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A GÍRIA NA LÍNGUA FALADA E NA ESCRITA UMA LONGA HISTORIA DE PRECONCEITO SOCIAL, Transcrições de Língua Portuguesa

A GÍRIA NA LÍNGUA FALADA E NA ESCRITA UMA LONGA HISTORIA DE PRECONCEITO SOCIAL

Tipologia: Transcrições

2024

Compartilhado em 07/02/2024

camila-pampolha
camila-pampolha 🇧🇷

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Fala e escrita em questão.
A GÍRIA NA LÍNGUA FALADA E NA
ESCRITA: UMA LONGA HISTÓRIA DE
PRECONCEITO SOCIAL
Dino Preti
Considerações iniciais.
A gíria constitui um vocabulário tipicamente oral. Sua presença
na escrita reflete apenas um recurso lingüístico, com objetivos determi-
nados, como, por exemplo, indicar a fidelidade de uma transcrição; criar
uma interação mais eficiente do escritor com o seu leitor, como ocorre
em algumas matérias jornalísticas; dar uma realidade maior ao diálogo
literário ou teatral; comprovar um uso em desacordo com o vocabulário
de falantes cultos, caso em que é usual transcrevê-la entre aspas, como
ocorre na mídia jornalística; etc.
Sua natural ausência, na escrita (modalidade da língua mais pla-
nejada), e as restrições de seu emprego em muitas situações de comuni-
cação, na língua oral, vêm comprovar uma atitude lingüística de rejeição,
por parte de quem fala ou escreve, o que torna a gíria um vocabulário
marcado, cujo uso enfrenta preconceitos na sociedade (mais em algu-
mas, menos em outras).
Somente uma visão histórica do problema poderia esclarecer-nos
como se teria formado essa atitude preconceituosa em relação ao voca-
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Fala e escrita em questão.

A GÍRIA NA LÍNGUA FALADA E NA

ESCRITA: UMA LONGA HISTÓRIA DE

PRECONCEITO SOCIAL

Dino Preti

Considerações iniciais.

A gíria constitui um vocabulário tipicamente oral. Sua presença na escrita reflete apenas um recurso lingüístico, com objetivos determi- nados, como, por exemplo, indicar a fidelidade de uma transcrição; criar uma interação mais eficiente do escritor com o seu leitor, como ocorre em algumas matérias jornalísticas; dar uma realidade maior ao diálogo literário ou teatral; comprovar um uso em desacordo com o vocabulário de falantes cultos, caso em que é usual transcrevê-la entre aspas, como ocorre na mídia jornalística; etc.

Sua natural ausência, na escrita (modalidade da língua mais pla- nejada), e as restrições de seu emprego em muitas situações de comuni- cação, na língua oral, vêm comprovar uma atitude lingüística de rejeição, por parte de quem fala ou escreve, o que torna a gíria um vocabulário marcado, cujo uso enfrenta preconceitos na sociedade (mais em algu- mas, menos em outras).

Somente uma visão histórica do problema poderia esclarecer-nos como se teria formado essa atitude preconceituosa em relação ao voca-

PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

bulário gírio. E, quando se trata da história da gíria, conhecê-la significa penetrar no mundo da marginalidade, na vida dos grupos excluídos da sociedade pela sua própria condição de pobreza ou pelas suas atividades peculiares (não raro ilícitas), os quais buscam com a criação de um voca- bulário criptológico uma forma de defesa de suas comunidades restritas.

Mas, por outro lado, historicamente, são os mesmos motivos de preservação e segurança que fizeram com que comerciantes ambulantes, mascates, na Idade Média, criassem seus próprios códigos secretos de identificação. E essa gíria da marginalidade e do comércio se mistura também à de um povo surgido na Índia, historicamente discriminado, os ciganos, que, com sua vida nômade, espalharam seu vocabulário em vá- rias áreas da Europa e, posteriormente, da América.

Lingüistas, mas particularmente historiadores ligados a uma es- pecialidade recente, a História Social da Linguagem são, hoje, os princi- pais responsáveis pelo esquadrinhamento de documentos em que se mencionam gírias, jargões, linguagens secretas ou, simplesmente, vestí- gios da língua oral, que podem trazer a luz sobre a vida de um grupo marginal (tomando-se, aqui, o vocábulo marginal no sentido mais am- plo, não apenas ligado a atividades criminosas), na “tentativa de acres- centar uma dimensão social à história da linguagem e uma dimensão histórica à obra de sociolingüistas e etnógrafos da fala”, no dizer de um dos teóricos mais importantes dessa corrente (Burke, P. 1995: 17).

Na realidade, o estudo da gíria exige colaboração científica neces- sária entre várias ciências humanas: a Lingüística, a Sociolingüística ou a Sociologia da Linguagem, a Etnografia da Fala, a História Oral, a His- tória Social da Linguagem etc. As informações colhidas tanto servem a lingüistas, como a antropólogos, sociólogos ou historiadores.

As fontes documentais. A gíria na escrita.

As gravações da língua oral constituem a fonte de primeira mão de toda pesquisa de gíria, pelo menos a partir do aparecimento dos gra-

PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

desse século, são os primeiros documentos, na Inglaterra ( cant ) e na Itá- lia ( furbesco ), nesta com gírias ligadas aos seus muitos dialetos. No sé- culo XVI, começam a aparecer na Espanha ( germanía ou caló ), com forte influência da linguagem dos ciganos, e em Portugal, onde podemos encontrar exemplos desses vocábulos na diversidade das falas de perso- nagens da obra teatral de Gil Vicente.

A propósito das dificuldades de uma pesquisa histórica da gíria, vale lembrar, ainda uma vez, as palavras de Burke, quando se refere às lacunas de uma investigação sobre a língua oral, a partir de documentos escritos:

“Visto que existem tantas lacunas, os leitores podem muito bem se per- guntar se uma história social do falar é um empreendimento viável, pelo menos antes do aparecimento dos gravadores. No entanto, no caso da Europa ocidental do final da Idade Média em diante, existem algu- mas fontes extremamente volumosas e razoavelmente confiáveis no que diz respeito ao falar, em especial os registros de tribunais, onde toma- va-se o cuidado especial de solicitar às testemunhas que depusessem sobre a exatidão das palavras usadas em determinadas ocasiões. A Inquisição, em especial, foi bastante longe nesse sentido. As instruções dadas aos inquisidores romanos do século XVII, por exemplo, diziam- lhes para garantir que o notário, que deveria estar presente em todos os interrogatórios, transcrevesse ‘não só todas as respostas do acusa- do, mas também todas as outras observações e comentários por ele feitos, além de cada palavra por ele pronunciada sob tortura, incluin- do-se cada suspiro, grito, gemido e soluço.’ Uma diretriz assustadora, mas que tem sido inestimável para os historiadores.” (id. p. 35)

Deve-se acrescentar a essas dificuldades, o fato de os pesquisado- res, em particular os lingüistas, não revelarem um interesse maior pelo estudo da gíria. E isso também indica um aspecto do processo preconcei- tuoso em relação a esse vocabulário. Para nos atermos apenas à língua portuguesa, vale lembrar que somente uma obra, já em pleno século XVII revelaria o interesse de um poeta, D. Francisco Manuel Melo, por essa

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fonte popular de nosso léxico: Feira de Anexins que, na verdade, não é um trabalho científico. Da mesma maneira, na obra do poeta brasileiro do século XVII, Gregório de Matos Guerra, em particular nos poemas satíricos, encontramos alguns vocábulos que, pode-se supor, constituam gírias da época.

Os estudos mais significativos sobre gíria ou calão (como se costu- ma, ainda hoje, chamá-la em Portugal) só vão surgir em fins do século XIX. De fato, só em 1890, Queirós Veloso publica num artigo seu, na Revista de Portugal , a primeira lista de gíria portuguesa documentada, que se tem notícia, com 1355 vocábulos (Lapa, A. 1974: 21; Preti, D. 1999).

O primeiro grande problema do pesquisador do vocabulário gírio é a delimitação de seu campo de pesquisa. De fato, o fenômeno gírio pode ser estudado sob duas perspectivas:

“a primeira, a da chamada gíria de grupo , isto é, a de um vocabulário de grupos sociais restritos, cujo comportamento se afasta da maioria, seja pelo inusitado, seja pelo conflito que estabelecem com a socieda- de. No primeiro caso, estão os grupos jovens ligados à música, à dan- ça, ao esporte, às diversões, aos pontos de encontro nos shoppings , à universidade, etc.; no segundo, estão os grupos comprometidos com as drogas, com a prostituição, com o homossexualismo, com o roubo e o crime, com o contrabando, com o ambiente das prisões, etc. Uma segunda perspectiva, a da gíria comum , é a que estuda a vulgari- zação do fenômeno, isto é, o momento em que, pelo contato dos grupos restritos com a sociedade, essa linguagem se divulga, torna-se conhe- cida, passa a fazer parte do vocabulário popular, perdendo sua identi- ficação inicial. É assim que, quando dizemos que estamos baratinados , quer dizer, preocupados, perturbados por qualquer problema, sem con- dição de decidir, estamos empregando um vocábulo da gíria dos toxi- cômanos, vulgarizado pelo contato desse grupo fechado com a socie- dade.” (Preti D. 1996: 139-140)

Como vocabulário de grupo restrito, a gíria é denominada por alguns, nesse sentido, como jargão , não podendo esquecer-se, no entan-

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Sobre o assunto, cumpre lembrar dois estudos, um inspirado em corpus literário (Cabello, A.R.G., 1989) e outro baseado em corpus jornalístico (Veneroso, P.C. 1999). Neste, a autora procura, de certa maneira, discutir a consciência que o jornalista tem da marca gíria em grande parte desses vocábulos da gíria comum , inclusive pela sua presença entre aspas nos escritos, em boa parte dos contextos.

Na época contemporânea o que vem causando espécie é a ampli- ação considerável do uso da gíria comum , em particular no contexto urbano das grandes cidades. Trata-se de um fenômeno recente e tem ligação específica com os problemas lingüísticos de atitude e preconcei- to lingüistico. Talvez ele seja, também, um problema para ser examinado pelos historiadores, mas no momento ele impressiona os sociolingüistas, que o encaram como um índice das grandes transformações sociocultu- rais que o fim do século XX vem propiciando, decorrrentes, principal- mente, da influência político-social da mídia e das modernas redes de comunicação via satélite, como a Internet.

O preconceito lingüístico.

Sob o ponto de vista histórico, a ausência da gíria nos textos escri- tos ou, pelo menos, a sua presença muito restrita neles, serviu para refor- çar a idéia do baixo prestígio social desse vocabulário. A condição de código de segurança, de vocabulário criptológico, acabou por situar a gíria numa posição francamente de oposição à linguagem comum, da mesma forma como serviu para ligar esse vocabulário diretamente às classes em conflito com a sociedade. Então, observa-se que se consti- tuiu, com o correr dos séculos, uma tendência para excluir a gíria da “boa” linguagem, procurando-se vê-la como uma espécie de vocabulário marcado pelo sentimento de agressividade, de oposição, que se vislum- bra, não apenas nos seus vocábulos técnicos, isto é, os que nomeiam atividades específicas de um grupo social restrito, mas também nos seus recursos expressivos, como, por exemplo, no seu processo metafórico,

PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

que reflete um julgamento do mundo, a partir dos grupos menos favore- cidos da sociedade. Além disso, como o sexo constitui um de seus refe- rentes mais imediatos, a gíria trouxe para si toda a rejeição social que caracteriza os vocábulos obscenos.

Deve-se considerar, também, que sua origem ligada a grupos so- ciais renegados pela sociedade acabou por associar a gíria, na sua ori- gem, às classes mais baixas da população (“baixas” no sentido de menor renda e escolaridade), à “linguagem do povo” (isto é, das “camadas po- pulares menos cultas”), tradição que só começou a romper-se há bem pouco tempo, quando, em algumas sociedades democráticas, a chamada “linguagem popular” foi perdendo gradativamente o sentido pejorativo que a caracterizava. Mas, ainda assim, o vocabulário gírio conserva a sua condição de subpadrão lexical, pelo menos enquanto não se perde a cons- ciência de sua origem, o que vem ocorrendo muito rapidamente na socie- dade contemporânea.

A atenuação do preconceito contra os vocábulos gírios, em nossa época, deve-se mais diretamente ao seu largo uso na mídia jornalística ou nos escritores modernos.

Além disso, apesar da filosofia eminentemente conservadora da Escola, os estudos de língua, em todo o mundo, beneficiaram-se das teorias sociolingüísticas da variação da linguagem, que condenam qual- quer discriminação lingüística, sem que se considere o contexto e a situa- ção de comunicação. A gíria se incorporou a algumas variedades de re- gistros e dialetos sociais , podendo-se, hoje, à luz dessas teorias, justificá- la plenamente, até na conversação e nos escritos de falantes cultos.

Sua crescente aceitação dentro da cultura de massa e seu ingresso na norma lingüística da mídia , nos casos de vocábulos que já perderam sua significação secreta de grupo, misturando-se à linguagem comum, favoreceu decisivamente a atenuação do preconceito. Pode-se dizer que foi, historicamente, um processo natural, decorrente da transformação de valores que marca as últimas décadas do século XX. Vejamos, especifi- camente, o exemplo da linguagem das grandes cidades brasileiras:

PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

“Estado não tem grana para cobrir títulos ilegais.” (Jornal da Tarde, 25-11-96) “Outro bafafá nas contas dos Salinas.” ( Veja , 12-6-98) “O dia em que o Vasco eternizou a maracutaia.” (Jornal da Tarde, 22- 12-97). “A mulher, casada, havia mantido relações sexuais com outro homem logo depois de ter transado com o marido.” (O Estado de S.Paulo, 1º- 1-98) “Na madrugada de ontem, o bailarino Valdomiro Muniz de Santana, 39, conhecido como Sulimana, chegou do desfile da Viradouro e encontrou seu apartamento todo bagunçado.” ( Folha de S.Paulo , 25-2-98) “Estréia de Ratinho, na terça, bagunça o coreto do SBT.” (O Estado de S.Paulo, 6/9/98) “Timão cata o caneco na porrada. Aos 30 do 2º tempo Edílson humi- lhou. O Verdão pirou. O pau comeu e o jogo não acabou.” ( Notícias Populares , 21-6-99) “Artistas no susto com a uruca de 94”. ( Notícias populares , 27-12-94) “A saia justa da festa de Sasha ficou por conta do trio Luciano Huck- Ivete Sangalo-Eliana.” ( Folha de S.Paulo 29-7-99) “O espaço era tão grande que a saia nem ajustou, quando os ex se encontravam – se é que se encontravam...” ( Folha de S.Paulo , 29-7-

“Pistolas, ameaças e fuzuê – A vereadora Maria Helena, presa com oito armas de fogo em casa, enreda-se em mais um rolo que envolve chanta- gem e complôs de assassinato” ( Veja São Paulo, capa, 9-15/8/99)

Mas os vocábulos que citamos, peruaça (mulher madura, exibi- cionista), grana (dinheiro), bafafá (confusão), maracutaia (tramóia), transado (mantido relações sexuais), bagunçado (confuso), bagunçar o coreto (criar confusão), na porrada (à força), humilhou (fez uma jogada brilhante), pirou (enlouqueceu), o pau comeu (houve briga), uruca (azar), saia justa (escândalo), a saia nem ajustou (não houve escândalo), fuzuê, rolo (confusão) não comprovam que o preconceito em relação ao uso da gíria na escrita tenha desaparecido. O que queremos mostrar é que ele se atenuou e, considerado o contexto (tipo de leitor, tipo de assunto, seção

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do jornal ou revista etc.) pode até ser considerado como um uso adequa- do, com objetivo de criar uma interação mais satisfatória com o leitor, no caso da imprensa.

Os manuais da redação dos grandes jornais, porém, continuam fazendo sérias restrições ao seu uso, embora, em geral, os redatores pas- sem por cima de tais regras e, cada vez mais, utilizem esse vocabulário:

“Gíria e linguagem coloquial. Evite as palavras de gíria. Quando fi- zerem parte de uma declaração, use-as em itálico. Se forem muito es- pecíficas (jargão policial, por exemplo), coloque em seguida, entre parênteses, o seu significado: ‘ Peguei um bagulho (objeto qualquer), fumei um baseado (cigarro de maconha) e depois mandei (roubei) um carro’. A linguagem coloquial e os termos de gíria de uso comum dis- pensam aspas, mas devem ser empregados apenas em casos especiais, nos textos mais leves, opinativos ou irônicos que realmente os justifi- quem.” (Martins, E. 1997: 134)

“Gíria – A Folha evita o uso de gíria , salvo quando reproduz declara- ções textuais ou em respeito à liberdade literária de articulistas.” (MA- NUAL GERAL DA REDAÇÃO, Folha de S.Paulo, 1984: 46)

Tal atitude faz parte do que Dias, A.R.F. (op. cit. P. 40-4l) denomi- na de pretensas “leis de boa conduta lingüística” adotadas pelos jornais, bem como de um resquício ainda vivo do purismo lingüístico (Leite, M. Q. 1999: 230-40).

A presença, apesar de tudo, da gíria, nos jornais de “elite”, pode ser justificada pelo fato de boa parte desses vocábulos ter perdido sua condição de vocabulário fechado, ampliando-se seu uso, perdida a noção de sua origem. Mas não é o caso de alguns dos vocábulos citados antes, como saia justa , por exemplo, ainda de sentido pouco divulgado, porque restrito aos ambientes da noite e da alta sociedade. Sua presença, no noticiário geral do jornal, apenas indica uma das características impor- tantes da ampliação do uso da gíria: sua divulgação para a linguagem comum com a conseqüente perda do signo de grupo.

Fala e escrita em questão.

Como vimos, de um modo geral, podemos, historicamente, afir- mar que a gíria nasceu do submundo social e essa sua gênese gerou um acentuado preconceito em relação ao seu uso por outras classes, o qual, embora atenuado, permanece até hoje. A gíria, pois, é o vocabulário de uma anti-sociedade, de um grupo marginal, em conflito com a comuni- dade.

Por outro lado, ela também pode apenas representar a linguagem de um grupo restrito de costumes insólitos que, por possuir hábitos dife- rentes da sociedade em que vive, gera uma atitude preconceituosa em relação a seu vocabulário. Neste segundo caso, a convivência com esses grupos (jovens, esportistas, freqüentadores da noite, estudantes etc.) é menos conflituosa, mais freqüente, do que decorre a maior interação en- tre esse vocabulário e o comum.

Com isso, diminui-se o preconceito, e os vocábulos mais empre- gados pelo grupo restrito e, portanto, mais desgastados, começam a apa- recer na linguagem comum da sociedade, muitas vezes, por meio da mídia, passando a integrar a conversação do dia-a-dia e até, não raro, as situações mais formais e com falantes considerados cultos.

Num estudo publicado sobre 6 diálogos do Projeto NURC/SP, portanto a propósito de falantes cultos (pelo fato de terem nível universi- tário), foi constatada a presença de 84 ocorrências de vocábulos e expres- sões de fundo gírio, assim justificada:

“Como era de se esperar, dessas 84 ocorrências, 74 delas (88%) apa- recem em dois diálogos com informantes da primeira faixa etária. O número de ocorrências pode não parecer grande, considerando que se trata de um levantamento de 7h27m de gravação. Mas não nos es- queçamos de que são gravações até certo ponto formais, pois os falantes tinham consciência de que estavam sendo gravados. Daí po- dermos concluir que a aceitabilidade da gíria em situações de maior formalidade já era apreciável na década de 70. Mas o certo é que se tornaria bem maior nos anos 80.” (Preti, D. 1989: 164-165)

PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

Se pensarmos em termos da década de 90, o problema talvez ga- nhe outra configuração. Começa a desaparecer, gradativamente, o pre- conceito em relação aos vocábulos gírios, pelo menos em relação àque- les que se incorporaram à linguagem comum e já perderam para o falante a noção de sua origem. Hoje, seria necessário uma linguagem muito ten- sa para que evitássemos, na conversação, os vocábulos gírios ou pelo menos aqueles sobre os quais não temos certeza de que provêm de uma origem gíria. A imprensa tem mostrado, nas entrevistas, em discurso direto, a presença deles, até mesmo em falantes que, além de cultos, têm o compromisso com o cargo ou o status que possuem na sociedade (em geral, profissionais liberais, políticos etc.):

(Professor): “Não adianta o marido ou a mulher reclamar um milhão de vezes, alerta o professor Aílton. Ninguém convence ninguém argumentando que a casa está uma bagunça.” ( Veja , 11/8/99, p. 104).

Apresentador de TV: “Por fim o apresentador Cid Moreira, no Fantástico: ‘ Príncipe Negro das noites de domingo, você é espada?’ trovejou Cid. ‘Claro! Além de espada sou sortudo.” ( Veja , 4/8/99, p. 113)

Jornalista: “Mas acredito que os outros 35 episódios sejam mesmo fruto da ação de quem curte o prazer sádico de ver o circo pegar fogo.” ( Veja , 4/8/ 99, p. 121)

Deputado: “Referiu-se em seguida a uma nota que apontava a existência de maracutaia legítima na decisão do Senado” ( O Estado de S.Paulo , 15/ 3/97, p. A-18)

PRETI, Dino. A gíria na língua falada e na escrita: uma longa história...

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