidade é evocar Roma ou Bizâncio; para fazer reviver a França medieval é preciso evocar não Paris, mas a Ilha de França, não Bordéus, mas a Guiana, não Ruão, mas a Normandia; não podemos concebê-la senão nas suas províncias de solo fecundo em belo trigo e em bom vinho. É um facto significativo ver durante a Revolução aquele a quem se chamava o manant (aquele que fica) tornar-se o cidadão: em «cidadão» há «cida- de». O que se compreende, já que a cidade iria deter o poder político, portanto o poder principal, porque, tendo deixado de existir o cos- tume, tudo deveria a partir daí depender da lei. As novas divisões administrativas de França, os departamentos que giram todos à volta de uma cidade, sem ter em conta a qualidade do solo dos campos que a ela se ligam, manifestam bem esta evolução de estado de espírito. A vida familiar estava nessa época suficientemente enfraquecida para que possam estabelecer-se instituições tais como o divórcio, a aliena- bilidade do património ou as leis modernas sobre as sucessões. As liberdades privadas de que antes se tinha sido tão cioso desapareciam perante a concepção de um Estado centralizado à maneira romana. Talvez devêssemos procurar aí a origem de problemas que depois se puseram com tanta acuidade: problemas da infância, da educação, da família, da natalidade — que não existiam na Idade Média, porque a família era então uma realidade, porque possuía a base material e moral e as liberdades necessárias à sua existência.
Pode-se dizer da sociedade actual que está fundada sobre o salariado. No plano económico, as relações de homem para homem ligam-se às relações do capital e do trabalho: realizar um determinado trabalho, receber em troca uma determinada soma, tal é o esquema das relações sociais. O dinheiro é o seu nervo essencial, já que, salvo raras excepções, uma actividade determinada se transforma primeiro em numerário antes de mudar de novo para quaisquer dos objectos necessários à vida. Para compreender a Idade Média, temos de nos representar uma sociedade que vive de um modo totalmente diferente, donde a noção de trabalho assalariado e mesmo em parte a de dinheiro estão ausentes ou são muito secundárias. O fundamento das relações de homem para homem é a dupla noção de fidelidade, por um lado, e de protecção, por outro. Assegura-se devoção a qualquer pes;oa e espera-se dela em troca segurança. Compromete-se, não a actividade em função de um trabalho preciso, de remuneração fixa, mas a própria pessoa, ou melhor, a sua fé, e em troca requere-se subsistência e protecção, em todos os sentidos da palavra. Tal é a essência do vínculo feudal. Esta característica da sociedade medieval explica-se ao considerar- mos as circunstâncias que presidiram à sua formação. A origem encon- tra-se nessa Europa caótica do século v ao século v i u. O Império Ro- mano desmoronava-se sob o duplo efeito da decomposição interior e da pressão das invasões. Tudo em Roma dependia da força do poder central; a partir do momento em que esse poder foi ultrapassado, a ruína era inevitável; nem a cisão em dois impérios nem os esforços de recuperação provisória poderiam travá-la. Nada de sólido subsiste nesse mundo em que as forças vivas foram pouco a pouco esgotadas por um funcionalismo sufocante, onde o fisco oprime os pequenos proprietários, que em breve não têm outro recurso senão ceder as suas terras ao Estado para pagar os impostos, onde o povo abandona os campos e apela voluntariamente, para o trabalho dos campos, a esses mesmos bárbaros que dificilmente são contidos nas fronteiras;
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é assim que, no Estado da Gália, os Borgonheses se instalam na região Sabóia-Franco-Condado e se tornam os rendeiros dos proprie- tários galo-romanos, cujo domicílio partilham. Sucessivamente, pacifi- camente ou pela espada, as hordas germânicas ou nórdicas assomam no mundo ocidental; Roma é tomada e retomada pelos Bárbaros, os imperadores são eleitos e destituídos conforme o capricho dos soldados, a Europa não é mais que um vasto campo de batalha onde se enfrentam as armas, as raças e as religiões. Como poderá alguém defender-se numa época em que a agitação e a instabilidade são a única lei? O Estado está distante e impotente, senão inexistente; cada um move-se por isso naturalmente em direcção à única força que permaneceu realmente sólida e próxima: os grandes proprietários fundiários, aqueles que podem assegurar a defesa do seu domínio e dos seus rendeiros; fracos e pequenos recorrem a eles; confiam-lhes a sua terra e a sua pessoa, com a condição de se verem protegidos contra os excessos fiscais e as incursões estrangeiras. Por um movimento que se tinha esboçado a partir do Baixo Império e não tinha parado de se acentuar nos séculos VII e VIII, o poderio dos grandes proprietários aumenta com a fraqueza do poder central. Cada vez mais se procura a protecção do «senhor» (sénior), a única activa e eficaz, que protegerá não só da guerra e da fome, mas também da ingerência dos funcionários reais. Assim se multiplicam as cartas de vassalagem, pelas quais a arraia-miúda se liga a um «senhor» para assegurar a sua segurança pessoal. Os reis merovíngios tinham, aliás, o hábito de se cercarem de uma corte de «fiéis» (fidèles), de homens devotados à sua pessoa, guerreiros ou outros, o que levará os pode- rosos da época a agruparem à sua volta, por imitação, os «vassalos» (vassi), que julgaram bom recomendarem-se a eles. Enfim, estes reis, eles próprio:, ajudaram muitas vezes à formação do poder dominial, distribuindo terras aos seus funcionários — cada vez mais desprovidos de autoridade face aos grandes proprietários — para retribuir os seus serviços.
Quando os Carolíngios chegaram ao poder, a evolução estava quase terminada: em toda a extensão do território, senhores, mais ou menos poderosos, agrupando à sua volta os seus homens, os seus fiéis, administravam os feudos, mais ou menos extensos; sob a pressão dos acontecimentos, o poder central tinha dado lugar ao poder local, que tinha absorvido, pacificamente, a pequena propriedade e perma- necia, afinal de contas, a única força organizada; a hierarquia medie- val, resultado dos factos económicos e sociais, tinha-se formado a partir de si própria, e os seus u?os, nascidos sob a pressão das circuns- tâncias, manter-se-iam pela tradição. Não tentaram lutar contra o estado dos acontecimentos: a dinastia
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de Pepino tinha de resto chegado ao poder porque os seus represen- tantes se contavam entre os mais fortes proprietários da época. Con- tentaram-se em canalizar as forças em presença das quais faziam parte e em aceitar a hierarquia feudal tirando dela o partido que podiam tirar. Tal é a origem do estado social da Idade Média, cujas características são completamente diferentes das que se conheceram até aí: a autoridade, em lugar de estar concentrada num só ponto — indivíduo ou organismo —, encontra-se repartida pelo conjunto do território. Foi essa a grande sabedoria dos Carolíngios, não ten- tarem ter nas mãos toda a máquina administrativa, mantendo a orga- nização empírica que tinham encontrado. A sua autoridade imediata não se estendia senão a um pequeno número de personagens, que possuíam elas próprias autoridade sobre outros, e assim de seguida até às camadas sociais mais humildes; mas, degrau a degrau, uma ordem do poder central podia assim transmitir-se ao conjunto do país; aquilo que não controlavam directamente podia todavia ser atingido indirectamente. Em lugar de combatê-la, pois, Carlos Magno contentou-se em disciplinar a hierarquia que deveria impregnar tão fortemente os hábitos franceses; reconhecendo a legitimidade do duplo juramento que todo o homem livre devia a si próprio e ao seu senhor, ele consagrou a existência do vínculo feudal. Tal é a origem da socie- dade medieval, e também a da nobreza, fundiária e não militar, como se julgou demasiadas vezes. Desta formação empírica, modelada pelos factos, pelas necessi- dades sociais e económicas l, decorre uma extrema diversidade na condição das pessoas e dos bens, já que a natureza dos compromissos que uniam o proprietário ao seu rendeiro variava segundo as circuns- tâncias, a natureza do solo e o modo de vida dos habitantes; toda a espécie de factores entram em jogo, os quais diferem de uma província para a outra, ou mesmo de um domínio para o outro, as relações e a hierarquia; mas o que permanece estável é a obrigação recíproca: fidelidade por um lado, protecção pelo outro — por outras palavras: o vínculo feudal. Durante a maior parte da Idade Média, a principal característica deste vínculo é ser pessoal: um determinado vassalo, preciso e deter- minado, recomenda-se a um determinado senhor, igualmente preciso c determinado; decide vincular-se a ele, jura-lhe fidelidade e espera cm troca subsistência material e protecção moral. Quando Roland morre, evoca «Carlos, seu senhor que o alimentou», e esta simples evocação diz bastante da natureza do vínculo que os une. Somente a
' Citemos a excelente fórmula de Henrl Pourrat: «O sistema feudal foi a organização viva Imposta pela terra aos homens da terra» (L'homme á Ia bêche Historie du paysan, p. 83).
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lugar uma função guerreira: defender o seu domínio contra as possí- veis usurpações; de resto, embora se esforçassem por reduzi-lo, o direito de guerra privada subsistia e a solidariedade familiar podia implicar a obrigação de vingar pelas armas as injúrias feitas a um dos seus. Uma questão de ordem material se lhe acrescentava: os senhores, detendo a principal, senão a única fonte de riqueza, a terra, eram os únicos a ter a possibilidade de equipar um cavalo de guerra e de armar escudeiros e sargentos. O serviço militar será portanto inseparável do serviço do feudo, e a fé prestada pelo vassalo nobre supõe o contributo das suas armas sempre que «disso for mester». É o primeiro cargo da nobreza, e um dos mais onerosos, essa obrigação de defender o domínio e os seus habitantes.
L'épée dit: Cest ma justice^3 Garder les deres de Saint Église* Et ceux par qui viandes est quise^5.
As praças-fortes mais antigas, aquelas que foram construídas nas épocas de perturbação e de invasões, mostram a marca visível dessa necessidade: a aldeia, as casas dos servos e dos camponeses, estão ligadas às encostas da fortaleza, onde toda a população irá refugiar-se em altura de perigo e onde encontrará ajuda e abastecimento em caso de cerco. Das suas obrigações militares decorre a maior parte dos hábitos da nobreza. O direito de morgadio vem em parte da necessidade de confiar ao mais forte a herança que ele deve garantir, muitas vezes pela espada. A lei de masculinidade explica-se também dessa forma: só um homem pode assegurar a defesa de um torreão. Por isso tam- bém, quando um feudo «cai em roca», quando uma mulher é a única herdeira, o suserano, sobre o qual recai a responsabilidade desse feudo que ficou assim em estado de inferioridade, sente-se no dever de casá-la. É por isso que a mulher não sucederá senão após os filhos mais novos, e estes após o mais velho; só receberão apanágios; por isso os desastres que tiveram lugar no fim da Idade Média tiveram como origem os apanágios excessivamente importantes dei- xados por João, o Bom, aos filhos, cujo poder se tornou para eles uma tentação perpétua, e para todos uma fonte de desordens, durante a menoridade de Carlos VI.
(3) Ofício. (4) Aqueles que se ocupam da alimentação, da vida material (os camponeses). Poema de Carité, de Reclus de Molliens. (5) A espada disse: é meu dever/Manter os clérigos da Santa Igreja/ e aqueles para quem os alimentos são obtidos.
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Os nobres têm igualmente o dever de administrar a justiça aos seus vassalos de qualquer condição e de administrar o feudo. Trata-se do exercício de um dever, e não de um direito, que implica respon- sabilidades muito pesadas, já que cada senhor deve dar conta do seu domínio não só à sua linhagem, mas também ao seu suserano. Étienne de Fougères descreve a vida do senhor de um grande domínio como cheia de preocupações e de fadigas:
Cà et là va, souvent se tourne, Ne repose ni ne séjorne: Château abord, château aourne, Souvent haitié, plus souvent mourne. Cà et là va, pas ne repose Que sa marche ne soit déclose^6.
Longe de ser ilimitado, como de uma maneira geral se julgou, o seu poder é bem menor que, nos nossos dias, o de um chefe de indústria ou um qualquer proprietário, já que nunca tem a propriedade absoluta dos seus domínios, depende sempre de um suserano, e, no fim de contas, os suseranos mais poderosos dependem do rei. Nos nossos dias, de acordo com a concepção romana, o pagamento de uma terra confere pleno direito sobre ela. Na Idade Média não é assim: em caso de má administração, o senhor sofre penalizações que podem ir até à confiscação dos seus bens. Deste modo, ninguém governa com autoridade total nem escapa ao controlo directo daquele de quem depende. Esta repartição da propriedade e da autoridade é um dos traços mais característicos da sociedade medieval. As obrigações que ligam o vassalo ao seu senhor implicam de resto reciprocidade: «O senhor deve tanto fé e lealdade ao seu homem como o homem ao seu senhor», diz Beaumanoir. Esta noção de dever recíproco, de serviço mútuo, encontra-se muitas vezes tanto nos textos literários como jurídicos:
Graigneur jait a sire à son homme Que Vhomme à son seigneur et dome^7
observa Étienne de Fougères, já citado no seu Livre des Manières [Livro das Maneiras] ; e Philippe de Novare nota, a apoiar esta
(6) Anda de cá para lá e muitas vezes muda de direcção/Não repousa nvm se detém:/Castelo dentro, castelo fora,/Muitas vezes alegre, mais vezes trixte./Anda de cá para lá, não repousa/Senão quando o seu caminho está aberto. (7) O senhor deve mais reconhecimento ao seu vassalo, que ele pró- prio devo deve ao senhor.
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constatação: «Aqueles que recebem serviço e nunca o recompensam bebem o suor dos seus servos, que é veneno mortal para o corpo e para a alma.» Donde também a máxima: «Para bem servir convém bom ter.» (A Bien servir convient Eurs^ Avoir.) Como é de justiça, exige-se da nobreza mais dignidade e rectidão moral que dos outros membros da sociedade. Por uma mesma falta, a pena infligida a um nobre será muito superior à que é destinada a um plebeu. Beaumanoir cita um delito para o qual «pena de cam- ponês é de sessenta soldos e de nobre de sessenta libras» — o que constitui uma desproporção muito grande: de 1 para 20. Segundo os Etablissements de Saint-Louis, uma determinada falta pela qual um homem ordinário, isto é, um plebeu, pagará cinquenta soldos de pena, implicará para um nobre a confiscação de todos os seus bens móveis. O que se encontra também nos estatutos de diferentes cida- des; os de Pamiere fixam do seguinte modo a tarifa das penas em caso de roubo: vinte libras para o barão, dez para o cavaleiro, cem soldos para o burguês, vinte soldos para o vilão. A nobreza é hereditária, mas pode também ser adquirida, quer por retribuição de serviços prestados, quer, muito simplesmente, pela aquisição de um feudo nobre. Foi o que aconteceu em grande escala no fim do século xin: numerosos foram os nobres mortos ou arrui- nados nas grandes expedições do Oriente, e vêem-se famílias de bur- gue:es que enriqueceram, atingir em massa a nobreza, o que provocou no seu seio uma reacção. A cavalaria enobrece de igual modo aquele a quem é conferida. Finalmente, houve, em sequência dos factos, cartas de nobreza distribuídas, é certo, muito parcimoniosamente-^9 Se a condição de nobreza pode adquirir-se, pode igualmente perder-se, por prescrição, em consequência de uma condenação infa- mante. A vergonha de uma hora do dia, Apaga completamente a honra de quarenta anos,
dizia-se. Ela perde-se ainda por infracção quando um nobre é suposto ter exercido um ofício plebeu ou um tráfego qualquer: é-lhe interdito com efeito sair do papel que lhe é entregue, e não deve também pro-
(8) Termo que corresponde a recompensa, com um sentido mais alar- gado: felicidade, bem-estar. (9) O Antigo Regime teve tendência para impedir cada vez mais o acesso à nobreza, o que contribuiu para fazer dela uma casta fechada, que isolava o rei dos seus súbdidtos. Em Inglaterra, as numerosas nobilitações deram pelo contrário excelentes resultados, renovando a aristrocracia com a ajuda de elementos novos 1 fazendo dela uma classe aberta e vigorosa.
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curar enriquecer, assumindo cargos que o fariam negligenciar aqueles aos quais a sua vida deve ser votada. Exceptua-se de resto dos ofícios plebeus aqueles que, necessitando de recursos importantes, não po- deriam de todo ser realizados senão por nobres: por exemplo, a vidraria ou a mestria de forjas; do mesmo modo o tráfego marítimo é permitido aos nobres porque exige, para lá dos capitais, um espí- rito de aventura que ninguém ousaria entravar. No século XVII, Colbert alargará no mesmo sentido o campo de actividade económica da nobreza, para dar mais impulso ao comércio e à indústria. A nobreza é uma classe privilegiada. Os seus privilégios são em primeiro lugar honoríficos: direitos de presidência, etc. Alguns decorrem dos cargos que desempenha: assim, só o nobre tem direito à espora, ao cinturão e à bandeira, o que lembra que na origem só os nobres tinham o direito de equipar um cavalo de guerra. A par disso, desfruta de certas isenções, as mesmas de que desfrutavam primitivamente todos os homens livres; exemplo disto é a isenção da talha 1(1^ e de certos impostos indirectos, cuja importância, nula na Idade Média, não parou de crescer no século x v i e sobretudo no século XVII. Finalmente, a nobreza possui direitos precisos, e esses substan- ciais: encontram-se neste número todos os que decorrem do direito de propriedade: direito de cobrar censos, direito de caça e outros. Os censos e rendas pagos pelos camponeses não são outra coisa senão o aluguer da terra onde tiveram permissão de se instalarem, ou que os seus antepassados julgaram por bem abandonar a um proprietário mais poderoso que eles próprios. Os nobres, ao cobrar os censos, estavam exactamente na situação de um proprietário de imóveis cobrando os seus alugueres. A origem longínqua deste direito de propriedade apagou-se pouco a pouco e, na época da Revolução, o camponês acabou por se tornar legítimo proprietário de uma terra da qual era locatário desde há séculos. Aconteceu o mesmo a esse famoso direito de caça, que se quis representar como um dos abusos mais gritantes de uma época de terror e de tirania: que haverá mais legítimo, para um homem que aluga um terreno a outro, que reser- varse o direito de caçar nele? " Proprietário e rendeiro sabem ambos ao que se obrigam no momento em que acordam as suas obrigações
(10) imposto directo. Pago pelos camponeses em França até ao fim do Antigo Regime, 1789. Em. Portugal corresponde este imposto à «julgada». (N. da R.) (11) Ainda assim 6 preciso estabelecer uma distinção entre as épocas: o direito de caça .só foi reservado, e isto apenas para a caça grossa, turdiamente',por volta do século XIV. As interdições formais só aparecem no século XVI Quanto à pesca, permaneceu livre para todos.
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dos trabalhos dos campos, desde a lavragem até à colheita, sem ser perturbado, é considerado o único proprietário dessa terra.^2 Isto dá ideia do número infinito de modalidades que podemos encontrars. Hóspedes, colonos, lhes, servos são termos que designam condições pessoais diferentes. E a condição das terras apresenta uma variedade ainda maior^4 : censo, renda, champart, fazenda, proprie- dade en bordelage, en marche, en queuaise, à complan, en collonge; conforme as épocas e as regiões, encontramos uma infinidade de acepções diferentes na posse da terra com um único ponto comum: é que, salvo o caso especial do alódio livre, há sempre vários pro- prietários, ou pelo menos vários, a ter direito sobre um mesmo domínio. Tudo depende do costume, e o costume adapta-se a todas as variedades de terrenos, de climas e de tradições — o que de resto é lógico, já que não se poderia exigir daqueles que vivem num solo pobre as obrigações que podem ser impostas, por exemplo, aos cam- poneses da Beócia ou da Touraine. De facto, eruditos e historiadores tentam ainda analisar uma das matérias mais complexas que foi oferecida à sua sagacidade: há abundância e diversidade de costumes; há em cada uma delas uma infinidade de diferentes condições, desde a do arroteador, que se instala numa terra nova e ao qual se pedirá apenas uma fraca parte das colheitas, até ao cultivador estabelecido numa terra em plena produção e sujeito aos censos e rendas anuais; há os erros sempre possíveis provenientes das confusões de termos, já que estes cobrem por vezes realidades completamente diferentes conforme as regiões e as épocas; há finalmente o facto de a sociedade medieval estar em perpétua evolução, e aquilo que é verdade no século XII já não o é no século XIV. O que se pode todavia saber com segurança, é que houve na Idade Média, para lá da nobreza, um conjunto de homens livres que prestavam aos seus senhores um juramento mais ou menos seme- lhante ao dos vassalos nobres e um conjunto não menos grande de indivíduos de condição um pouco imprecisa entre a liberdade e a
(2) Em Portugal, este tipo de camponeses livres chamavam-se «her- dadores» e «enfiteutas». (N. do RJ » No Portugal medieval, e segundo Damião Peres, encontramos a partir de uma hierarquia ascendentes: adscritos à gleba, colonos livres, herdadores e enfiteutas. (N. do RJ * Entre nos, as propriedades, segundo a sua posse, podem ser:
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servidão. O jurista Beaumanoir distingue nitidamente três estados: «Nem todos os francos são nobres... Porque chamam-se nobres aqueles que provêm de linhagens francas, como o rei, duques, condes ou cavaleiros; e esta nobreza é sempre transmitida pelos pais [...] Mas não acontece o mesmo para o homem livre (poosté)^6 , porque o que eles têm de franquia vem-lhes pelas mães, e qualquer pessoa que nasça de mãe franca, é franca — e tem livre pooslé, para fazer o que qui- ser... e o terceiro estado é o de servo. E este conjunto de gente não é toda de uma condição, existem várias condições de servidão [...]» Vemos que não faltam distinções a estabelecer- Os livres são todos os habitantes das cidades; estas, sabemo-lo, multiplicam-se a partir do começo do século XII. O grande número delas que ainda hoje têm o nome de Villefranche^6 , Villeneuve, Bastide, etc, são para nós uma recordação dessas cartas de povoamento pelas quais todos aqueles que acabavam de se estabelecer numa dessas cidades recentemente criadas eram declarados livres, como eram bur- gueses e artesãos nas comunas, e em geral em todas as cidades do reino. Para lá disso, um grande número de camponeses é livre; nomeadamente aqueles a quem se chamava plebeus ou vilãos, não tendo os termos, bem entendido, o sentido pejorativo que depois tomaram; o plebeu é o camponês, o trabalhador, pois rutura, designa a acção de romper a terra com a relha da charrua; o vilão é de uma maneira geral aquele que habita um domínio, villa. Depois vêm os servos. A palavra foi muitas vezes mal compre- endida, porque se confundiu a servidão, própria da Idade Média, com a escravatura que foi a base das sociedades antigas e da qual não se encontra qualquer rasto na sociedade medieval. Como refere Loisel: «Todas as pessoas são francas neste reino, e logo que um escravo atinge os degraus do conhecimento (ice lui) fazendo-se baptizar, é franqueado.» Tendo a Idade Média por força das circunstâncias ido buscar o seu vocabulário à língua latina seria tentador concluir da semelhança dos termos a semelhança de sentido. Ora, a condição do servo é totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualquer actividade pessoal é-lhe recusada; não conhece nem família; nem casamento, nem propriedade. O servo, pelo contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam- -no como tal. Possui uma família, uma casa, um campo e fica deso- brigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos. Não está
(3) Homem de poosté, designa o vilão em geral. * Em Portugal tambem existe esta origem no nome de algumas cidades e vilas: Vila 1'Yanca. (N. do R.)
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submetido a um patrão, está ligado a um domínio: não é uma ser- vidão pessoal, mas uma servidão real. A restrição imposta à sua liberdade é que não pode abandonar a terra que cultiva. Mas, note- mo-lo, essa restrição não deixa de ter uma vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem tirar-lha; esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser considerada um privilégio, e, de facto, o termo encontra-se numa recolha de costumes, o Brakton, que diz expressamente falando dos servos: «tali gaudent privilegio, quod a gleba amoveri non poterunt [...] gozam desse privilégio de não poderem ser arrancados à sua terra» (mais ou menos aquilo que seria nos nossos dias uma garantia contra o desemprego). O rendeiro livre está submetido a toda a espécie de responsabilidades civis que tornam a sua sorte mais ou menos precária: se se endivida, podem confiscar-lhe a terra; em caso de guerra, pode ser forçado a tomar parte nela, ou o seu domínio pode ser destruído sem compensação possível. O servo, esse, está ao abrigo das vicissitudes da sorte; a terra que trabalha não pode escapar-lhe, da mesma maneira que não pode afastar-se dela. Esta ligação à gleba é muito reveladora da mentalidade medieval, e, notemo-lo, a este nível, o nobre está submetido às mesmas obrigações que o servo, porque ele tão-pouco pode em caso algum alienar o seu domínio ou separar-se dele de qualquer forma que seja: nas duas extremidades da hierarquia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade, de fixação, inerente à alma medieval, que produziu a França e de uma maneira geral a Europa ocidental. Não é um paradoxo dizer que o camponês actual deve a sua prosperidade à servidão dos seus antepassados; nenhuma instituição contribuiu mais para o destino do campesinato francês; mantido durante séculos sobre o mesmo solo, sem responsabilidades civis, sem obrigações militares, o camponês tornou-se o verdadeiro senhor da terra; só a servidão poderia realizar uma ligação tão íntima do homem à gleba e fazer do antigo servo o proprietário do solo- Se a condição do camponês na Europa oriental, na Polónia e noutros lugares, permaneceu tão miserável, é porque não houve esse laço protector da servidão; nas épocas de perturbação, o pequeno proprietário, entregue a si próprio, responsável pela sua terra, conheceu as mais terríveis angústias que facilitaram a formação de domínios imensos; donde um flagrante desequilíbrio social, con- trastando a riqueza exagerada dos grandes proprietários com a con- dição lamentável dos seus rendeiros. Se o camponês francês pôde desfrutar até aos últimos tempos de uma existência fácil, em relação ao camponês da Europa oriental, não é apenas à riqueza do solo que o deve, mas também e sobretudo à sabedoria das nossas antigas instituições, que fixaram a sua sorte no momento cm que linha mais
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necessidade de segurança e o subtraíram às obrigações militares, as quais, posteriormente, pesaram mais duramente sobre as famílias camponesas. As restrições impostas à liberdade do servo decorrem todas dessa ligação ao solo. O senhor tem sobre ele direito de séquito, isto é, pode levá-lo à força para o seu domínio em caso de abandono, porque, por definição, o servo não pode deixar a terra; só é feita excepção para aqueles que partem em peregrinação. O direito de jormariage arrasta a interdição de se casar fora do domínio senhorial quem se encontrar adscrito, ou, como se dizia, «abreviado»; mas a Igreja não deixará de protestar contra este direito que atentava contra as liber- dades familiares, e que se atenuou de facto a partir do século x; estabelece-se então o costume de reclamar somente uma indemnização pecuniária ao servo que deixava um feudo para se casar num outro; aí se encontra a origem desse famoso «direito senhorial», sobre o qual foram ditos tantos disparates: não significava outra coisa senão o seu direito de autorizar o casamento dos servos; mas como, na Idade Média, tudo se traduz por símbolos, o direito senhorial deu lugar a gestos simbólicos cujo alcance se exagerou: por exemplo, colocar a mão, ou a perna, no leito conjugal, donde o termo por vezes em- pregado de direito de pernada, que suscitou tantas interpretações de- ploráveis, de resto perfeitamente erradas. A obrigação sem dúvida mais penosa para o servo era a mão- -morta: todos os bens por ele adquiridos durante a vida deviam depois da sua morte regressar para o senhor; por isso também essa obrigação foi reduzida desde muito cedo, e o servo ficou com o direito de dispor por testamento dos seus bens móveis (porque a sua propriedade passava de qualquer modo para os filhos). Além disso, o sistema de comunidades silenciosas permitiu-lhe, conforme o costume do lugar, escapar à mão-morta, já que o servo podia, como o plebeu, formar com a família uma espécie de sociedade agrupando todos aqueles que pertenciam a um mesmo «pão e pote», com um chefe temporário cuja morte não interrompia a vida da comunidade, continuando esta a desfrutar dos bens de que dispunha. Finalmente, o servo podia ser franqueado; as franquias multi- plicaram-se mesmo a partir do século XIII, já que o servo devia com- prar a sua liberdade, quer em dinheiro, quer comprometendo-se a pagar um censo anual como o rendeiro livre. Temos um exemplo na franquia dos servos de Villeneuve-Saint-Georges, dependente de Saint-Germain-des-Prés, por uma soma global de 1400 libras. Esta obrigação do resgaste explica sem dúvida por que razão as franquias foram muitas vezes aceites de muito mau grado pelos seus benefi- ciários; a ordenança de Luís X, o Hutin, que em 1315 franqueou