































Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Primeiro capitulo livro "alfabetização: a questão dos métodos"
Tipologia: Esquemas
Oferta por tempo limitado
Compartilhado em 28/09/2021
4.8
(4)5 documentos
1 / 39
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Em oferta
16 • Alfabetização
Pretende-se que, à palavra questão , central no título deste capítulo como também no título deste livro, o leitor atribua o duplo sentido que ela tem na língua: de um lado, questão como assunto a discutir , ou, mais que isso, dificuldade a resolver – métodos de alfabetização como tema a esclarecer, problema a deslindar; de outro, questão como controvérsia, polêmica – mé- todos de alfabetização como objeto de divergências, desacordos. Por outro lado, considerando a ambiguidade que tem contaminado a palavra método , quando se lhe acrescenta o complemento de alfabetização – frequentemente manuais didáticos, cartilhas, artefatos pedagógicos recebem inadequadamente a denominação de métodos de alfabetização –, convém desde já esclarecer que aqui se entende por método de alfabetização um conjunto de procedimentos que, fundamentados em teorias e princípios, orientem a aprendizagem inicial da leitura e da escrita , que é o que comu- mente se denomina alfabetização.^1 Esclarecidos os termos da frase que dá título a este capítulo, pode-se agora afirmar que a questão dos métodos de alfabetização , em um e outro dos dois sentidos da palavra questão , anteriormente indicados, é histórica, não é uma ocorrência atual. Esteve presente, em nosso país, ao longo da história dos métodos de alfabetização, pelo menos desde as décadas finais do século xix, momento em que começa a consolidar-se um sistema público de ensino, trazendo a necessidade de implementação de um processo de escolarização que propiciasse às crianças o domínio da leitura e da escri- ta. Como consequência da indefinição de como garantir esse domínio, o método para a aprendizagem inicial da língua escrita tornou-se, já então, uma questão , no primeiro sentido da palavra – uma dificuldade a resolver; e como consequência de diferentes respostas sugeridas para essa dificuldade o método tornou-se, também já então, uma questão , no segundo sentido da palavra –, um objeto de controvérsias e polêmicas. Uma questão que atraves- sou o século xx e ainda persiste, recebendo, ao longo do tempo, sucessivas
(^1) Apenas neste capítulo, em virtude de sua perspectiva predominantemente histórica, usa-se em determinados contextos a palavra “alfabetização” para designar o processo a que se prefere dar a designação mais ampla de “aprendizagem inicial da língua escrita”; como se verá adiante, reserva-se, neste livro, a palavra alfabetização para designar um só dos componentes dessa aprendizagem, o componente que é o tema central deste livro.
18 • Alfabetização
denominação genérica de sintéticos. Esta via é evidenciada nas seguintes palavras de Hilário Ribeiro, autor da Cartilha Nacional , escrita nos anos 1880, com edições sucessivas até os anos 1930: “Como a arte da leitura é a análise da fala, levemos desde logo o aluno a conhecer os valores fônicos das letras, porque é com o valor que há de ler e não com o nome delas” (Ribeiro, 1936, apud Mortatti, 2000: 54). Por outro lado, passou-se a considerar a realidade psicológica da criança, a necessidade de tornar a aprendizagem significativa e, para isso, partir da compreensão da palavra escrita, para dela chegar ao valor sonoro de sílabas e grafemas, dando origem aos métodos que receberam a denominação genérica de analíticos. Entre eles, destacou-se o método da palavração , introduzido no Brasil também nos anos 1880, pela Cartilha Maternal de João de Deus, de que Silva Jardim, eminente educador paulista nas últimas décadas do século xix e primeiras do século xx, foi o grande divulgador. Palavras de Silva Jardim, em conferência de 1884, evidenciam esta segunda via de evolução no campo dos métodos de alfabetização:
É fictícia a soletração, em que se reúnem nomes absurdos exigindo em seguida valores; transitória a silabação, em que se reúnem sílabas, isola- damente, para depois ler a palavra; definitiva a palavração, em que se lê desde logo a palavra [...]. Como aprendemos a falar? Falando palavras; como aprenderemos a ler? É claro que lendo essas mesmas palavras. (Silva Jardim, 1884, apud Mortatti, 2000: 48)
Dessas duas vias de evolução, nasceu a controvérsia – a questão –, que se estendeu até os anos 1980, entre métodos sintéticos e métodos analíticos, controvérsia que se concretizou em um movimento pendular:^4 ora a opção pelo princípio da síntese, segundo o qual a aprendizagem da língua escrita deve partir das unidades menores da língua – dos fonemas, das sílabas – em
(^4) A metáfora do movimento pendular para representar as sucessivas mudanças de metodologias ao longo da história não só da alfabetização, mas também da educação como um todo, é reiteradamente usada na bibliografia sobre o tema, particularmente na de língua inglesa; foi originalmente buscada em Slavin (1989), que propõe que o movimento pendular em educação se deve ao fato de as propostas serem adotadas antes que resultados de pesquisa as fundamentem. Sobre a metáfora do movimento pendular em educação, ver também Robinson, Baker e Clegg (1998).
Alfabetização: o método em questão • 19
direção às unidades maiores – à palavra, à frase, ao texto (método fônico, método silábico); ora a opção pelo princípio da análise, segundo o qual essa aprendizagem deve, ao contrário, partir das unidades maiores e portadoras de sentido – a palavra, a frase, o texto – em direção às unidades menores (método da palavração, método da sentenciação, método global).^5 Uma ou outra orientação predominou, em diferentes momentos, ao longo de quase todo o século xx – até os anos 1980. Indiferentemente, porém, da orientação adotada, o objetivo, tanto em métodos sintéticos quanto em métodos analíticos, é, limitadamente, a aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico da escrita.^6 Embora se possa identificar, nos métodos analíticos, a intenção de partir também do signifi- cado, da compreensão, seja no nível do texto (método global), seja no nível da palavra ou da sentença (método da palavração, método da sentenciação), estes – textos, palavras, sentenças – são postos a serviço da aprendizagem do sistema de escrita: palavras são intencionalmente selecionadas para servir à sua decomposição em sílabas e fonemas, sentenças e textos são artificialmente construídos, com rígido controle léxico e morfossintático, para servir à sua decomposição em palavras, sílabas, fonemas. Assim, nas duas orientações, o domínio do sistema de escrita é conside- rado condição e pré-requisito para que a criança desenvolva habilidades de uso da leitura e da escrita, lendo e produzindo textos reais , isto é: primeiro, é preciso aprender a ler e a escrever, verbos nesta etapa considerados intran- sitivos, para só depois de vencida essa etapa tornar esses verbos transitivos, atribuir-lhes complementos: ler textos, livros, escrever histórias, cartas... (Soares, 2005). Também o pressuposto, nas duas orientações, é o mesmo – o de que a criança, para aprender o sistema de escrita, depende de estímulos externos cuidadosamente selecionados ou artificialmente construídos com o único fim de levá-la a apropriar-se da tecnologia da escrita. Pode-se afirmar
(^5) Essas duas propostas metodológicas correspondem, na Psicologia Cognitiva, aos dois modelos de processamento
6 da^ leitura^ denominados^ bottom-up^ e^ top-down^ (de^ baixo^ para^ cima,^ de^ cima^ para^ baixo). Usam-se, neste parágrafo, os verbos no tempo presente porque, na verdade, o que nele se diz não se tornou ainda passado: embora uma perspectiva histórica, que neste tópico se adota, permita identificar, ao longo do tempo, um ir e vir entre métodos sintéticos e métodos analíticos, esse movimento tem sido frequentemente ignorado na ação docente nas salas de aula, onde, independentemente do discurso pedagógico ou de recomendações oficiais, métodos sintéticos ou métodos analíticos persistem, ou mesmo se fundem, gerando o método misto , também denominado método eclético.
Alfabetização: o método em questão • 21
Fundamentando-se em objetivos e pressupostos radicalmente diferentes, no quadro da matriz teórica do cognitivismo piagetiano, o novo paradig- ma afirma, ao contrário, a prevalência da aprendizagem sobre o ensino, deslocando o foco do professor para o aprendiz; esclarece que o processo de aprendizagem da língua escrita pela criança se dá por uma construção progressiva do princípio alfabético, do conceito de língua escrita como um sistema de representação dos sons da fala por sinais gráficos; propõe que se proporcione à criança oportunidades para que construa esse princípio e esse conceito por meio de interação com materiais reais de leitura e de escrita – textos de diferentes gêneros e em diferentes portadores: textos “para ler”, e não textos artificialmente elaborados “para aprender a ler”, apagando-se, assim, a distinção, que métodos sintéticos e analíticos assu- mem, entre aprendizagem do sistema de escrita e práticas de leitura e de escrita (Ferreiro e Teberosky, 1986; Ferreiro, 1985). Nesse quadro de deslocamento do foco educativo – do(a) alfabetizador(a) 9 e sua opção por determinado modo de ensinar para a criança e seu processo peculiar de aprendizagem –, o método de alfabetização, tal como até então entendido, se torna irrelevante. O construtivismo não propõe um novo
(^9) Convém fundamentar a opção feita, neste livro, pelo uso da dupla forma masculino/feminino para designar profissionais na área da alfabetização. Se se tomasse como critério a realidade, que evidencia significativa predominância, em nosso país, de mulheres na alfabetização, o uso do feminino – a alfabetizadora – seria justificável, alternativa que, aliás, tem sido adotada com certa frequência em trabalhos acadêmicos. Por outro lado, do ponto de vista linguístico, seria correto, ao contrário, o uso da forma masculina – o alfabetizador , já que a norma gramatical considera, no caso de referência a grupo de pessoas dos dois sexos, como na designação de profissões, a forma masculina como um gênero não marcado , neutro, um masculino genérico , com independência entre o gênero gramatical e o sexo. Entretanto, assume-se aqui que a questão não pode ser considerada apenas do ponto de vista da realidade ou do ponto de vista linguístico, dado o grande peso de aspectos psicológicos e sociais. É que, no uso discursivo da língua, estereótipos e preconceitos culturais se sobrepõem à norma gramatical: o uso gramaticalmente correto do masculino genérico na verdade constrói representações cognitivas e sociais que atribuem especificidade ao genérico, associando o gênero gramatical ao sexo, de modo que, ao ler, em um texto, o alfabetizador , as mulheres podem perder a visibilidade e se sentirem, de certa forma, excluídas. Inversamente, pode ocorrer que ao ler, em um texto, a alfabetizadora , os homens sintam-se excluídos ou marginalizados (sobretudo porque já são minoria na área) – neste livro, pretende-se evitar ambas as alternativas. Essas considerações se fundamentam em pesquisas desenvolvidas desde os anos 1970, estimuladas pelo movimento feminista, sobre os efeitos do chamado “androcentrismo” da língua. Ver, por exemplo, as pesquisas recentes: Chatard, Guimond e Martinot (2005); Gygax (2007); Gygax et al. (2009). No entanto, como a dupla forma masculino/feminino, se usada neste livro na totalidade dos casos em que ela caberia (por exemplo, professor(a) , autor(a) , pesquisador(a) , leitor(a) , aluno(a) etc.) pode dificultar a leitura, em virtude de ser ela ainda pouco familiar, e assim constituir obstáculo a uma leitura fluente (embora Gygax, 2007, conteste essa possibilidade), optou-se por só usá-la na designação da profissão que é o tema central deste livro – alfabetizador(a). Nos demais casos, mantém-se o masculino genérico.
22 • Alfabetização
método, mas uma nova fundamentação teórica e conceitual do processo de alfabetização e de seu objeto, a língua escrita. Nesse novo quadro teórico e conceitual, os métodos sintéticos e analíticos, agora qualificados como “tradicionais”, são rejeitados, por contrariarem tanto o processo psicoge- nético de aprendizagem da criança quanto a própria natureza do objeto dessa aprendizagem, a língua escrita. Assim, no construtivismo, o foco é transferido de uma ação docente determinada por um método preconcebido para uma prática pedagógica de estímulo, acompanhamento e orientação da aprendizagem, respeitadas as peculiaridades do processo de cada criança, o que torna inadmissível um método único e predefinido. Essa mudança de paradigma, considerada uma “revolução conceitual” na alfabetização (Ferreiro e Teberosky, 1986: 21; Ferreiro, 1985: 41), altera o movimento pendular: o pêndulo passa a deslocar-se não mais entre métodos sintéticos, de um lado, e métodos analíticos, de outro, mas entre ambos, qualificados de “tradicionais”, de um lado, e a “desmetodização” proposta pelo construtivismo, de outro, entendendo-se por “desmetodização” a des- valorização do método como elemento essencial e determinante no processo de alfabetização. É que a crítica veemente a que o construtivismo submeteu os métodos analíticos e sintéticos resultou na suposição de que métodos de alfabetização, a que se passou a atribuir uma conotação negativa, afetariam negativamente o processo de aprendizagem inicial da língua escrita. Ou seja: como, no paradigma anterior, a aprendizagem da leitura e da escrita era considerada um problema essencialmente metodológico, os métodos que esse paradigma gerou – métodos analíticos e sintéticos – contaminaram o conceito de método de alfabetização, de modo que a rejeição a eles se tornou uma rejeição a método em alfabetização, de forma genérica. O construtivismo, embora com as diferentes e nem sempre corretas interpretações que a ele foram dadas na prática docente, foi hegemônico na área da alfabetização, particularmente no discurso acadêmico e nas orienta- ções curriculares (cf. Parâmetros Curriculares Nacionais , 1997), até os anos iniciais do século em curso, quando a questão do método reaparece e mais uma vez se enfrenta um momento de controvérsias em torno dos caminhos adequados para conduzir com sucesso o processo de alfabetização.
24 • Alfabetização
pois de quatro, seis, oito anos de escolarização. 10 Nesse contexto, torna-se significativo o fato de o Plano Nacional de Educação, aprovado pelo Con- gresso Nacional em 2014, ter estabelecido, como uma de suas 20 metas, “alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º (terceiro) ano do ensino fundamental”. Mais uma vez, vive-se um momento de constatação do fracasso na al- fabetização e, como sempre aconteceu ao longo do tempo, mais uma vez o método de alfabetização se configura como uma questão : apontado como responsável pelo fracasso, torna-se uma dificuldade a resolver – um dos sen- tidos da palavra questão – e, em virtude das divergentes soluções propostas para vencer essa dificuldade, torna-se também objeto de polêmica – o outro sentido da palavra questão. Ou seja: nos anos iniciais do século xxi reaparece a discussão sobre métodos na alfabetização, relativamente marginalizada durante as duas últimas décadas do século xx, e enfrentam-se de novo polê- micas, agora mais complexas: não apenas divergências em torno de diferentes métodos de alfabetização, mas também, e talvez sobretudo, dúvidas sobre a possibilidade ou a necessidade de método para alfabetizar – um movimento de recuperação do método em conflito com a tendência à desmetodização , consequência da interpretação que se deu ao construtivismo.^11
(^10) É preciso lembrar que os baixos níveis de apropriação da língua escrita que vêm sendo evidenciados ao longo de todo o ensino básico não podem ser atribuídos apenas a problemas na área de métodos de alfabetização, já que se devem a um conjunto de fatores, entre os quais os mais evidentes são a inadequada compreensão da organização do ensino em ciclos e um equivocado conceito de progressão continuada, considerada alterna- tiva à reprovação e à repetência. Mais adiante, neste capítulo, o lugar do método no conjunto de fatores que 11 determinam^ os^ resultados^ do^ processo^ de^ alfabetização^ será^ discutido. Embora se pretenda, neste capítulo, focalizar a questão dos métodos de alfabetização apenas no brasil , é preciso mencionar que essa questão não é uma exclusividade brasileira: também em outros países métodos de alfabetização vêm constituindo uma questão , e uma questão com as mesmas características identificadas na brasileira. Nos Estados Unidos e na França, para citar apenas países que sempre exerceram influência sobre o Brasil na área da educação, identifica-se o mesmo movimento pendular entre métodos de alfabetização: desde o final do século xix e ao longo do século xx, o pêndulo oscilou, nesses países, como ocorreu no Brasil, entre métodos sintéticos e métodos analíticos; métodos alternaram-se, em um momento considerados “inovadores”, em outro momento considerados “tradicionais”; e também nesses países, como no Brasil, a primeira década do século xxi enfrenta dificuldades e polêmicas a respeito dos métodos de alfabetização. Para a história dos métodos de alfabetização na França, sugerem-se Krick, Reichstadt e Terrail (2007), Chartier e Hébrard (2001); com foco em países de língua inglesa, obra não recente, mas considerada “clássica”, é Mathews (1966); uma análise atualizada pode ser encontrada em Adams (1990; 1999), Stahl (2006) e Sadoski (2004); em Alexander e Fox (2004), encontra-se uma análise exaustiva de pesquisa e prática da alfabetização na segunda metade do século xx, nos Estados Unidos, em que podem ser identificadas coincidências com a história da alfabetização no Brasil, nesse período.
Alfabetização: o método em questão • 25
Embora não se possa atribuir a uma só causa a persistência de problemas e controvérsias em torno de métodos de alfabetização, já que vários fatores relacionam-se com a questão , uma explicação prevalece sobre outras possíveis: métodos de alfabetização têm sido sempre uma questão porque derivam de concepções diferentes sobre o objeto da alfabetização, isto é, sobre o que se ensina quando se ensina a língua escrita. Uma primeira causa de divergências quanto ao objeto da alfabetização é a maior ou menor importância atribuída, em diferentes métodos, a uma ou outra das duas funções da língua escrita: na etapa da aprendizagem inicial da língua escrita, ensina-se a ler ou ensina-se a escrever? 12 Historicamente, a leitura foi o objeto privilegiado da alfabetização, o que se revela na referência frequente, até os anos 1980, a “métodos de leitura ” e a “livros de leitura ”, independentemente do pressuposto pedagógico adotado: métodos sintéticos ou analíticos, predominantes nesse período, privilegiavam a leitura, limitando a escrita à cópia ou ao ditado; a escrita real, autêntica, isto é, a produção de textos, era considerada como posterior ao domínio da leitura, ou como decorrência natural desse domínio. Confirmando essa tendência, a bibliografia sobre a aprendizagem inicial da língua escrita, durante quase todo o século xx, refere-se predominantemente ao ensino da leitura ; até mesmo nas definições de dicionários para termos relativos à alfabetização a leitura é privilegiada: Maciel (2002), analisando definições de cartilha em diferentes dicionários, evidencia que, em todos eles, atribui- se à cartilha a função de ensinar a ler.^13
(^12) O binômio leitura-escrita é aqui analisado sob o ponto de vista dos métodos de alfabetização e de uma perspectiva histórica. Em outros capítulos deste livro esse binômio será analisado sob o ponto de vista do desenvolvimento da criança e dos processos de aprendizagem (no segundo capítulo), e sob as perspectivas fonológica e cognitiva 13 (sexto^ e^ sétimo^ capítulos). Este privilégio à leitura não é fenômeno apenas brasileiro. Basta lembrar que, nos Estados Unidos, denomina-se reading – leitura – a aprendizagem inicial da língua escrita; também na França a referência a essa aprendizagem se faz com a expressão “apprendre à lire ”. Farnan e Dahl (2003) mostram, com dados do Educational Resource Information Center (Eric), que mesmo na pesquisa acadêmica se verifica a predominância do interesse pela leitura em relação à escrita; segundo essas autoras, entre os 950.000 artigos e documentos que encontraram catalogados nesse banco de dados, 116.621 tinham a leitura como tema, enquanto apenas 63.480, ou seja, pouco mais que a metade da produção sobre leitura, tinham a escrita como tema.
Alfabetização: o método em questão • 27
Surge então o termo letramento , que se associa ao termo alfabetização para designar uma aprendizagem inicial da língua escrita entendida não apenas como a aprendizagem da tecnologia da escrita – do sistema alfabético e suas convenções –, mas também como, de forma abrangente, a introdução da criança às práticas sociais da língua escrita. 16 Em síntese, o diferente peso atribuído, na aprendizagem inicial da língua escrita, a uma ou outra função da escrita – à leitura ou à escrita – e ainda a alternância entre considerá-la como aprendizagem do sistema alfabético- ortográfico – alfabetização – ou como, mais amplamente, também intro- dução da criança aos usos da leitura e da escrita nas práticas sociais – ao letramento – representam, em última análise, uma divergência em relação ao objeto da aprendizagem: uma divergência sobre o que se ensina quando se ensina a língua escrita. Essa divergência sobre o objeto da aprendizagem inicial da língua escrita se revela quando se considera o conceito de alfabetização que fundamenta os diferentes métodos. Alfabetização, no estado atual das ciências linguísticas, da Psicologia Cognitiva, da Psicologia do Desenvolvimento, é processo complexo que envolve vários componentes, ou facetas , e demanda diferentes competências. Dessa complexidade e consequente multiplicidade de facetas decorrem diferentes definições de alfabetização, cada uma privilegiando um ou alguns dos componentes do processo. Sirva como exemplo o verbete
(^16) Para essa ampliação do conceito de aprendizagem inicial da língua escrita já vinha contribuindo o construtivis- mo, que defende a construção do sistema alfabético pela criança por meio de seu convívio com material escrito real, e não artificialmente elaborado para promover a aprendizagem desse sistema. Isso explica a resistência de partidários do construtivismo a aceitar o termo letramento. Na verdade, talvez a palavra letramento não fosse necessária se se pudesse atribuir, como pretende o construtivismo, um sentido ampliado à palavra alfabetização. Entretanto, na tradição da língua, no senso comum, no uso corrente, e mesmo nos dicionários, alfabetização é compreendida como, restritamente, a aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico e das convenções para seu uso, a aprendizagem do ler e do escrever considerados verbos sem complemento (Soares, 2005); ampliar o significado da palavra alfabetização , para que designe mais que o que tradicional e correntemente vem designando, seria, como foi, uma tentativa infrutífera, pela dificuldade, ou mesmo impossibilidade, do ponto de vista linguístico, de intervir artificialmente em um significado já consolidado na língua. Ferreiro (2001: 71-2), ao responder a uma pergunta sobre como traduziria literacy , esclarece que evita esse termo, apenas “em muitos casos, traduzo ‘ literacy ’ como ‘cultura escrita’, porque faz sentido e sabemos do que estamos falando”; destaque-se o título de recente livro de Ferreiro (2013), O ingresso na escrita e nas culturas do escrito , que parece referir-se à alfabetização – ingresso na escrita – e ao letramento – culturas do escrito. É significativo que, no início de 2015, a tradicional International Reading Association (ira) tenha mudado seu nome para International Literacy Association , com a justificativa de que reading limitava o foco da Associação.
28 • Alfabetização
“leitura” do Dicionário de alfabetização^17 organizado por Harris e Hodges (1999): são treze as definições apresentadas no verbete,^18 diferenciadas segun- do a fase de desenvolvimento do aprendiz e segundo as distintas concepções de leitura; segundo Harris e Hodges (1999: 160), “as definições devem ser vistas no contexto das orientações teóricas e pragmáticas do definidor”. Conclui-se que concepções de aprendizagem da escrita diferenciam-se pela faceta do processo que elegem como objeto da aprendizagem; conse- quentemente, diferenciam-se as competências que cada concepção estabelece como objetivos a perseguir, ou seja: distinguem-se os métodos de alfabeti- zação – de forma mais ampla, e talvez mais adequadamente, os métodos de orientação da aprendizagem inicial da língua escrita. Basicamente, três principais facetas de inserção no mundo da escrita dis- putam a primazia, nos métodos e propostas de aprendizagem inicial da língua escrita:^19 a faceta propriamente linguística da língua escrita – a representação visual da cadeia sonora da fala, faceta a que neste livro se reservará a desig- nação de alfabetização ; a faceta interativa da língua escrita – a língua escrita
(^17) No original, The Literacy Dictionary , é a palavra reading que encabeça o verbete; essa palavra tem, na verdade, um sentido mais amplo que o da palavra leitura , porque é usada, no inglês, para designar o processo de aprendizagem inicial da língua escrita; como essa aprendizagem teve sempre como foco a leitura (cf. nota 13), a palavra reading corresponde ao que, na língua portuguesa, chamamos alfabetização. Acrescente-se ainda que a tradução, no título do Dicionário, de literacy por alfabetização é também inadequada, pois literacy , na língua inglesa, não corresponde à alfabetização em português; no próprio Dicionário, o verbete literacy é traduzido por lectoescrita , o que restringe grandemente o sentido da palavra que, em português, 18 se^ tem^ traduzido^ por^ letramento^ ( literacia ,^ em^ português^ europeu). Na verdade, Harris e Hodges apresentam vinte definições, mas as sete últimas são extensões do sentido da 19 palavra^ para^ além^ da^ interação^ com^ a^ língua^ escrita. Tomando como critério os métodos que foram e são utilizados no Brasil, critério adequado ao tema que neste livro se desenvolve – a questão dos métodos –, propõem-se três categorias, que constituem as três facetas sugeridas; naturalmente, essas facetas não só não esgotam todos os componentes do fenômeno complexo que é a aprendizagem inicial da língua escrita, como ainda cada uma delas poderia ser fracionada em vários componentes – a categorização é, como toda categorização, reducionista. Na bibliografia sobre alfabetização, encontram-se inúmeras propostas de modelos de representação dos componentes desse processo e de suas in- terações (exemplos são Ruddell e Unrau, 2004, particularmente o conjunto de textos que compõem a Seção Três, “Models of Reading and Writing Processes”, e Stahl e Hayes, 1997); outros autores analisam os compo- nentes do processo na perspectiva de seus fundamentos conceituais (como Sadoski, 2004; Kucer, 2005) ou na perspectiva das teorias em que esses componentes se fundamentam (um exemplo é Tracey e Morrow, 2006). Cabe ainda lembrar que documentos oficiais de orientação para o processo de alfabetização, promulgados por órgão de política educacional de vários países, indicam os componentes que devem estar presentes na prática escolar; casos exemplares, por sua influência internacional, são o National Reading Panel , nos Estados Unidos (nichd, 2000a); o Rose Review , no Reino Unido (Rose, 2006). Citem-se ainda programas de ensino de âmbito nacional (como os programas para a escola elementar francesa, Ministère de l’Éducation Nationale, 2008) e as bases curriculares nacionais vigentes em vários países (Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Portugal, Chile, entre outros).
30 • Alfabetização
mundo da cultura do escrito, ou seja, decorrência do desenvolvimento das facetas interativa e sociocultural. Uma outra explicação para o fato de os métodos de aprendizagem inicial da língua escrita constituírem uma questão é, de certa forma, resultado da explicação anterior: como foi dito, as diferentes facetas da língua escrita implicam seleção de diferentes objetos para o processo de aprendizagem, ge- rando controvérsias sobre os métodos. Com o desenvolvimento da pesquisa sobre a aprendizagem da língua escrita em décadas recentes, cada faceta da língua escrita tem gerado estudos e investigações sobre objetos diferentes, a partir de quadros teóricos específicos; multiplicam-se e diversificam-se, assim, resultados de pesquisa e quadros teóricos, e, consequentemente, multiplicam-se e diversificam-se também as implicações para os métodos de introdução da criança à língua escrita. Trata-se de fenômeno recente: a alfabetização só foi assumida como tema legítimo e necessário de estudos e investigação científica, no Brasil, a partir dos anos 1960, como comprova a pesquisa de Soares e Maciel (2000). 21 A confluência de dois importantes fatores pode explicar o desenvolvimento da pesquisa sobre alfabetização. Um primeiro fator foi o movimento de democratização da educação, que ocorre a partir dos anos 1950, de que decorre grande ampliação do acesso de alunos à escola, e de alunos pertencentes às camadas populares, socioeconômica e culturalmente diferenciados das crianças provenientes das camadas privilegiadas, que até então povoavam as salas de aula. A escola enfrentou, como consequência, mudanças não só quantitativas, mas também qualitativas, que resultaram em dificuldades tanto para o ensino quanto para a aprendizagem da língua escrita – é a partir desse momento, década de 1960, que os índices de fracasso escolar na fase de alfabetização crescem significativamente, o que exerce pressão sobre estudiosos e pesquisadores, em busca de esclarecimento do problema e propostas de solução. Nesse primeiro momento, os estudos se voltaram principalmente para pesquisas
(^21) A este respeito, ver ainda Soares (2006). Não apenas no Brasil a pesquisa sobre alfabetização é recente; também em países com mais longa e rica tradição em pesquisa na área da educação, só a partir de meados do século xx ocorre o reconhecimento da alfabetização como tema de investigação científica; ver a esse respeito, com relação aos Estados Unidos, Alexander e Fox (2004, cf. nota 11).
Alfabetização: o método em questão • 31
quantitativas sobre índices de reprovação, repetência, evasão, e para pesquisas sobre como alfabetizar, desenvolvidas sobretudo por especialistas da área da Pedagogia – até então, considerava-se que a alfabetização era tema exclusivo da Pedagogia, apenas eventualmente da Psicologia: a questão dos métodos predominava, quase sempre fundamentada em princípios psicológicos. Nos anos 1970, um segundo fator surge como causa motriz do desen- volvimento da pesquisa sobre alfabetização: outras áreas, além da Pedagogia, passaram a tomar a alfabetização como objeto de pesquisa. Como afirmam Shankweiler e Fowler (2004: 483), se, no início do século atual, o movimen- to pendular nas práticas de alfabetização não representa novidade, “ nova é a importância atribuída à pesquisa na ciência da alfabetização para decisões sobre como ensinar a leitura e a escrita ”. De um lado, as ciências linguísticas – a Fonética e Fonologia, a Psico- linguística, a Sociolinguística, a Linguística Textual, a Pragmática –, intro- duzidas no universo acadêmico apenas a partir do início dos anos 1960, voltam-se, nas décadas seguintes, para a investigação das características da língua escrita como objeto linguístico e as implicações dessas características para a aprendizagem desse objeto. De outro lado, a Psicologia Cognitiva e a Psicologia do Desenvolvimento, que também muito avançaram nas últimas décadas do século xx, voltam-se para a investigação do processo por meio do qual a criança aprende a língua escrita, a primeira colocando o foco nas operações cognitivas envolvidas na aprendizagem da língua escrita, a segunda buscando a identificação dos estágios ou fases pelos quais as crianças passam em sua progressiva aquisição e domínio da língua escrita. Em terceiro lugar, e mais recentemente, os estudos socioculturais voltam-se para a investigação do contexto de práticas e usos sociais e culturais de leitura e escrita e sua influência nas práticas escolares de alfabetização.^22 Em síntese, a resposta à pergunta que dá título a este tópico: métodos de alfabetização – sempre uma questão: por quê? , foi adiantada em seu primeiro parágrafo: métodos de alfabetização têm sido sempre uma questão porque
(^22) Deve-se sobretudo aos cursos e programas de pós-graduação em Educação o desenvolvimento da pesquisa sobre a alfabetização: a pesquisa em educação, em geral, e em alfabetização, em particular, cresce no Brasil graças, sobretudo, à produção científica de professores e alunos de mestrado e doutorado, a partir do final dos anos 1960, quando foi institucionalizada a pós-graduação no país.
Alfabetização: o método em questão • 33
cada faceta é de uma natureza específica, cada uma só pode ser investigada isoladamente. No entanto, quando o fenômeno passa a ser objeto não de pesquisa, mas de aprendizagem e de ensino, é adequado agir como os cegos? Eleger uma ou outra função, uma ou outra faceta? Ou é preciso reconstituir o todo? No tópico seguinte, em que se apresenta a proposta deste livro, responde-se a essas perguntas.
Retomando a analogia com a história dos cegos e o elefante: tal como cada cego examinou apenas uma parte do elefante, e erradamente generali- zou, tomando a parte pelo todo, assim também as propostas e métodos para a aprendizagem inicial da língua escrita restringem-se, em geral, a uma parte do processo, equivocadamente considerando que a parte é o todo. Com base nesse pressuposto é que foi propositadamente usada ao longo deste capítulo, e será usada ao longo deste livro, a palavra faceta , para designar componentes da aprendizagem inicial da língua escrita: tal como, em uma pedra lapidada, as várias superfícies – facetas – se somam para compor o todo que é a pedra, assim também os componentes do processo de aprendizagem da língua es- crita – suas facetas – se somam para compor o todo que é o produto desse processo: alfabetização e letramento. Uma só faceta de uma pedra lapidada não é a pedra; um só componente – faceta – do processo de aprendizagem da língua escrita não resulta no produto: a criança alfabetizada e inserida no mundo da cultura escrita, a criança letrada. No entanto, há uma diferença fundamental entre a ação de cientistas, de pesquisadores, e a ação de alfabetizadores(as), em relação ao todo e suas partes – suas facetas. Como em qualquer tema multifacetado, também na aprendizagem inicial da língua escrita o todo só pode ser compreendido se cada uma de suas partes é compreendida; por isso, para a ciência, para a pesquisa, é necessário fragmentar essa aprendizagem, tomar cada uma de suas facetas separadamente, a fim de apreender as características específicas a cada uma, construir princípios e teorias que elucidem cada uma. Assim fazem os lin- guistas, os psicolinguistas, os sociolinguistas, os psicólogos...
34 • Alfabetização
Já aos que promovem e orientam o processo – aos que ensinam – cabe considerar, sim, cada parte, cada faceta, separadamente, uma vez que é neces- sário desenvolver as competências específicas a cada uma, fundamentando-se nos princípios e teorias que a elucidam; cabe também considerar as várias facetas em suas relações, de modo a desenvolver harmonicamente a apren- dizagem do todo, não só como uma estratégia de ensino, mas sobretudo em respeito aos processos reais de leitura e escrita, em que as diferentes compe- tências não atuam separadamente nem em sequência, mas simultaneamente. Na verdade, pode-se dizer que os cientistas e os pesquisadores não tomam como objeto de estudo e pesquisa propriamente a aprendizagem inicial da língua escrita, mas determinado componente desse processo. Para o ensino, o objeto é o processo, que é o todo (embora eventualmente o processo tam- bém possa tornar-se objeto de pesquisa, quando pesquisadores investigam a prática de ensino da língua escrita, como um todo, em sala de aula). Marilyn Jager Adams, uma das mais conceituadas pesquisadoras na área da alfabetização, em obra que se tornou um “clássico” nessa área (Adams, 1990), após desenvolver uma interessante analogia entre o processo de construção e funcionamento de um automóvel e o processo de construção e funcionamento das “partes”, no ensino da língua escrita, diferencia os dois processos, já que, no segundo,
[...] as partes não são discretas. Não podemos agir completando cada sub- sistema individualmente, em seguida atando-o a outro. Ao contrário, as partes do sistema de alfabetização devem crescer simultaneamente. Devem crescer cada uma em relação a outra e cada uma a partir de outra. [...] Elas [as partes do sistema] devem estar interligadas no próprio processo de aquisição. E, o que é importante, essa dependência atua nas duas direções. Não se pode desenvolver adequadamente os processos mais avançados sem a devida atenção aos menos avançados. Nem se pode focalizar os processos menos avançados sem constantemente esclarecer e praticar suas conexões com os processos mais avançados. (Adams, 1990: 6)^24
(^24) Tradução nossa. Todas as traduções de citações de originais em língua estrangeira são de responsabilidade minha.