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Trabalho de Psicologia UFMG. Homem sofre distúrbios por conta do trabalho
Tipologia: Teses (TCC)
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Não perca as partes importantes!
Aprisionado pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho^1
Maria Elizabeth Antunes Lima Ada Ávila Assunção João Manuel Saveia Daniel Francisco
Introdução
O campo da Saúde Mental e Trabalho (SM&T) é marcado, desde o seu surgimento, por várias polêmicas, sendo que a maior delas será tratada neste relato. Trata-se da polêmica em torno da existência ou não de um nexo causal entre certos transtornos mentais detectados nos contextos de trabalho e os problemas ali vivenciados pelos indivíduos. O caso que será apresentado a seguir, reúne elementos suscetíveis de ajudar na elucidação do seguinte dilema: o trabalho provoca ou precipita transtornos mentais? Inseridos em diversos campos e correntes da investigação científica, os pesquisadores têm se esforçado para resolver esse dilema. Alguns, partindo de novos arcabouços teóricos, propõem um campo de investigação distinto do modelo clássico que investiga os processos mórbidos humanos. A história de Carlos 2 desafia a todos os teóricos que, como nós, dedicam- se ao campo da saúde ocupacional. Ela traz novos e instigantes elementos que, esperamos, permitirão aos profissionais deste campo, tanto aqueles que pertencem às especialidades médicas, quanto aos que se situam no contexto da psicologia, avançarem um pouco mais na elucidação do dilema exposto acima. Em se tratando de fenômenos psíquicos, a tarefa de decifrar os mecanismos que operam as suas relações com o trabalho, impõe uma abordagem capaz de identificar as características do trabalho, interpretar as evidências clínicas e entender como tudo isso se articula com a história de vida do paciente. Esta é a
(^1) - Artigo publicado na coletânea "Saúde Mental e Trabalho - leituras". Codo, W & Jacques, M. G (orgs). Ed. Vozes,
- Trata-se de um nome fictício.
proposição metodológica de Louis Le Guillant, cuja obra inspirou fortemente o acompanhamento e a construção deste caso, como será apresentado a seguir.
Assim, o tratamento deste paciente, realizado no Ambulatório de Doenças Profissionais (ADP) do Hospital das Clínicas (UFMG), foi realizado em equipe e dividido em dois momentos: o atendimento médico e o atendimento psicológico. Desde o primeiro momento, pela relevância dos fatores relativos ao trabalho e pelas fortes evidências de sua associação com o surgimento e a evolução do quadro desenvolvido pelo paciente, ficou claro que, a abordagem tradicionalmente adotada no ADP, seria inadequada ou insuficiente para dar conta da complexidade de suas queixas. Sabemos que o paradigma clássico da medicina, procura entender os processos mórbidos ocupacionais, através de uma abordagem organicista, ou seja, explicando, os problemas apresentados pelos trabalhadores como sendo o resultado de alterações neuroquímicas cuja freqüência é, em grande medida, determinada geneticamente. Esta concepção dos fenômenos mórbidos de cunho eminentemente biologizante, está também presente na abordagem de transtornos psíquicos de natureza variada. Assim, apenas os fatores endógenos seriam responsáveis pelos transtornos mentais e quando os fatores exógenos são admitidos (o trabalho sendo considerado um deles), têm sempre um papel secundário. A pressão exercida por uma organização rígida de trabalho, cujo efeito não poderia ser explicado neuroquimicamente, não pode, portanto, ser percebida como causadora de um distúrbio mental e, assim, o diagnóstico de um transtorno de adaptação, por exemplo, não seria um problema ocupacional. Veremos que esta foi a abordagem adotada pela perícia acidentária do INSS, ao ser solicitada a analisar o caso de Carlos. Porém, sabemos que esta não é a única abordagem possível. Alguns profissionais, pertencentes ao campo da saúde mental, poderiam interpretar as evidências clínicas do caso como sendo decorrentes apenas da dinâmica dos afetos e das representações do paciente, onde os acontecimentos da primeira infância seriam determinantes do transtorno mental que este apresenta. Trata-se de uma visão claramente psicologizante que revela-se tão inadequada e equivocada quanto a visão biologizante descrita acima.
Ao chegar ao ADP, Carlos fazia uso de Tryptanol e Anafranil 3. Apresentava um quadro de alterações do sono, da vigilância e da atenção, que agravava sempre que era exposto a ruídos como os de buzinas ou campainhas, não apenas porque estes também faziam parte do contexto de trabalho no condomínio, como também porque faziam-no lembrar-se do relógio. O psiquiatra que o encaminhou não havia identificado quaisquer perturbações de sono, no período anterior ao último emprego, sendo que este dado confirmou-se no decorrer do tratamento. Na primeira consulta, verificou-se, no histórico clínico do paciente, um quadro recente de esteatose hepática e de pancreatite. Apesar de não serem elementos suficientes para confirmar um diagnóstico de alcoolismo, a forte associação desses dois quadros com esta síndrome, nos levou a levantar a hipótese de que eles também fariam parte do seu transtorno adaptativo. Mas estávamos cientes da necessidade de elucidar melhor esta questão. Em junho de 1999, o ADP emitiu uma CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), acompanhada de um relatório contendo, o seguinte argumento: transtorno de adaptação com perturbação de sono, provavelmente, decorrente de um longo período de privação do sono noturno e de uma exposição a uma organização do trabalho rigidamente controlada. O relatório referia-se também a um possível quadro de alcoolismo, acompanhado de doenças hepática e pancreática, sem afirmar se este seria causa ou conseqüência dos sintomas apresentado pelo paciente. Argumentou-se, portanto, em favor de um transtorno decorrente do trabalho. A perícia do INSS afastou o paciente para tratamento, mas não reconheceu o nexo entre seus sintomas e seu trabalho.
Feita esta breve apresentação dos aspectos mais importantes do caso, faremos uma rápida incursão pelo campo da SM&T, na França, a fim de fundamentar melhor nossa hipótese sobre a estreita relação entre os sintomas de Carlos e sua experiência no último emprego.
(^3) - O Tryptanol é um antidepressivo tricíclico, do grupo da imipramina. Estes antidepressivos são indicados nas formas ansiosas, sendo raramente utilizados, de forma isolada, por serem mais dinamizantes do que ansiolíticos, podendo, inclusive, ativar a ansiedade no início do tratamento. No caso de Carlos, está sendo usado juntamente com Diazepam,
1 – A escola da Psicopatologia do Trabalho na França
Os teóricos franceses que fundaram o campo da SM&T faziam constantes referências às possíveis relações entre certas formas de organização do trabalho e certos transtornos mentais. Paul Sivadon (1993), por exemplo, já falava no famoso artigo, escrito em 1952 - marco inaugural da Psicopatologia do Trabalho - que alguns negam ao trabalho seu poder patogênico, mas “o aumento da freqüência das neuroses é uma constatação banal e sua distribuição não responde ao simples acaso: elas são mais freqüentes no meio urbano do que no meio rural e no meio industrial do que no meio artesanal ou comercial.” (pp 175/176) Apesar de admitir a presença de “fatores de fragilização pessoal” que poderiam contribuir para o adoecimento dos indivíduos, uma vez que nem todos são atingidos da mesma forma, este autor chama a atenção para a presença de “situações particularmente nocivas”. (p 178) Assim, ele descreve uma seqüência de sintomas que emergem no trabalho podendo culminar na “neurose em forma de angústia e de insônia” ou em “distúrbios patológicos mais espetaculares” , como “confusão, agitação, depressão”. (id p. 179) 4 Louis Le Guillant, contemporâneo de Sivadon, também concluiu que, sob certas condições, o trabalho pode conter alto poder patogênico. Apesar de filiar-se a uma corrente teórica bastante diferente daquela à qual pertencia Sivadon 5 , ele acreditava que, certas formas de organização do trabalho, seriam suscetíveis de gerar distúrbios mentais. Assim, realizou estudos com grande rigor e consistência, que revelavam a presença considerável de alguns tipos de transtornos mentais entre indivíduos pertencentes a uma mesma categoria profissional. Ele descreveu, portanto, quadros psicopatológicos graves observados em um grande número de empregadas domésticas e suas possíveis relações com as condições de trabalho dessas profissionais. Além disso, investigou minuciosamente os sintomas apresentados pelas telefonistas – reunidos sob o nome de “neurose das telefonistas” - e suas relações com as condições de trabalho impostas a essa categoria. É importante ressaltar que Le Guillant jamais negou a importância de se considerar a história de vida (ou a “biografia”, como preferia dizer) do paciente na
benzodiazepínico com uma atividade de indução sonífera particular. Trata-se de um sedativo-hipnótico que reduz a atividade diurna, atenua a excitação e, geralmente, acalma o paciente. 4
esforços de pesquisa para o sofrimento e as defesas contra o sofrimento, ou seja, “focalizando sua atenção no período anterior à doença mental descompensada”. Neste segundo momento, ele fala novamente dos “impasses e fracassos da pesquisa em patologia mental no trabalho” e se propõe a colocar a normalidade como o “enigma central da investigação e da análise”. 9 Fica evidente, através dessa breve comparação entre as perspectivas dos teóricos mais importantes no campo da SM&T, na França, que a questão do lugar do trabalho na gênese e no desenvolvimento de doenças mentais está longe de um consenso. No entanto, como pesquisadores deste campo, não podemos nos impedir de correr certos riscos. Assim, decidimos apresentar um caso clínico que, no nosso entender, traz fortes evidências sobre a forma pela qual organizações patogênicas do trabalho podem criar um campo propício para a emergência de distúrbios mentais graves. Na coleta dos dados, tentamos reconstituir toda a história de vida do paciente, através do seu próprio depoimento, mas também recorrendo a algumas pessoas do seu convívio mais próximo. Na construção deste relato, utilizamos sempre que possível as próprias palavras do paciente, pois acreditamos, como Le Guillant, que “esta linguagem popular, fruto de uma experiência individual e coletiva direta” parece mais capaz de tornar perceptíveis os aspectos sensíveis das situações do que qualquer “descrição -‘do exterior’ - que se pudesse fazer a seu respeito”. (id. p 411)
2 – A história de Carlos
No acompanhamento psicológico tentamos resgatar a história de vida do paciente, enfatizando a sua relação com o trabalho. 10 Tentando fazer uma análise mais acurada, entrevistamos também sua irmã, sua sobrinha e um colega do seu
(^8) - Nessa obra, Dejours considera a síndrome subjetiva pós-traumática como “a única entidade clínica reconhecidamente de origem bem limitada à organização do trabalho.”(id ib p125) 9
último emprego. As entrevistas com a irmã e a sobrinha, foram feitas no ADP, e a entrevista com o seu colega foi feita no próprio local de trabalho, onde foi possível também observar e analisar o antigo posto de trabalho do paciente.
2.1 – A infância e a vida familiar
Carlos nasceu em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, em 19/04/1951. É o filho mais novo de uma família de dez filhos, sendo cinco homens e cinco mulheres. Seus pais eram lavradores, trabalhando em um pequeno pedaço de terra de sua propriedade ou arrendando outras terras. Sempre quiseram dar conforto aos filhos, mas jamais tiveram condições financeiras que permitissem concretizar este desejo. O pai é descrito pela sobrinha de Carlos como muito rigoroso, não deixava os filhos sair com pessoas que não fossem de sua total confiança, rejeitando, principalmente, aquelas que fizessem uso de bebidas alcoólicas ou fossem viciadas em jogo. Apesar de rigoroso, não foi descrito como uma pessoa violenta: enquanto a mãe, às vezes, dava uns “puxões de orelha” , o pai nunca bateu nos filhos. Ele os aconselhava muito e exigia bom comportamento e respeito, o que fica bem patente em algumas falas de Carlos:
“ Às vezes, estava conversando na sala com as pessoas... Às vezes, aquele assunto não era pra criança, e ele só olhava pra nós assim, e pronto. Não xingava, não era violento, não era sem educação. Meu pai sempre falou e não esqueço: ‘pessoa tem que ter procedimento e educação’(...). O que mais exigia da gente é procedimento. Pra não deixar o nome da gente... pedia pra gente manter o nome da gente limpo, pro nome dele também continuar limpo até o fim da vida dele. Isso ele sempre pedia: ‘vocês não pode, vocês têm que ser gente de respeito, igual eu. Eu dou bom exemplo pra vocês’. Procedimento, educação e ter ó ( mostra a palma da mão direita ), coragem pra trabalhar. Não pode ser preguiçoso’.”
Ele diz que o pai não impunha o trabalho aos filhos, mas que estes trabalhavam porque gostavam e achavam que era seu dever. Carlos fala com naturalidade sobre a educação recebida, dizendo que seus pais e toda sua família também foram educados da mesma forma.
falar ou escrever têm o valor de catarse, de expulsão ou liberação. “o que estava no interior é extraído. Sai, jorra e não nos habita mais da mesma maneira; podemos olhar para nós de maneira mais serena”.
durante o dia e estudava à noite. Apesar da vontade de continuar estudando, acabou interrompendo os estudos, pois sentia-se cansado. Sua irmã (oitava filha) e a sobrinha (apenas cinco anos mais nova e que sempre o acompanha às consultas), descrevem-no como calmo e trabalhador. Quando trabalhava na roça, era o primeiro a sair de casa e o último a voltar do trabalho. Enquanto os outros trabalhavam apenas uma quadra (espaço delimitado na roça para cada trabalhador cultivar), ele trabalhava duas ou três quadras_._ De acordo com a sobrinha, em todos os empregos, o tio sempre foi muito dedicado e, inclusive, durante todo o período em que trabalhou como garagista (seu último emprego) só tirou férias quando sua filha se casou. Ainda assim, ficou apenas vinte dias afastado e trabalhou durante os dez dias restantes. No entanto, quando foi demitido deste emprego, diz a sobrinha, “não acertaram direito as contas; não pagaram as férias nem os aumentos de salário que ele teve. Mas ele não reclamou e não fez nada para pegar o dinheiro dele”. Segundo ela, Carlos foi demitido alguns dias depois de ter saído do hospital, onde foi internado com problema no fígado e no pâncreas. A sobrinha diz também que o tio submeteu-se a uma cirurgia (devido a úlcera no estômago) quando era mais jovem, provavelmente entre os 15 e os 19 anos: “talvez devido à alimentação que era feita fora dos horários, porque ele trabalhava demais”. No entanto, este problema não ficou bem esclarecido. Quanto às doenças mais recentes, isto é, aquelas que surgiram após o último emprego, ela disse que, em 1998, Carlos foi internado duas vezes: “a primeira, foi pancreatite e, a segunda, princípio de derrame”.
3 – A história ocupacional pregressa
Como é bastante comum entre as pessoas que habitam a zona rural, Carlos começou a trabalhar, ainda na infância, entre os 8 e os 10 anos de idade, para ajudar a família. Na lavoura, o relacionamento com as pessoas era bom, e, segundo ele, existia muita brincadeira. Sentia-se bem nesta atividade, apesar de exigir muito esforço, pois gostava do resultado. Na fazenda, na época da colheita do arroz, tinha que trabalhar das sete da manhã à meia noite. Acha que as condições de trabalho no campo não interferiram na sua saúde e diz que nunca sofreu acidente. Nos seus próprios termos: “ As condições de trabalho eram mais ou menos boas, não havia controle rígido, era bem tranqüilo, podia dar uma volta... Mas o salário era baixo. O dono da fazenda buscava os trabalhadores de carreto (trator) e era rápido”.
Ainda neste período, foi visitar a irmã em Uberaba e decidiu permanecer ali trabalhando também na lavoura por mais ou menos um ano e seis meses, sem muita diferença do trabalho anterior. Aos 15 anos, estando de volta à sua cidade, começou a trabalhar numa farmácia. No início limpava os frascos, varria e abria a farmácia, mas adquiriu conhecimentos no ramo, chegando a receitar medicamentos mais simples. Aprendeu também a fazer injeção intramuscular e endovenosa. Permaneceu neste emprego por aproximadamente dois anos e diz que gostava do que fazia. Tinha boas relações com o dono da farmácia, com seus filhos e com a clientela. Não considera que este trabalho tenha sido prejudicial à sua saúde e diz que também não sofreu acidente. 11 No entanto, apesar de sentir-se bem nesta atividade, decidiu demitir-se porque o dinheiro não era suficiente para as suas necessidades: “já era adolescente e queria um dinheirinho a mais”.
Depois de abandonar o trabalho na farmácia, começou a trabalhar como garçon, em bar, inicialmente, no interior (por aproximadamente um ano e quatro meses) e, depois, em BH (por aproximadamente um ano). Gostava do que fazia, o relacionamento com os colegas e com a clientela era bom, mas diz que, em BH, o trabalho era mais “apertado”, pois havia mais movimento. As condições de trabalho eram boas, morava nos fundos do bar e as refeições eram feitas no próprio local de trabalho. O salário era melhor, mas ainda continuava sem carteira assinada. Neste emprego, Carlos também afirma que as condições de trabalho não interferiram na sua saúde, que não sofreu acidente e que só decidiu abandoná-lo porque surgiu uma vaga numa construtora e conservadora.
Entrou para a construtora, aos 19 anos, como zelador do escritório, e, posteriormente, como encarregado de conservação e limpeza. Permaneceu neste emprego por aproximadamente seis anos e o considera melhor que os anteriores porque teve oportunidade de promoção, depositaram confiança nele e assumia mais responsabilidade. Escolheu este emprego porque o salário era melhor do que nos outros e, além disso, queria trabalhar “fichado” (com carteira assinada). Foi também nesta ocasião que decidiu casar-se. Afirma que o relacionamento com os colegas era bom e que se sentia bem nesta atividade. No início, a jornada de trabalho era das 07h
(^11) - No entanto, vale lembrar que sua sobrinha fala de uma úlcera neste período, conforme já dissemos.
“Esse último emprego com certeza lhe prejudicou. Em todos os serviços gostavam dele. Antes, quando era criança, foi tudo normal, não tinha nada, a gente nunca descobriu nada. Nesse emprego, a gente falava, mas ele não deixou, com medo de não conseguir um outro emprego. Mas nesse último emprego, sempre que eu chegava na casa dele, Carlos já estava com a cabeça molhada. Tinha de molhar a cabeça para não dormir no trabalho. Ficar por conta daquele relógio! Aí, desse serviço pra cá, Carlos adoeceu, não dormia.... Sempre, toda vez que eu olho pra casa do Carlos a luz está acesa”.
4 - A história do último emprego
“Se começasse de novo, eu faria tudo de novo, tudo que eu fiz, trabalharia de novo. A única coisa que eu tô arrependido, foi ter entrado, assim, nessa última firma e encarar aquele equipamento tudo de trabalho. Eu podia deixar, mas, o medo que eu tinha de não ter outro serviço, me fez eu não largar esse serviço. É só isso que eu não tenho coragem de voltar. O resto tudo eu volto.” (Carlos) Em 1993, aos 42 anos de idade, Carlos começou a trabalhar como porteiro noturno, em um condomínio no centro de Belo Horizonte, onde permaneceu por 4 anos e 6 meses. Durante os seis primeiros meses, entrava às 20h e saia às 7h da manhã. Passado esse tempo, com a entrada de um novo síndico, o início da jornada mudou para 19h, mantendo o mesmo horário de saída. Trabalhava em dias alternados e em regime de turno fixo, ou seja, durante todos esses anos, ele trabalhou sempre no turno noturno. Além disso, a garagem funcionava em turnos contínuos, isto é, não havia interrupção da prestação de serviço durante 24 horas diárias e nos sete dias da semana. Existiam quatro turmas de trabalhadores. Carlos não fazia hora-extra, mas sua jornada era extensa: 11 horas, nos primeiros seis meses e 12 horas, nos anos seguintes. O seu local de trabalho era de mais ou menos 1,20m por 0,80m. Neste espaço encontravam-se um relógio, um telefone, um interfone, uma campainha, uma cadeira e um painel onde ficavam os cartões com os números das vagas, e que eram entregues aos usuários. A garagem tem 6 andares com 301 vagas, sendo que até o segundo andar existe apenas uma rampa de entrada e de saída (das 20h às 7h), e do terceiro andar em diante, existe uma rampa para entrar e outra para sair. Durante o dia, há uma entrada e uma saída, mas à noite, os carros entram e saem pelo mesmo portão. Quanto ao trabalho propriamente dito, Carlos diz que chegava ao local aproximadamente às 18h e, às 18h35min, batia o ponto. Depois, percorria todo o
prédio e conversava com a equipe do dia para verificar ocorrências de anormalidades. Às 19h, ia para o seu posto, onde deveria permanecer até o final da jornada de trabalho. Até às 20h, cuidava apenas da entrada de veículos e, depois disso, cuidava da entrada e da saída. A sua atividade foi assim descrita: os carros buzinavam ao chegar em frente ao prédio e Carlos abria uma janelinha no portão para verificar se era realmente um usuário; caso ficasse confirmado, ele abria o portão e levantava a cancela para o carro passar. Em seguida, dava o cartão para o usuário subir e acionava um botão vermelho para indicar a entrada do veículo. Ele controlava os sinais luminosos do segundo andar, acendendo uma luz vermelha para indicar a subida de carros e uma luz verde para a liberação da saída. Para ser acionada a luz verde, é necessário que, ao chegar ao segundo andar, o motorista buzine para avisar ao porteiro que está descendo. Caso nenhum carro esteja subindo, o porteiro acende a luz verde e o usuário estará liberado para sair. Se estiver subindo algum carro, quem estiver descendo deve aguardar. A atividade mais importante do porteiro é, portanto, controlar a entrada e a saída de veículos, evitando colisões. Os botões que acionam as luzes do segundo andar, acionam igualmente a placa PARE, localizada na portaria da garagem, alertando aos pedestres sobre o tráfego de veículos. Nesse momento, é acionada também uma campainha com o mesmo objetivo. Além dessas atividades, Carlos atendia o telefone, o interfone e recebia jornais e revistas.
Durante sua permanência no emprego, houve uma mudança no conteúdo do seu trabalho, com a introdução de um controle remoto através do qual os usuários passaram a abrir e fechar a porta. Mas, durante a noite, a atenção do porteiro continuou sendo solicitada a fim de controlar o trânsito na única via disponível. No caso da chegada de um novo usuário, Carlos dava-lhe as instruções encaminhando-o a um colega que deveria acompanhá-lo. Os usuários que quisessem entrar para retirar os veículos tocavam a campainha ou batiam no portão. O primeiro síndico, segundo Carlos, era bem mais flexível, deixava ouvir rádio, e até levar uma televisão pequena. De acordo com ele: “Dava uniforme, vale transporte, dinheiro para refeição, não cobrava nada; ele deixava nós fazer café, nós comprava pão e fazia sanduíche”. Com a entrada do novo síndico ocorreram mudanças importantes na organização trabalho, além da retirada de alguns benefícios. Segundo
pra ela (câmera) e colocava assim embaixo, como se estivesse colocando minha sacola, com medo dela filmar eu.” Com a chegada do novo síndico, ficou proibida também a leitura de jornais e, Carlos, com receio de ficar registrado na câmera, deixou também de lado mais um recurso para distrair e quebrar a monotonia do seu trabalho: “n ão podia ler jornal porque era proibido. Não lia jornal, eu tinha medo.” Como foi também retirado o lanche, durante a noite, Carlos trazia a sua refeição de casa. Proibiu-se até mesmo a caixinha de Natal.
O paciente conclui que as condições de trabalho deste condomínio eram ruins, principalmente se comparadas às condições oferecidas pelos outros empregos. Mais do que isso, ele acredita que essa nova atividade tenha prejudicado sua saúde:
“Eu não tinha nada disso, não tinha nada, não sofria nada, era calmo. Quer dizer, calmo sou até hoje, porque eu não sou agressivo, eu falo sem te magoar, sem te maltratar. Desse jeito, eu procuro não deixar alguém meu chateado, eles não são culpados d’eu estar desse jeito, o culpado sou eu né? Insisti. Mas, de uma certa forma, a firma também é, porque me excomungavam tanto, exigia tanto não é? E com uma câmera em cima, no teto... Eles falava que ela não filmava a gente, que era só até às 21 horas, mas eu vou saber se ela está me filmando a noite inteira? Eu preocupava com ela, podia não estar, mas eu achava que estava filmando”. Ao falar de uma outra interdição, fica evidente a relação que estabelece entre seus distúrbios e a experiência vivida no seu último emprego: “tem sempre pessoas que gostam de conversar com a gente né? Mas era só, ‘oi, tudo bem?’(...) Tinha de despachar depressa. Quer dizer, foi juntando tudo na cabeça da gente ”.
A campainha tocada pelos usuários ou outras pessoas que quisessem entrar, também foi apontada por Carlos como mais um elemento prejudicial à sua saúde. Tudo indica, seus sintomas foram se agravando lentamente e os ruídos que faziam parte do seu cotidiano laboral, passaram a se tornar cada vez menos suportáveis: “Aí, a campainha é que me assustava mais. Isso, depois de três anos. Aí, é que comecei a ter insônia. Eu, segurando, enquanto agravava mais”.
Em outros momentos, Carlos revela suas dificuldades com alguns usuários, o que acarretava mais preocupações: “Quando ele tá descendo, tem de buzinar. Aí, eu
também assusto. Tem alguns que não buzinam. Tem algumas pessoas, esse tipo de pessoa com um pouco de uso do poder, não respeita. Isso é que me dá preocupação”. Percebe-se através dessa fala que Carlos se assustava quando os usuários buzinavam para sinalizar que estavam descendo, mas também sobressaltava-se quando não buzinavam, devido ao risco de colisão.
Tudo indica que esta situação o perturbava fortemente:
“Alguns teimavam e desciam. Tava no vermelho, mas desciam. Aí, me passava um frio de medo, eu tinha de controlar o outro pra não subir, pra não bater. Aquilo, matava eu de nervoso. Meu estômago embrulhava, meu cabelo arrepiava todo de medo. Mas, graças a Deus, não deixei acontecer nenhum acidente”.
A única vez que deixou de acionar o relógio, foi devido a um problema com um usuário que desobedeceu à sinalização. Seu relato não deixa dúvidas sobre os graves efeitos dessa experiência:
“Foi susto, nervoso, fiquei nervoso demais! Desceu um sem buzinar e eu fiquei nervoso demais! Deu problema de dor de barriga em mim e não deu tempo de chegar no banheiro, me borrei (chora). Aí, meu relógio apitou. Passei a não correr mais para o banheiro. Se eu tivesse que fazer alguma coisa, quando dava dor de barriga, fazia na rua, eu não ia no banheiro. Urinar eu podia apertar e esperar; chamava um colega e corria para o banheiro (...), o meu relógio só apitou uma vez. Dos outros (colegas) , apitou várias vezes. O meu só apitou uma vez porque deu problema de dor de barriga em mim. Eu tinha medo de deixar apitar. Dão advertência quando o relógio apita. Essa advertência, quando fazem, tem de assinar. Se não assinar, chamam duas testemunhas e assinam pra gente.”
Mesmo com esses problemas, Carlos se sentia, em geral, respeitado pelos usuários e avalia positivamente seu relacionamento com eles. Um incidente ilustra a boa qualidade desta relação, apesar de ter sido desencadeado pela quebra de uma cancela por um usuário. O incidente é revelador também da extrema subserviência de Carlos às normas estabelecidas pelo síndico, mesmo quando estas eram absurdas:
“Ele (o usuário) guardou o carro e desceu; aí falou comigo: você não vai abrir a cancela não? Eu disse que a ordem é que quem subir com controle remoto, pra não abrir não: ‘e eu tô fazendo com todo mundo assim’. Aí, ele foi, pegou a cancela e soltou ela no chão. E disse: ‘esse negócio está enchendo o saco’. Eu disse: ‘é uma ordem e tenho de cumprir’. Ele falou assim: ‘você está certo. Errado está, esse palhaço que te passou esta ordem, porque eu esqueço o controle lá em cima dentro do carro, chego aqui você não pode abrir. Então, tenho de subir outra vez ou então passar por baixo da cancela’.”
O próprio Carlos, percebe a reação diferenciada dos seus colegas, frente às exigências impostas pelo síndico:
“Um disse que não ia trabalhar com relógio porque isso não é coisa de homem: ’isso rebenta a gente, a cabeça da gente, não vou mais trabalhar com isso’. Aí, o chefe veio e os dois discutiram (...) conversei com ele e ele disse: ‘não tenho a paciência que você tem’.”
Em vários momentos, Carlos falou de sua preocupação e seu medo constantes. Para ele, os equipamentos, a responsabilidade com o trabalho, o medo de ser advertido e as noites sem dormir, tiveram um papel determinante no desencadeamento dos seus problemas atuais:
“A preocupação com todo equipamento, a responsabilidade com o trabalho e o medo de ser chamado atenção, acho que isso me prejudicou. Nas outras (empresas) eu não senti nada disso, não tinha esse tipo de problema. Na minha vida, nunca tive isso, e eu tô com isso e não sei o que é. Até hoje, eu não esqueço o relógio, trabalhar sozinho e perder muitas noites”.
Mas essas preocupações não se restringiam ao espaço de trabalho. Elas invadiam sua vida pessoal, sendo que, seu cotidiano, parecia ser organizado em torno de sua atividade profissional: “ Eu era assim, no dia que eu trabalhava, dava meio dia e eu já estava concentrado, minha cabeça estava lá já. Eu já tomava banho, preparava e, aí, quatro e meia, eu saía”.
Quanto à sua percepção da hierarquia, Carlos disse que, apesar de não ter muito contato direto com o zelador, percebia-o como agressivo:
“Não tinha muita relação com o zelador. Eu chegava, às 18h, e ele saía, às 18h10min. O chefe não dava espaço pra conversa. Era muito bruto, mas não tive nenhum problema com ele. Os que tiveram problema com o chefe foram mandados embora. Ele falava com eles com agressividade e eles não admitia .”
Apesar desse contato limitado, Carlos relata a discussão que teve com o zelador no dia em que passou mal e deixou de acionar o relógio. Segundo ele, o zelador queria que assinasse a advertência:
“(...) eu disse: ‘eu não vou assinar e vou te explicar porque não vou assinar. Eu passei mal, estou com problema de assustar com buzinas, estou preocupado com o trabalho dos outros colegas. E esse relógio apitou porque eu não estava no setor, estava no banheiro passando mal. Por isso, não vou assinar não. Eu acho que isso é pra uma pessoa que não tem responsabilidade, uma pessoa criança. Acho que isso não dá certo pra mim não. Um homem já velho, velho de firma, velho de idade’(...) Aí, ele pegou e disse: ‘está bem’.”
Quanto ao relacionamento com os colegas, tudo indica que Carlos não tinha problemas, apesar de, algumas vezes, ter discordado de suas condutas ou ter se sentido na obrigação de repreendê-los, quando não seguiam as normas à risca:
“A relação com os colegas era boa. Só assim, quando os relógios deles apitavam e eu ficava sabendo, aí eu conversava com eles, falava assim: ‘olha, não deixa o relógio de vocês apitar mais não, é ruim pra a nossa equipe’ (...) Teve outros casos, que um colega chegou a violar o relógio. Pegou uma chave de fenda, abriu e desligou o relógio. Mas, eu fiquei sabendo e lhe chamei atenção.”
Ao ser questionado sobre o que fazia para se defender de todo o sofrimento causado por esse trabalho, Carlos respondeu:
“não tinha nada que fazer, era só agüentar. Fumava demais, não podia conversar, não podia telefonar, não faltava. Só faltei quando fui internado. O relógio não tem jeito. Eles (os colegas) tomavam muito café, às vezes, misturavam café com Coca-Cola. Eu já misturei também, mas muitas vezes não, por causa do estômago. Quando eu misturava, doía. Isso, pra não chegar a ponto de vir o sono. O radinho, eu levava ele escondido e, depois da meia- noite, eu colocava ele no chão e ligava baixinho. Quando dava quatro e meia, cinco horas da manhã, eu desligava ele de novo e guardava”.
Quando comparava sua situação com a dos colegas, Carlos identificava algumas diferenças que poderiam favorecê-los:
“A área deles de trabalho era muito maior que a minha, sabe? Eles podiam digitar o relógio e ir andando lá em cima do prédio, e eu não posso sair do meu setor de jeito nenhum. O que trabalhava de dia, no meu setor, não trabalhava com relógio. O relógio dos outros é aquele redondo que põe debaixo do braço e tem a chave que roda o disco. O disco fica dentro do relógio. Ele podia dar volta com o relógio, colocava a alça no pescoço e podia ir ao banheiro a hora que quisesse. Eles ficavam rodando o prédio todo, pra vigiar o estacionamento. Já eu, não posso sair, porque, se tem um carro querendo entrar, quem vai abrir? Aí, vão reclamar pro chefe. O que trabalhava no meu lugar, de dia, era só a pressão do chefe e a câmera”.