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Livro do Jurista Alemão Jhering
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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(Zweck im Recht) — EDITORES B PROPRIETÁRIOS — JOSÉ BASTOS & C.° — COMPOSIÇÃO F. IMPRESSÃO DA TTPOORAPntA BA ANTIGA CASA KERTHAKI — — SUA DA AI.KOKIA, 100—LISBOA
Rudolf von Jhering
Vertido da trad. francesa de O. DE MEULENAERE Conselheiro da Relação de Gand POR ABEL D´AZEVEDO Advogado
LISBOA Antiga Casa Bertrand - JOSÉ BASTOS & C.a - Editores 73-Rua Garrett-
No seu livro intitulado O Direito puro v. e. prestou uma brilhante homenagem áquelle a quem chama um extraordi- nario jurisconsulto, o maior (v. e. assim o crê firmemente) do seculo XIX. JHERING é um poderoso gravador de impres- sões e no seu estylo cheio de imagens conseguiu, com uma penetração extraordinaria, trazer para a plena luz os mais subtis arcanos, os abysmos e os subsolos do direito. Na parte complementar da sua obra, consagrada á historia da encyclopédia do direito, caracterisa v. e. n'estes termos o papel de JHERINQ na evolução da sciencia do direito puro (p. 502): "JHERINQ apparece e prophetísa. É de balde que elle affecta ares de romanista. É de balde que as suas obras mais consideradas são consagradas ao estudo aprofundado da legislação famosa que vai desde Romulo até Justiniano. O iseu genio jurídico irrompe, batendo poderosamente as azas, d'esse recinto demasiadamente estreito para os seus potentes desejos, e proclama, recreando-se, algumas das mais significativas e mais profundas verdades encyclopédicas.» Estas palavras impressionaram-me, perturbaram-me, porque eu só tenho tornado conhecidas do publico que fala a lingua francesa as obras de JHERING que elle consagrou ao estudo do direito romano. Não tenho pois feito ainda o bastante pela sua gloria, e resta-me cumprir um piedoso dever para com a memoria do grande jurista—o de tornar conhecida a sua obra mais vasta, a que occupou todos os seus instantes durante os ultimos vinte annos da sua vida, e que encerra, inteira e completa, a synthese do seu pensamento jurídico.
8 PREFACIO Uma outra consideração me levou a realisar emfim esta traducção, que offerecia grandes difficuldades, e a dedical-a a v. e. V. e. é o protagonista das bellas e vastas especulações da philosophia do direito, e por certo notou, como eu, que desde que todo o mundo se dedica á sociologia, se encontram por toda a parte, já na imprensa, já fora d'ella, as ideias mais estranhas sobre pontos que dizem respeito ás bases da ordem social. V. e. verá como JHERINO estabelece essas bases, e agradecer-me-á, creio, o ter feito jorrar em proveito do publico francês, cobrindo-me com o nome do grande pensador, relampagos que surprehendem, que deslumbram, que derramam uma fulguração inesperada sobre vastos espaços onde só a treva parecia reinar. O ultimo volume do Espirito do Direito Romano termi- nava por uma exposição da theoria geral dos direitos. N'este examinava o auctor os elementos substanciaes do direito, e, afastando-se das theorias geralmente admittidas desde HEGEL, segundo as quaes a substancia do direito reside na vontade, estabelecia que os direitos são interesses juridicamente pro- tegidos. A substancia do direito é, pois, a utilidade. A continnação da obra devia fornecer a demonstração e o desenvolvimento d'esta these. Mas logo desde os primeiros passos ella se revelou estreita em demasia. A noção de interesse foi substituída pela do fim pratico dos direitos sub- jectivos, e até estes' mesmos desappareceram diante do direito objectivo em toda a sua generalidade. D'aqui pro- veiu uma these nova, mais larga, mais comprehensiva — o fim do direito, a finalidade na ordem jurídica. Era toda a theoria da evolução applicada ao direito. Este grandioso programma era de molde a seduzir aquelle alto espirito, que se lhe consagrou apaixonadamente; e desde 1865, data da primeira publicação do seu Espirito do Direito Romano, até ao fim dos seus dias (1892), não cessou de trabalhar na sua realisação, protestando rever a sua obra logo que concluísse a sua nova empreza. Esta convertera-se para elle em uma questão vital. Tratava-se de provar que o fim criou
Eis aqui, a titulo de curiosidade, alguns fragmentos de cartas escriptas pelo auctor, e que reproduzem o seu próprio pensamento acerca da obra cuja traducção emprehendi: 7 de abril de 1875. — Trabalho actualmente em uma obra a que dou o titulo de Zweck im Recht. Tenho esperanças de que o livro appareça no decurso do corrente verão. Foi-me esta obra suggerida pela minha theoria dos direitos, de que tratei no ultimo volume do Espirito do Direito Romano, e que primitivamente devia formar um só capitulo. Mas a materia assumiu uma tal extensão, que pensei em fazer d'ella um estudo completo. Se eu conseguir leval-a a cabo tal como a concebi, ha-de impôr-se aos pensadores. N'ella exponho o que seja a minha concepção actual do direito, noção a que eu proprio só me elevei ao passo que ia caminhando nos meus trabalhos... N'esta obra trato em primeiro logar do fim dos direitos em sentido subjectivo; e depois do fim do direito em sen- tido objectivo. 4 de setembro de 1875. — Ha annos que eu penso em um escripto pouco extenso, cuja primeira inspiração me foi fornecida pela theoria dos direitos exposta no T. IV do Es- pirito do Direito Romano. O meu primitivo projecto con- sistia em fazer d'ella um capitulo no principio do T. V. Mas o capitulo começou a attingir proporções muito avantajadas: a materia era tão fertil, que se tornou impossivei tratal-a como um simples fragmento ligado ao Espirito do Direito Romano; e. assim, resolvi fazer d'ella um estudo completo.
E, tendo concluído uma parte do seu trabalho, JH. es- creve: É um parto, é a realisação formal do que eu sonho ha dez annos: puz todo o meu eu n'esta obra: não é somente uma parcella de mim, é todo o meu eu scientifico; e publicaria este livro ainda mesmo quando tivesse a certeza do seu mau exito. 25 de dezembro de 1880. — Quanto mais trabalho n'isto, mais o meu thema se desenvolve: converte-se em uma especie de Philosophia do Direito, na exposição de uma sciencia social completa. Eu projectara escrever uma bro- chura, e já compuz dois volumes. O meu espirito padece n'esta constante procura da expressão exacta... 26 de junho de 1882. — O meu assumpto empolga-me, já não sou senhor d'elle; sou antes escravo do meu livro. Sou como o viajante que anda explorando uma região desco- nhecida, registando todas as minhas descobertas, com a plena convicção de que estou prestando um serviço á sciencia. Se eu fosse o successor de mim proprio, se muitas das coisas que eu me julgo obrigado a dizer estivessem já ditas, poderia eu fazer mais breve a minha obra e arranjar mais artisticamente a sua forma. Saccede, porém, com este traba- lho, o mesmo que succedeu com o meu livro O Espirito do Direito Romano: tive de sacrificar o plano methodico á novidade das minhas descobertas. Tenho a consciencia, que me atormenta, d'essa falta de equilíbrio. Estou sempre a fazer proposito de ser breve, mas julgaria não ser justo dei- xando de desenvolver completamente cada ideia nova de modo a deixar-lhe o cunho bem impresso. Poderão appro- var-me ou combater-me; mas a ninguem será permittido ficar indifferente. 30 (fabril de 1883.— Esta obra, que não o Espirito do Direito Romano, contém o resultado de toda a minha vida scientifica. Só a comprehenderão quando estiver concluida. O Espirito do Direito Romano não passa, na minha mente, de uma preparação. Mas o Espirito do Direito Romano de- via ser escripto para encetar este estudo, cuja elaboração encerra a minha suprema missão scientifica.
14 A EVOLUÇÃO DO DIREITO ou tal propósito. Este para que rege tão inilludivelmente a acção da vontade, como o porque determina o movimento da pedra que cai. Um acto da vontade sem causa final, é uma impossibilidade tão absoluta como o movimento da pedra sem causa efficiente. Tal é a lei de causalidade: psy-enológica no primeiro caso, ella é puramente mecânica no segundo. A primeira chamarei lei de finalidade, em pri-meiro logar por brevidade, e, em segundo logar, para frizar bem, por esta mesma denominação, que a causa final é a única razão psychologica da vontade. Quanto á lei de causalidade mecanica, a expressão "lei de causalidade» bastará para a designar no decurso d'este trabalho. Essa lei, n'este ultimo sentido, pode enuncíar-se d'este modo: nenhum acontecimento se produz no mundo physico sem um acon- tecimento anterior em que elle encontra a sua causa. E a banalidade habitual: nãô ha effeito sem causa. A lei de fina- lidade diz: não ha querer, ou, o que vem a dar o mesmo, não ha acção sem um fim.
volvimento psychico, revelam-se immediatamente o amor pela existencia, pela espontaneidade e pela conservação pessoal, ou, em outros termos, a vontade e o fim da voli- ção. Em presença de si mesmo todo o ser vivo é o seu proprio protector e guarda, o encarregado da sua própria conservação. Esse fim descobre-lho a previdente natureza, e revela-lhe os meios de não falhar na sua consecução.
A EVOLUÇÃO DO DIREITO 17 agua. O proprio saber, ainda o mais extenso, tambem ainda não é a vida; um livro que contivesse, desvendando-o, o segredo de toda a criação, nunca passaria de um livro. Tão pouco a sensação é ainda a vida. Se a planta sentisse tão dolorosamente como o animal a ferida que lhe fazem, nem por isso ficaria egual a elle. A vida animal, tal como a na- tureza a concebeu e a executou, é a afirmação feita pelo ser vivo da sua existencia pelas forças proprias (volo e não cogito, ergo sum); a vida é a adaptação pratica do mundo exterior aos fins da existencia propria. Tudo o que arma o ser vivo: sensação, intelligencia, memoria, não tem outra missão que não seja a de ajudal-o n'esta adaptação. A intel- ligencia e a sensação seriam de per si sós impotentes, se a memoria lhes não prestasse concurso; é esta que congrega e firma na experiencia os fructos que aquellas teem produ- zido, para os tornar uteis aos fins da existencia. Nem a vontade nem a vida são inseparaveis da consciên- cia de si mesmo. Se conseguirmos apprehender com preci- são a correlação intima que existe entre ellas, veremos que a opinião que denega á volição do animal o nome de von- tade com o fundamento de que lhe falta a consciencia de si mesmo, e que revindica este nome exclusivamente para a volição humana, em vez de repousar sobre uma ideia profunda, é, pelo contrario, inteiramente superficial e acanhada. Os traços característicos da vontade humana, com excepção da consciencia de si proprio, a qual mesmo no homem pode ser definitiva ou momentaneamente oblite- rada, ou falhar, revelam-se tambem no animal. Mais tarde o provaremos. A propria memoria do animal, que se suppõe residir no seu querer, é infinitamente mais intelligente do que o parece á primeira vista. É facil dizer que a acção do animal é determinada pela concepção de um acontecimento futuro; mas, no emtanto, quantas coisas n'estas palavras! A concepção de uma coisa futura é a intuição de um futuro contingente. O animal, porque compara o futuro com a situação actual, atesta a sua capacidade para discernir pra- ticamente a categoria do real e a do possível Elle distin- 2
gue egualmente o fim e o meio, e utilisa-os. Se a sua intelli- gencia não abrangesse taes ideias, a volição n'elle não se conceberia. Longe de sentir desdem pelo querer do animal, eu tenho por elle, ao contrario, a mais alta estima. Tentarei mesmo colher n'elle, no capitulo seguinte, o schema da finalidade em geral. As considerações que ficam expostas, demonstraram que o fim é a concepção de um acontecimento futuro que a vem-, tade tende a realisar. Esta noção do fim está longe de com- prehender inteiramente a sua essencia, deve porém bastar- nos por agora, até que, avançando em nossas investigações, j cheguemos a ponto de poder substituil-a por uma noção mais plenamente completa. Vamos servir-nos d'ella como. do x do mathematico, isto é, como de uma quantidade des- conhecida.
20 A EVOLUÇÃO DO DIREITO exemplo dado o argumento só é exacto se se beber impel- lido pela sede —porque então, de facto, não se trata de beber mas de extinguir a sede; — mas que já o não é quando alguem bebe pelo prazer de beber, porque em tal caso o facto de beber deixa de ser um meio para constituir o fim. Mas quando o lacto de beber nos não proporciona prazer algum, v. g., porque o vinho está derrancado ou é insípido, abstemo-nos de beber. Crer pois que a acção em si mesma possa constituir um fim, não passa de illusão. Esta provém simplesmente de que o fim pode ligar-se ao facto de um modo duplo: pode ser dirigido para o effeito produzido pelo facto durante o acto da realização, ou para o que elle produz depois de consumado. Aquelle que bebe agua por ter sede, ou faz uma viagem de negocios, visa o que existirá para elle depois da ingorgitação, depois da viagem concluída; o que bebe vinho por prazer, ou que faz uma viagem de recreio, pretende alcançar o que para elle existe no proprio acto. O fim pode abranger simultaneamente um objecto e o outro. É inútil insistir n'este ponto. De qualquer forma que o fim se prenda á acção, e seja qual fôr a sua natureza, o acto não pode conceber-se sem o fim. Obrar, e obrar com um fim, são expressões equivalentes. Um acto sem algum fim não pode existir, exactamente como não pode existir um effeito sem causa. Tocámos aqui o ponto que nos tínhamos proposto provar, a saber: a existência da lei de finalidade. Que, lei, só ella o será se a sua realização fôr absolutamente necessaria, se fôr impossível afastarmo-nos d'ella, se nem mesmo se lhe concebe a possibilidade de uma excepção. A faltarem estes requisitos, nós estaríamos em presença, não de uma lei, mas simplesmente de uma regra. Tem ella realmente direito ao nome de lei? Bem consideradas as coisas só poderiam fazer-se duas objecções. Não se procede simplesmente com a mira em um fim; uma razão pode egualmente compellir á pratica de um acto; por exemplo, pode agir-se sob o imperio da coacção ou porque o dever ou a lei do Estado o ordenam. Primeira objecção. Segunda objecção: ha alguns actos completamente
A EVOLUÇÃO DO DIREITO 21 inconscientes, desprovidos de toda a intenção, por exemplo os factos e gestos do doido, ou os actos que se realizam tanto pela força do habito, que já nenhum pensamento pre- side a elles. A primeira objecção parece irrespondivel. Para lhe denegar toda a base de verdade, seria mister que, para indicar o motivo de uma acção, nunca pudessemos exprimil-o pelo termo porque (quia), que marca a razão, mas que se impu- zessem sempre as expressões para, a fim de que (ut), que marcam o fim. Ora o uso linguistico de todos os povos adopta as duas expressões em concorrencia de uma com outra. Vejamos o que significa na realidade este porque. Todos comprehendem o que quer dizer — eu bebo porque tenho sede —; mas se-se dissesse — eu bebo porque hontem cho- veu —, ninguem intenderia. Porque? Porque se não des- cobre nenhuma relação entre este porque e o facto de beber. O porque só estabelece tal relação quando cobre um para quê. A razão de um acto é o fim d'esse acto expresso por outra forma; onde quer que o fim falte, não existe acção, existe acontecimento. "Precipitou-se da torre porque se queria matar»:— aqui o porque mascara o para que; pelo contrario n'esta phare "Perdeu a vida porque caiu do alto da torre» o porque conserva o seu verdadeiro caracter. No primeiro caso temos a acção; no segundo temos o aconte- cimento. Mas por que motivo o porque posto em logar do para que? Servimo-nos sobretudo d'esta primeira expressão quando aquelle que praticou o acto não possuia, ao prati- cal-o, a plena liberdade da sua resolução, mas procedeu sob o imperio de uma necessidade qualquer, physica ou jurídica, moral ou social. Quando assim não é, relatamos simples- mente o facto se o seu fim apparece claramente; ou então, se ao espirito podem apresentar-se fins differentes, indicamos tambem aquelle dos fins que motivou o facto. Ninguem vai dizer que alguem deu presentes de natal aos filhos para lhes causar alegria, ou que comprou uma casa para a habitar;
A EVOLUÇÃO DO DIREITO 23 a caixa a seu cargo para dar pão aos seus filhos. Onde encontraríamos então o limite? Se o homem que está prestes a afogar-se, e que promette a sua fortuna em troca da táboa que lhe atirem pode questionar a sua promessa com o pretexto de que esta só lhe foi arrancada sob a pressão do perigo que corria, porque se não ha-de conceder egual direito ao viajante obrigado no estrangeiro a pagar mais caro que os naturaes e mais caro do que o que elle pagaria no seu próprio país? A casuística forja com facilidade uma longa cadeia de casos símilhantes, por maneira que pode tornar-se difficilimo distinguir o ponto em que cessa a coacção e começa a liberdade. Em muitos casos d'este genero a lei pode recusar ao facto a sua efficacia jurídica: — o direito romano assim procedeu, por exemplo, no caso em que a coacção excedia a medida ordinária da força de resistência do homem (metus non vani hominis, sed qui mérito et in hominem constantissimum cadat, L. 6 quod metus 4. 2); mas esta circumstancia importa pouco para a questão de saber se ha margem a admittir-se um acto da vontade: essa questão não é do foro da lei (-), antes depende da psychologia. A lei declara nullas as convenções immo-raes; ora já alguem se lembrou, por isso, de lhes recusar o caracter de actos da vontade? Também o estado nos coage pelas suas leis; deixamos acaso de ser livres por observarmos essas leis?
24 A EVOLUÇÃO DO DIREITO paga para se desonerar. Se elle pode alcançar essa desone- ração por outro meio, ou se as circumstancias são taes que juridicamente o acto exterior do pagamento não alcança aquelle fim, não paga. Pode-se com tanta razão dizer que o que paga o faz tendo como motivo determinante do paga- mento o peso da divida, como que o prisioneiro que foge o faz para se libertar das cadeias. Se o prisioneiro não houvesse experimentado o desejo de ser livre, não haveria aprovei- tado a occasião que se lhe apresentou para atirar fora os seus grilhões. O mesmo diremos com respeito á divida. Aquelle que não se afflige com ella, não paga; e o que paga não o faz por causa da divida, facto que jaz no passado, mas por um futuro contingente, com um fim preciso: para continuar a ser homem de bem, para não abalar o seu credito ou denegrir a sua reputação, para evitar um processo. Mais adiante, no capitulo em que tratarmos do fim nos actos habituaes, veremos que por occasião dos pagamentos que realizamos nem sempre temos a consciência dos fins espé- ciaes da operação. A mór parte dos homens obedece ás leis por mero habito, sem mesmo pensar em discutil-as. Só quando sobrevem uma tentação de transgredil-as, é que lhes apparece o porque, o fim da sua submissão. Acontece com a observancia dos deveres moraes o mesmo que com o respeito pelas obrigações jurídicas. Se dou uma esmola, o meu óbulo não é porque o homem seja pobre, mas para valer tanto quanto posso a um afflicto: o porque é um para que disfarçado. Contra tal raciocínio, que se resume em dizer que toda a razão de um acto pode ser transformada em fim d'esse acto, poderia objectar-se que o contrario é possível pelo mesmo fundamento. Em logar de dizer: eu compro uma casa para a habitar, bastaria exprimirmo-nos assim: porque tenho necessidade d'ella para a habitar. Se o meu argu- mento se apoiasse apenas sobre a possibilidade de modos differentes de falar, a objecção seria fundada. Mas a minha demonstração não tende a estabelecer que, na linguagem usual, toda a razão de obrar pode ser apresentada