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As Brumas de Avalon | Volume Único, Provas de Direito

Sagrada, Viviane! Você pode ser minha irmã mais velha, minha sacerdotisa e a. Senhora de Avalon, mas não me tratará como se eu fosse uma criança balbuciante.

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Agua_de_coco
Agua_de_coco 🇧🇷

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A SENHORA DA MAGIA

MARION ZIMMER BRADLEY

Título do original: “The mists of Avalon” Tradução de Waltensir Dutra


disfarce de maga), não os desiludi. E na verdade, ao final do reinado de Artur, teria sido perigoso agir assim, e inclinei a cabeça à conveniência como nunca teria feito a minha grande senhora, Viviane Senhora do Lago, que depois de mim foi a maior amiga de Artur, para se transformar mais tarde em sua maior inimiga, também depois de mim. A luta, porém, terminou. Pude finalmente saudar Artur, em sua agonia, não como meu inimigo e o inimigo de minha Deusa, mas apenas como meu irmão e como um homem que ia morrer e precisava da ajuda da Mãe, para a qual todos os homens finalmente se voltam. Até mesmo os sacerdotes sabem disso, com sua Maria sempre-virgem em seu manto azul, pois ela, na hora da morte, também se transforma na Mãe do Mundo. E assim, Artur jazia enfim com a cabeça em meu colo, vendo-me não como irmã, amante ou inimiga, mas apenas como maga, sacerdotisa, Senhora do Lago; descansou, portanto, no peito da Grande Mãe, de onde nasceu, e para quem, como todos os homens, tem de finalmente voltar. E talvez — enquanto eu guiava a barca que o levava, desta vez não para a ilha dos padres, mas para a verdadeira ilha sagrada no mundo das trevas, que fica além do nosso, para a ilha de Avalon, aonde agora poucos, além de mim, poderiam ir — ele estivesse arrependido da inimizade surgida entre nós. Ao contar esta história, falarei por vezes de coisas que ocorreram quando eu ainda era demasiado jovem para compreendê-las ou quando não estava presente. Meu leitor fará uma pausa e dirá, talvez: “Esta é a sua magia”. Mas eu tive sempre o dom da Visão, de ver o interior da mente dos homens e mulheres; e, durante todo esse tempo, estive perto de todos. Assim, por vezes, tudo o que pensavam era do meu conhecimento, de uma forma ou de outra. Por isso, contarei esta história. Um dia também os padres a contarão, tal como a conhecem. Talvez entre as duas se possam perceber alguns lampejos de verdade. O que os sacerdotes não sabem, com o seu Deus Uno e sua Verdade Única, é que não existe história totalmente verdadeira. A verdade tem muitas faces e assemelha-se à velha estrada que conduz a Avalon; o lugar para onde o caminho nos levará depende da nossa própria vontade e de nossos pensamentos, e talvez, no fim, cheguemos ou à sagrada ilha da eternidade, ou aos padres, com seus sinos, sua morte, seu Satã e o inferno e danação... Mas talvez eu seja injusta com eles. Até mesmo a Senhora do Lago, que odiava a batina do padre tanto quanto teria odiado a serpente venenosa, e com boas razões, censurou-me certa vez por falar mal do deus deles. Todos os deuses são um só Deus, disse ela, então, como já dissera muitas vezes antes, e como eu repeti para minhas noviças inúmeras vezes, e como toda sacerdotisa, depois de mim, há de dizer novamente, “e todas as deusas são uma só Deusa, e há apenas um iniciador. E a cada homem a sua verdade, e Deus com

ela.” Assim, talvez a verdade se situe em algum ponto entre o caminho para Glastonbury, a ilha dos padres, e o caminho de Avalon, perdido para sempre nas brumas do mar do Verão. Mas esta é a minha verdade; eu, que sou Morgana, conto-vos estas coisas, Morgana, que em tempos mais recentes foi chamada Morgana, a Fada.

sul, carregando todo um grande país que ali existia. Igraine não sabia se acreditava ou não nessas histórias. Sim, certamente podia ouvir vozes na cerração. Não seriam atacantes selvagens vindo do mar ou do litoral selvagem de Erin. Há muito havia passado a época em que ela se sobressaltava a um som ou uma sombra estranhos. Não era seu marido, o duque: ele estava muito longe, no norte, lutando contra os saxões, ao lado de Ambrósio Aureliano, o Grande Rei da Bretanha, e teria avisado se pretendesse voltar. Não precisava ter medo. Se os cavaleiros fossem hostis, os guardas e soldados do forte situado no ponto em que o promontório se ligava à terra, ali colocados pelo duque Gorlois para proteger sua mulher e filha, os teriam detido. Seria preciso um exército para passar por eles. E quem mandaria um exército contra Tintagel? Houve uma época — Igraine lembrava-se sem amargura, caminhando lentamente para o pátio do castelo — em que ela teria sabido quem se aproximava. Essa lembrança não lhe provocava maior tristeza, agora. Desde o nascimento de Morgana, não chorava mais de saudades de casa. E Gorlois era bondoso com ela. Tranquilizara-a quando tivera medo e ódio a princípio, dera-lhe jóias e coisas belas, troféus de guerra, cercara-a de mulheres que a serviam, e tratava-a sempre como a um igual, a não ser nos conselhos de guerra. Não podia ter desejado mais, exceto se tivesse desposado um homem das tribos. Quanto a isso, não tivera escolha. Uma filha da ilha sagrada deve fazer o que é melhor para seu povo, quer isso signifique caminhar para a morte em sacrifício, entregar sua virgindade no Casamento Sagrado, ou casar-se, quando isso puder cimentar alianças. Era o que Igraine havia feito, desposando um duque da Cornualha romanizado, cidadão que vivia ao modo romano, embora Roma tivesse deixado toda a Bretanha. Tirou o manto dos ombros, com um gesto; lá dentro do pátio estava mais quente, fora do alcance do vento cortante. E ali, quando a cerração rodopiou e esgarçou-se, pairou à sua frente, por um momento, uma figura vinda da bruma e da névoa: sua meia irmã, Viviane, a Senhora do Lago, a Senhora da Ilha Sagrada. — Irmã! — As palavras tremeram, e Igraine sabia que não as havia gritado, mas apenas murmurado, com as mãos apertadas contra o peito. — É você, realmente, que eu vejo aqui? O rosto tinha um ar de censura, e as palavras pareciam desaparecer no som do vento, além das muralhas. — Você abandonou a Visão, Igraine? Por sua livre vontade? Magoada pela injustiça dessas palavras, Igraine respondeu: — Foi você quem determinou que eu devia desposar Gorlois... — mas a forma de sua irmã desaparecera nas brumas, não estava ali, jamais estivera. Igraine pestanejou: a rápida aparição se fora. Envolveu-se no manto, pois sentiu

frio, muito frio; sabia que a visão tirava a sua força do calor e da vida de seu próprio corpo. Pensou: Não sabia que eu ainda podia ver dessa maneira, tinha certeza de que não podia mais... e estremeceu, sabendo que o padre Columba consideraria isso obra do Diabo, e que deveria confessar-se com ele. É certo que ali, no fim do mundo, os padres eram tolerantes, mas uma visão não declarada em confissão seria, sem dúvida, tratada como heresia. Franziu as sobrancelhas: por que deveria tratar uma visita de sua irmã como obra do Diabo? Padre Columba podia dizer o que quisesse, mas talvez o seu deus fosse mais sábio do que ele. Isso não seria muito difícil, pensou Igraine, reprimindo uma risada. Talvez o padre Columba tivesse se tornado um sacerdote do Cristo porque nenhum colégio de druidas aceitaria um homem tão estúpido. O Deus do Cristo parecia não se importar com a inteligência de um padre, desde que este pudesse engrolar a missa e ler e escrever um pouco. Ela, Igraine, tinha mais instrução do que o padre Columba e falava melhor o latim, quando queria. Não se considerava, porém, instruída: não tivera força suficiente para estudar a sabedoria mais profunda da Velha Religião, ou de penetrar nos Mistérios além do que era absolutamente necessário a uma filha da Ilha Sagrada. Mas embora fosse ignorante em qualquer Templo dos Mistérios, podia passar, entre os bárbaros romanizados, por uma mulher culta. Na pequena sala junto do pátio, onde havia sol nos dias limpos, sua irmã mais nova, Morgause, de treze anos e florescente, trajando um amplo vestido de casa, de lã sem tingir, e um velho e desgrenhado manto por sobre os ombros, fiava descuidadamente com um fuso simples, enrolando o fio desigual num carretel. No chão, junto à lareira, Morgana fazia rolar um carretel velho, como se fosse uma bola, observando as trajetórias caprichosas do cilindro assimétrico pelo chão, empurrando-o para um ou outro lado, com os dedos gorduchos. — Será que já não fiei bastante? — queixou-se Morgause. — Meus dedos estão doendo! Por que tenho de fiar, fiar, fiar sempre, como se fosse uma criada? — Toda dama tem de aprender a fiar — respondeu Igraine, como sabia que devia fazer —, e seu fio é muito malfeito, ora grosso, ora fino... Seus dedos perderão o cansaço, quando se habituarem ao trabalho. Dedos doloridos são indício de que você tem sido preguiçosa, já que não se acostumaram às suas tarefas. Tomou de Morgause o carretel e o fuso, girando-os rapidamente com grande facilidade. O fio desigual, em suas mãos experientes, adquiriu uma espessura perfeita. — Veja, pode-se tecer com este fio sem deixar falhas na lançadeira... — e de repente cansou-se de proceder como devia. — Mas agora pode deixar de lado o fuso. Antes do fim da tarde, teremos hóspedes. Morgause olhou para ela. — Não ouvi nada — disse. — Nem chegou cavaleiro algum trazendo

coisa de que ela não gostava. Os gritos cessaram de repente, e ela concluiu que a menina fora silenciada por um tapa, ou talvez, como por vezes acontecia quando estava de bom humor, Morgause a estivesse penteando com os seus dedos inteligentes e pacientes. Por isso, Igraine sabia que a irmã menor era capaz de fiar muito bem, quando desejava. Tinha mãos ágeis para tudo o mais: pentear, cardar, fazer tortas de Natal. Igraine trançou o cabelo, prendeu-o no alto da cabeça com uma presilha de ouro e colocou o broche, também de ouro, na gola do manto. Olhou-se no espelho de bronze, presente de casamento dado por Viviane, e vindo, pelo que disseram, de Roma. Sabia, ao amarrar o vestido, que seus seios haviam voltado ao que eram antes: Morgana fora desmamada havia um ano, e eles estavam apenas um pouco mais flácidos e pesados. Sua esbelteza antiga retornara, pois se havia casado com aquele vestido, e os laços não estavam nada apertados. Quando voltasse, Gorlois havia de querer levá-la novamente para a cama. Da última vez que a vira, Morgana estava ainda mamando, e o duque aquiescera ao pedido de Igraine, para que a deixasse continuar a alimentar a menina durante o verão, quando tantas crianças pequenas morrem. Sabia que ele estava descontente porque ela não lhe dera o filho tão desejado — os romanos estabeleciam a linhagem pelo ramo masculino, e não pelo feminino, o que seria mais sensato. Era tolice, pois como poderia um homem ter absoluta certeza de quem era o pai de qualquer criança? É claro que eles se preocupavam muito com quem se deitavam as mulheres, e fechavam-nas e espionavam-nas. Não que Igraine precisasse ser vigiada: um homem já era ruim, por que haveria de querer outros, que poderiam ser piores? Embora estivesse ansioso por um filho, Gorlois fora indulgente, deixando que Igraine ficasse com a menina na cama e continuasse a amamentá-la, e até mesmo se abstivera de procurá-la, passando as noites com a criada Ettarr, para que ela não voltasse a engravidar e com isso perdesse o leite. Também ele sabia quantas crianças morriam, ao serem desmamadas antes que pudessem mastigar a carne e o pão. Crianças alimentadas com água de farinha eram enfermiças e com frequência não havia leite de cabra no verão, quando estavam em condições de tomá-lo. As que tomavam leite de vaca ou de égua tinham vômitos e morriam muito amiúde, ou tinham disenteria e não resistiam. Por isso, ele deixara Morgana mamar no peito, adiando assim a chegada do filho que desejava por mais um ano e meio, no mínimo. Igraine tinha pelo menos essa razão para lhe ser grata, e não reclamaria, mesmo que ele a fizesse logo engravidar de novo. Ettarr ficara grávida então e parecia envaidecer-se: seria ela quem teria um filho do duque da Cornualha? Igraine não tomara conhecimento da moça; Gorlois tinha outros filhos bastardos, um dos quais o acompanhava agora, no campo do duque de guerra, Uther. Mas Ettarr adoecera e abortara, e Igraine fora suficientemente discreta para não perguntar a Gwen por que ela parecia tão alegre

com isso. A velha conhecia demais as ervas, para que Igraine pudesse ficar tranqüila. Algum dia, resolveu ela, farei com que me diga exatamente o que colocou na cerveja de Ettarr. Dirigiu-se à cozinha, e a saia comprida arrastou-se pelos degraus de pedra. Morgause estava lá, com o seu melhor vestido, e Morgana, com roupas de festa, cor de açafrão, parecia tão morena quanto um picto. Igraine segurou-a, com prazer. Pequena, morena, delicada, tinha ossos tão miúdos que era como segurar um passarinho macio. De onde viria a aparência daquela criança? Ela, Igraine, e Morgause, eram altas e tinham cabelos vermelhos, cor de terra, como todas as mulheres das tribos, e Gorlois, embora moreno, era romano, alto, esguio e aquilino, endurecido pelos anos de luta contra os saxões, demasiado cônscio de sua dignidade romana para demonstrar muita ternura para com uma jovem esposa e totalmente indiferente à filha, nascida em lugar do menino que ele queria. Mas, Igraine lembrou-se, os romanos arvoravam-se o direito divino de vida e morte sobre os filhos. Havia muitos deles, cristãos ou não, que teriam exigido da esposa que não criasse a menina, a fim de lhes dar logo um filho. Gorlois fora bom para ela, deixara-a criar Morgana. Embora Igraine não lhe desse muito crédito à imaginação, talvez ele houvesse compreendido como se sentia em relação à filha, sendo uma mulher das tribos. Enquanto dava ordens para a recepção dos hóspedes, para que se trouxesse vinho da adega e se preparasse um assado — não coelho, mas um bom carneiro do último abate —, ouviu o cacarejar e o ruflar de asas das galinhas assustadas no pátio, e ficou sabendo que os cavaleiros haviam percorrido todo o promontório. Os criados pareciam assustados, mas, em sua maioria, já se haviam resignado, sabendo que a sua senhora tinha a Visão. Fingia tê-la, com algumas suposições inteligentes e uns poucos truques — era bom que eles continuassem a temê-la. E agora, pensou: Talvez Viviane esteja certa e eu ainda a tenha. Talvez durante todos aqueles meses, antes do nascimento de Morgana, eu me sentisse muito fraca e impotente. Agora voltei a ser eu mesma. Minha mãe foi uma grande sacerdotisa até o dia de sua morte, embora tivesse vários filhos. Mas sua mente respondeu-lhe que a mãe tivera aqueles filhos em liberdade, como uma mulher das tribos deveria tê-los, de pais que ela mesma escolhera, não como escrava de um romano, cujos costumes lhe davam poder sobre as mulheres e crianças. Afastou com impaciência tais pensamentos; que importava se tinha a Visão, ou se apenas parecia tê-la desde que isso mantivesse os criados em seu devido lugar? Dirigiu-se lentamente ao pátio, que Gorlois ainda chamava de átrio, embora não se parecesse em nada com a vila onde vivera até Ambrósio fazer dele duque da Cornualha. Os cavaleiros já haviam desmontado, e seus olhos dirigiram-se imediatamente para a única mulher entre eles, uma figura menor do que ela e que já não era jovem, vestida com uma túnica masculina e culotes de lã,

reverência, levando-a aos lábios. Igraine, que mal conhecia os Mistérios, sentiu que de alguma forma também era parte daquela bela solenidade ritual, ao tomar a taça da mão dos hóspedes, prová-la e dizer as palavras formais de boas-vindas. Logo após, a sensação de solenidade desapareceu; Viviane era apenas uma mulher pequena e de aparência cansada, e Merlim, nada mais do que um velho encurvado. Igraine conduziu-os rapidamente para junto da lareira. — Nesta época, é longa a viagem das praias do mar do Verão até aqui — começou, lembrando-se de quando viajara, recém-casada, atemorizada, odiando em silêncio, na comitiva do marido desconhecido, que ainda era apenas uma voz e um terror na noite. — O que a traz aqui, em meio às tempestades de primavera, minha irmã e senhora? E por que não veio antes, por que me deixou só, a aprender a ser esposa e a parir uma criança, sozinha, cheia de medo e de saudade? E se não pôde vir antes, por que então veio agora, quando é tarde demais e estou finalmente resignada à sujeição? — A distância é realmente longa — respondeu Viviane suavemente, e Igraine sabia que a sacerdotisa ouvira, como sempre ouvia, as palavras que não haviam sido ditas, bem como as proferidas. — E estamos em épocas perigosas, filha. Mas você se transformou numa mulher, nestes anos, embora tenham sido solitários, tão solitários quanto os anos de isolamento para o preparo de um bardo, ou — acrescentou, com um leve sorriso de recordação — de uma sacerdotisa. Se você tivesse escolhido esse caminho, veria que é igualmente solitário, minha Igraine. Sim, claro, você pode subir no meu colo, pequenina — continuou, inclinando-se, com um ar de doçura no rosto. Colocou Morgana no colo, enquanto Igraine as olhava com surpresa, pois a menina era, em geral, tão esquiva quanto um coelho. Um pouco ressentida, e um pouco sob o velho encanto que vinha da irmã, viu a criança aninhar-se em seus braços. Viviane parecia muito pequena para poder segurá-la bem. E, na verdade, talvez Morgana fosse muito parecida com ela. — E Morgause, que cresceu desde que, há um ano, eu a mandei para sua companhia? — perguntou Viviane, olhando para Morgause, que, em seu vestido cor de açafrão, ocultava-se, ressentida, entre as sombras do fogo. — Venha dar- me um beijo, irmãzinha. Ah, você será alta como Igraine — sorriu, levantando os braços para abraçar a moça, que saiu a contragosto das sombras, como um animalzinho ainda não bem domesticado. — Sim, sente-se aqui, junto de meus joelhos, se quiser, filha. Morgause sentou-se no chão, apoiando a cabeça nos joelhos de Viviane, e Igraine notou que seus olhos tristes estavam cheios de lágrimas. “Ela nos tem a todos na sua mão. Como pode exercer esse poder sobre nós? Ou será por ter sido a única mãe que Morgause conheceu? Era mulher feita quando Morgause nasceu, sempre foi mãe e irmã, para nós duas”. A mãe, que

realmente era muito idosa para ter mais filhos, morrera ao dar à luz Morgause. Viviane tivera um filho, em princípios daquele ano, mas a criança morrera, e ela se encarregara então de Morgause. Morgana instalara-se bem aconchegada no colo de Viviane; Morgause pousava a cabeça sedosa e vermelha nos seus joelhos. A sacerdotisa segurava a menina com um braço, e com a mão livre afagava o longo e macio cabelo da outra. — Eu teria vindo visitá-la quando Morgana nasceu — explicou Viviane —, mas também estava grávida. Tive um filho, naquele ano. Dei-o a uma outra mulher para criar, e ela talvez o mande para os monges. Ela é cristã. — Você não se importa que ele seja criado como cristão? — perguntou Morgause. — Ele é bonito? Qual o seu nome? Viviane riu. — Dei-lhe o nome de Balam, e sua mãe adotiva deu ao filho, que teve na mesma ocasião, o nome de Balim. Há entre eles uma diferença de apenas dez dias, por isso serão criados como gêmeos, sem dúvida. Não, não me importo que seja criado como cristão; o pai dele também o era, e Priscila é uma boa mulher. Você disse que a viagem até aqui era longa; acredite-me, filha, não é mais longa do que quando você se casou com Gorlois. Não é mais longa, talvez, do que da ilha dos padres, onde está plantado o Sagrado Espinho deles, mas muito mais distante, muito mais, de Avalon... — E foi por isso que viemos — disse Merlim, de repente, e sua voz foi como o tanger de um grande sino, fazendo Morgana sentar-se subitamente, choramingando de medo. — Não compreendo — interrompeu Igraine, sentindo-se subitamente pouco à vontade. — Sem dúvida, esses dois lugares estão próximos... — Os dois são um só — respondeu Merlim, sentando-se muito ereto —, mas os seguidores de Cristo preferem dizer, não que eles não terão outros deuses perante o seu Deus, mas que não há nenhum outro deus que não seja o deles. Que só Ele fez o mundo, que o governa sozinho, que foi Ele quem fez as estrelas e toda a criação. Igraine fez rapidamente o sinal sagrado contra a blasfêmia. — Mas isso não é possível — insistiu ela. — Nenhum deus pode, sozinho, governar todas as coisas... e a Deusa? O que fazer com a Mãe...? — Eles acreditam — contou Viviane com sua voz aveludada e baixa — que não há Deusa, pois o princípio da mulher, dizem eles, é o princípio do mal. Por meio da mulher, na opinião deles, o mal entrou neste mundo. Há uma fantástica história judaica sobre uma maçã e uma serpente. — A Deusa os castigará — murmurou Igraine, abalada. — E mesmo assim, você me fez casar com um deles? — Não sabíamos que a blasfêmia deles era tão ampla — disse Merlim —

Avalon, a ilha sagrada, já não é a mesma ilha que Glastonbury, onde nós, da Fé Antiga, permitimos, certa vez, que os monges construíssem sua capela e seu mosteiro. Pois a nossa sabedoria, e a sabedoria deles... — Mas o que você sabe sobre a filosofia natural, Igraine? — Muito pouco — admitiu ela, abalada, olhando para a sacerdotisa e o grande druida. — Nunca me ensinaram isso. — É pena — lamentou Merlim —, pois você precisa compreender, Igraine. Vou tentar explicar-lhe simplesmente. — Veja — disse ele, e tirou o colar de ouro do pescoço, depois a adaga. — Poderei colocar este bronze e este ouro no mesmo lugar, ao mesmo tempo? Ela piscou e olhou fixamente, sem compreender. — Não, claro que não. Podem ficar lado a lado, mas não no mesmo lugar, a menos que primeiro afastemos um deles. — A mesma coisa aconteceu com a Ilha Sagrada — continuou Merlim. — Os padres nos fizeram um juramento, há quatrocentos anos, antes mesmo que os romanos chegassem e tentassem conquistar-nos, de que nunca se levantariam contra nós ou nos expulsariam com armas, pois estávamos aqui antes deles, que eram os suplicantes e fracos. Cumpriram o juramento, sou obrigado a reconhecer. Mas, em espírito, nas suas orações, nunca cessaram de lutar contra nós, para que seu deus expulsasse os nossos deuses, sua sabedoria predominasse sobre a nossa. Em nosso mundo, Igraine, há espaço suficiente para muitos deuses e muitas deusas. Mas no universo dos cristãos — como dizer isso? — não há lugar para a nossa visão e a nossa sabedoria. No mundo deles, há apenas um deus; não só esse deus deve conquistar todos os outros, mas também deve fazer como se não houvesse outros deuses, como se não tivesse havido nunca outros deuses e sim falsos ídolos, obra do Diabo. E isso para que, acreditando nesse deus único, todos os homens possam ser salvos desta única vida. É assim que pensam. E o mundo é a projeção daquilo em que os homens acreditam. Portanto os mundos que antes eram um só estão se separando. — Há agora duas Bretanhas, Igraine: o mundo deles, sob o Deus Único e o Cristo; e ao lado dele e atrás dele, o mundo onde a Grande Mãe ainda governa, o mundo onde os Antigos escolheram viver e adorar seus deuses. Isso já aconteceu antes. Houve uma época em que o povo das fadas, o povo brilhante, afastou-se de nosso mundo, penetrando cada vez mais nas névoas, de modo que só um andarilho ocasional pode hoje passar uma noite nos abrigos dos duendes, e, se o fizer, o tempo passa sem ele, que pode sair depois de uma única noite e constatar que seus parentes estão todos mortos e que uma dúzia de anos transcorreu. E agora eu lhe digo, Igraine, isso está acontecendo outra vez. Nosso mundo — governado pela Deusa e pelo Cornudo, seu esposo, o mundo que você conhece, o mundo de muitas verdades — está sendo expulso pelo curso principal do tempo. Ainda agora, Igraine, se um viajante parte sem um guia para a ilha de

Avalon, a menos que conheça muito bem o caminho, não conseguirá chegar e encontrará apenas a ilha dos padres. Para a maioria dos homens, nosso mundo está agora perdido nas brumas do mar do Verão. Antes mesmo que os romanos partissem, isso estava começando a acontecer; agora, quando as igrejas cobrem toda a Bretanha, nosso mundo torna-se cada vez mais distante. Foi por esse motivo que precisamos de tanto tempo para chegar aqui; um número cada vez menor de cidades e caminhos dos Antigos ainda resta para nos guiar. Os mundos ainda estão em contato, ainda estão um ao lado do outro, próximos como amantes, mas estão se separando, e se esse processo não for sustado chegará o dia em que haverá dois mundos, e ninguém poderá ir e vir entre os dois... — Que se separem! — interrompeu Viviane com raiva. — Continuo achando que deveríamos deixar que se separem! Não quero viver num mundo de cristãos que negam a Mãe... — Mas e os outros, aqueles que viverão no desespero? — A voz de Merlim soava novamente como um grande sino aveludado. — Não, é preciso manter um caminho, ainda que secreto. Partes do mundo ainda são uma só coisa. Os saxões andam pelos dois mundos, mas um número cada vez maior de nossos guerreiros são seguidores do Cristo. Os saxões... — Os saxões são bárbaros e cruéis — interrompeu Viviane. — As tribos sozinhas não podem expulsá-los de nossas praias, e Merlim e eu sabemos que Ambrósio não permanecerá muito tempo neste mundo, e o que o seu duque de guerra, o Pendragon — é Uther o nome que lhe dão? —, o substituirá. Mas são muitos neste país os que não seguirão o Pendragon. Qualquer que seja a sina de nosso mundo no espírito, nenhum de nossos mundos pode sobreviver ao fogo e à espada dos saxões. Antes de podermos travar a batalha espiritual que impedirá que os mundos se distanciem ainda mais, devemos salvar o coração da Bretanha, que está sendo destruído pelos incêndios dos saxões. Não só eles, mas também os jutos, os escotos, todos os selvagens que descem do norte. Todos os lugares, até a própria Roma, estão sendo subjugados, eles são muitos. Seu marido vem lutando durante toda a sua vida. Ambrósio, o duque da Bretanha, é um bom homem, mas só pode contar com a lealdade daqueles que outrora seguiram Roma. Seu pai usou a púrpura, e Ambrósio também tinha ambições de ser imperador. Mas precisamos de um líder que empolgue todo o povo da Bretanha. — Mas... Roma continua — protestou Igraine. — Gorlois disse-me que quando Roma tiver superado seus problemas na Grande Cidade, as legiões voltarão! Não poderemos esperar ajuda de Roma contra os selvagens do norte? Os romanos foram os maiores lutadores do mundo, construíram a grande muralha no norte, para conter as incursões selvagens... A voz de Merlim adquiriu o som cavo parecido com o tanger de um grande sino. — Eu vi no poço sagrado — disse ele. — A Águia voou e não voltará

CAPÍTULO 2

Houve um silêncio na sala, quebrado apenas pelo leve crepitar do fogo. Por fim, Igraine respirou profundamente, como se acabasse de acordar. — O que estão me dizendo? Quer dizer que Gorlois será o pai desse Grande Rei? Ouviu as palavras ecoando em sua mente e ressoando ali, e perguntou a si mesma por que nunca presumira que um destino tão grande estava reservado ao marido. Viu a irmã e Merlim trocarem um olhar e percebeu também o pequeno gesto com que a sacerdotisa silenciou o velho. — Não, Merlim, isso deve ser dito de mulher para mulher... Igraine, Gorlois é romano. As tribos não seguirão qualquer homem nascido de um filho de Roma. O Grande Rei a quem seguirão deve ser filho da Ilha Sagrada, um verdadeiro filho da Deusa. Seu filho, Igraine, sim. Mas não são apenas as tribos que lutarão contra os saxões e outros selvagens vindos do norte. Precisamos do apoio dos romanos, dos celtas e dos cambrianos, e eles só seguirão o seu próprio duque de guerra, o seu Pendragon, filho daquele que considerem capaz de liderá- los e comandá-los. E os Antigos, também, que buscam o filho de uma linhagem materna real. Seu filho, Igraine, cujo pai será Uther Pendragon. Igraine olhou-os fixamente, compreendendo, até que, aos poucos, a raiva rompeu o torpor. Respondeu-lhes então, incisiva: — Não! Eu tenho um marido, a quem dei uma filha! Não consentirei que continuem brincando com a minha vida! Casei-me como me mandaram, e vocês jamais saberão... — As palavras morreram-me na garganta. Jamais seria possível descrever-lhes aquele primeiro ano; nem mesmo Viviane seria capaz de imaginá- lo. Poderia dizer “Eu estava com medo”, ou “Eu estava aterrorizada”, ou “O estupro teria sido melhor, porque eu poderia ter corrido, depois, para ir morrer”, mas seriam meras palavras, transmitindo apenas um mínimo do que ela sentira. E ainda que Viviane tivesse sabido de tudo, penetrando sua mente e conhecendo o que ela não podia dizer, tê-la-ia olhado com compaixão e até mesmo com um pouco de piedade, mas não teria mudado de idéia, nem amenizado as exigências que lhe faria. Ouvira-a dizer, com muita freqüência, quando a irmã ainda acreditava que ela, Igraine, seria uma sacerdotisa dos Mistérios: Quem procura evitar seu destino ou retardar o seu sofrimento apenas se condena a sofrer duplamente, em outra vida. Por isso, preferiu calar; somente olhou para Viviane com o ressentimento sufocado daqueles últimos quatro anos, em que cumprira o seu dever corajosamente e sozinha, sujeitando-se ao destino, sem protestar mais do que seria

permitido a uma mulher. Mas, outra vez? Nunca, disse Igraine a si mesma, nunca. E sacudiu a cabeça, teimosamente. — Ouça, Igraine — começou Merlim. — Eu sou seu pai, embora isso não me dê nenhum direito. É o sangue da Senhora que confere realeza, e você tem o mais antigo sangue real, transmitido de filha a filha da Ilha Sagrada. Está escrito nas estrelas que só um rei vindo de duas linhagens reais — uma, das tribos que seguem a Deusa, e outra, dos que se voltam para Roma — conseguirá livrar nossa terra de toda essa luta. A paz virá quando essas duas terras puderem viver lado a lado, uma paz suficientemente longa para que a cruz e o caldeirão também se entendam. Se houver um reino como esse, Igraine, até mesmo os seguidores da Cruz terão o conhecimento dos Mistérios para reconfortá-los em suas existências sombrias de sofrimento e pecado, e em sua crença de que só têm uma curta vida para escolherem entre o Inferno e o Céu, por toda a eternidade. Sem isso, nosso mundo desaparecerá nas brumas, e centenas de anos, milhares talvez, transcorrerão, durante os quais a Deusa e os Sagrados Mistérios serão esquecidos por toda a humanidade, exceto pelos poucos que puderem ir e vir entre os dois mundos. Deixaria você a Deusa e sua obra desaparecerem, Igraine, você, que nasceu da Senhora da Ilha Sagrada, e do Merlim da Bretanha? Igraine inclinou a cabeça, protegendo a mente contra a ternura da voz do velho. Sempre soubera, sem que isso lhe tivesse sido dito, que Taliesin, Merlim da Bretanha, se associara à sua mãe para criar a sua centelha de vida, mas uma filha da Ilha Sagrada não fala dessas coisas. Uma filha da Senhora só pertence à Deusa e ao homem a quem confia o cuidado da criança — em geral, seu irmão, muito raramente aquele que a gerou. Havia uma razão para isso: nenhum homem piedoso podia pretender ter sido o pai de um filho da Deusa, e todos os filhos nascidos da Senhora eram assim considerados. O fato de Taliesin usar esse argumento, naquele instante, surpreendeu-a profundamente, e também a comoveu. Mas Igraine insistiu, recusando-se a olhar para ele: — Gorlois podia ter sido escolhido Pendragon. Certamente que esse Uther não pode ser tão superior assim a todos os outros homens. Se vocês precisam ter esse rei, não poderiam ter usado sua magia para que meu marido fosse aclamado o duque de guerra da Bretanha, e Grande Dragão? Então, quando nosso filho nascesse, vocês teriam o seu Grande Rei... Merlim sacudiu a cabeça, mas ainda desta vez foi Viviane quem falou, e esse acordo silencioso aumentou a irritação de Igraine. Por que agiam desse modo contra ela? Viviane disse suavemente: — Você não terá nenhum filho de Gorlois, Igraine. — Será você, então, a Deusa, para distribuir filhos às mulheres, em nome dela? — perguntou Igraine agressivamente, sabendo que suas palavras eram infantis. — Gorlois teve filhos com outras mulheres, por que não poderia ter um