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Interpretação da lei penal.
Tipologia: Notas de estudo
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A lei penal contém uma norma, que é uma ordem estatal dirigida a todos os cidadãos, no sentido de fazer ou não fazer alguma coisa. A norma penal incriminadora, por exemplo, contém um mandamento que impõe determinado comportamento: não matar (art. 121, CP), não constranger mulher a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça (art. 213, CP).
O conjunto das normas penais incriminadoras – que definem o crime e cominam a pena – contém o conjunto dos comportamentos humanos que são proibidos sob a ameaça de pena criminal. Quem violar o preceito pode sofrer a sanção penal.
As leis, contendo as normas, dirigem-se a todos os indivíduos da sociedade, e trazem ordens que todos devem cumprir. Toda ordem deve ser clara, precisa, exata, mas, além disso, deve ser compreendida por todos os seus destinatários.
Por mais que o legislador se esforce na missão de elaborar a norma com precisão e clareza, as palavras, as frases, as construções, a língua utilizada na comunicação, exigem uma análise a fim de bem delimitar seu conteúdo. Esta análise do texto da lei busca encontrar o sentido exato de seu conteúdo.
É que a norma penal é o marco que delimita o terreno dos comportamentos permitidos daquele outro campo das condutas proibidas, até porque, na vida em sociedade, só existem comportamentos permitidos e comportamentos proibidos. Por isso, não podem pairar dúvidas sobre o conteúdo, a extensão e o significado de cada norma penal.
Toda norma, de conseqüência, necessita ser conhecida em sua inteireza para que se possa bem saber o que se pode e o que não se pode fazer, o que é certo e o que é errado, distinguindo o proibido do permitido.
Por mais clara que seja, aparentemente, uma norma, ainda assim precisa ser analisada e examinada. Quando se diz que uma norma é clara e, por isso, não precisa ser interpretada, é porque, quando se a considerou clara, já se a tinha analisado e
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conhecido, previamente, seu verdadeiro significado.
Interpretar a lei é extrair o significado e a extensão da norma, em face da realidade; descobrir sua real dimensão, sua amplitude, o âmbito de sua incidência na vida prática.
A interpretação é uma operação lógica que visa descobrir a vontade da lei, para aplicá-la aos casos que ocorrem no dia-a-dia.
Muitos pensam que, com a interpretação, busca-se descobrir o que pretendia o legislador no momento em que elaborou a lei, o que é absolutamente incorreto.
Lembra BETTIOL: “Afirma-se algo de todo inexato quando se diz que é tarefa da hermenêutica ir à procura da vontade do legislador, compulsando trabalhos preparatórios. O legislador, como tal, é um ‘mito’, porque na realidade é composto por um grupo de homens que, sentados em torno de uma mesa, concordam, quiçá com sacrifício de suas idéias pessoais, em elaborar uma ordenação. Mas a ordenação, uma vez elaborada, se objetiva, desvincula-se do pensamento daqueles que a tomaram, vive uma vida autônoma. Repetindo Calamandrei, a lei é como um filho que sai da casa paterna para ir ao encontro da vida, para seguir a sua própria estrada, frustrando, talvez ou superando toda a expectativa do genitor. Assim, a lei é independente da vontade do legislador, mas independente também do complexo de condições histórico-ambientais que a determinaram, pelo que deve saber adaptar-se a um complexo de novas condições sociais que se podem apresentar, com o fluir do tempo.” É verdade, viva, a lei tem luz própria, impondo sua vontade até mesmo contra a vontade do legislador.
A doutrina distingue a interpretação da lei penal quanto ao sujeito que a faz, em autêntica ou legislativa, doutrinária e judicial.
(^1) BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 1, p. 152.
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carta, cartão-postal, encomenda etc., tornando claros os significados dessas expressões, evitando, com isso, a incerteza e a dúvida.
Pode ocorrer que, em vigor uma lei e surgindo dúvidas quanto a sua vontade, o legislador entenda necessário elaborar nova lei, esclarecendo o conteúdo da lei anterior, dirimindo assim a dúvida ou ambigüidade. Esta é outra espécie de interpretação legislativa, chamada posterior. Trata-se de lei nova, com o objetivo de interpretar a anterior.
Conquanto a interpretação autêntica seja a própria lei, é óbvio que é obrigatória.
Esta é a interpretação realizada pelos juristas, pelos estudiosos, pelos cientistas do Direito.
Tão logo em vigor uma lei, torna-se necessário interpretá-la. As dúvidas aparecem, e os cientistas sobre ela se debruçam e, conquanto sejam profundos conhecedores do Direito, investigam, com base nos métodos científicos indicados, e apresentam à comunidade dos operadores do Direito seu entendimento acerca da vontade da lei.
A interpretação doutrinária, é certo, não tem força obrigatória, pois não passa da opinião de um homem; todavia, sendo ele um cientista, seu pensamento será levado em conta pelos profissionais do Direito. À medida que determinado jurista se impõe perante a sociedade – pela seriedade de seu trabalho, pela cientificidade de suas obras e, sobretudo, pela coerência de suas idéias, e seu ajustamento ao sistema jurídico – suas opiniões são respeitadas e acabam por se tornar de aceitação geral.
Especialmente no Brasil, em que o legislador, muitas vezes, não atenta para a necessidade de maiores discussões, aceitando, facilmente, tudo o que vem do Poder Executivo, e, principalmente, quando busca legislar para atender a manifestações da opinião pública manipulada, o papel dos doutrinadores do Direito é da mais alta importância, pois são eles os primeiros a apontar as incongruências, as contradições, os erros das leis e a necessidade de modificá-las.
No Brasil, sempre houve juristas da mais alta respeitabilidade. No passado, Galdino Siqueira, Bento de Faria, Roberto Lyra, Nelson Hungria, Aníbal Bruno e Magalhães Noronha. Depois deles, os saudosos Heleno Fragoso, Manoel Pedro Pimentel, Francisco de Assis Toledo e Julio Fabbrini Mirabete; hoje, são expoentes do Direito Penal, entre outros, Damásio Evangelista de Jesus, e Alberto da Silva Franco.
Interpretação da Lei Penal - 5
É a interpretação realizada pelos juízes e pelos tribunais, quando do julgamento dos casos concretos.
Ocorrendo o crime e nascendo, para o Estado, o direito de punir o infrator da norma penal, vai ele, perante o juiz, pedir a condenação do homem acusado de desobedecer o mandamento. Ao juiz caberá descobrir qual a vontade da norma, qual seu alcance, qual sua extensão e profundidade, seu significado, o âmbito de sua eficácia, diante daquele caso ocorrido.
Para aplicar a lei, o juiz deve conhecer a norma e interpretá-la diante do caso concreto. Deve, pois, descobrir a vontade da lei.
Esta interpretação tem força obrigatória apenas para o caso que estiver sendo julgado. Isto significa que o juiz não está obrigado a dar à lei a mesma interpretação dada, anteriormente, por outro juiz, ou pelo tribunal.
Não está o juiz vinculado à interpretação dada pela instância superior, nem pelo Supremo Tribunal Federal.
Ao interpretar a lei penal, decidindo o caso concreto, o juiz deve estar atento para a lição do grande NELSON HUNGRIA:
“Como adverte Calamandrei, no seu Elogio dos juízes, as sentenças judiciais não precisam ser amostras de rebrilhante cultura de vitrina. O que lhes convém é que, dentro das possibilidades humanas, sejam justas, servindo ao fim prático de implantar a paz entre os homens. Longe de mim afirmar que o juiz não deva ilustrar-se, consultando a lição doutrinária e pondo-se em dia com a evolução jurídica; mas se ele se deixa seduzir demasiadamente pelo teorismo, vai dar no carrascal das subtilitares juris e das abstrações inanes, distanciando-se do solo firme dos fatos, para aplicar, não a autêntica justiça, que é sentimento em face da vida, mas um direito cerebrino e inumano; não o direito como ciência da vida social, mas o direito como ciência de lógica pura, divorciado da realidade humana; não a verdadeira justiça, que é função da alma voltada para o mundo, mas um direito postiço, arrebicado, sabendo a palha seca e cheirando a naftalina de biblioteca. O juiz que, para a demonstração de ser a linha reta o caminho mais curto entre dois pontos, cita desde Euclides até os geômetras da quarta dimensão, acaba perdendo a crença em si mesmo e a coragem de pensar por conta própria. Dele jamais se
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com ‘a violação da autonomia ética da pessoa’, ou seja, todos aqueles meios de prova que importem ofensa à dignidade da pessoa humana, à integridade pessoal (física ou moral) do argüido e, em especial, os que importem qualquer perturbação da sua liberdade de vontade e de decisão.” A descoberta da vontade da lei, pelo juiz, portanto, há de ser feita sem esquecer que estará sendo aplicada ao homem, que é a razão de ser de tudo.
Não se descobre a vontade da lei ao acaso, nem amadoristicamente, mas com a utilização de métodos.
As normas são comandos que se expressam por palavras da língua oficial. A primeira coisa a fazer é examiná-las, descobrir qual seu significado léxico e gramatical.
Assim, no art. 121, Código Penal, “matar alguém”; é preciso examinar ambas as expressões. Por “matar” deve-se entender “tirar a vida” ou “causar a morte”. E por “alguém” deve entender-se “qualquer pessoa”.
Com este método, busca-se descobrir o significado denotativo das palavras. Todavia, com o método gramatical, exclusivamente, não se consegue descobrir a vontade da lei. Basta pensar a seguinte hipótese: certo médico, encarregado de realizar uma cirurgia abdominal num seu paciente, aproveita-se e extrai do mesmo um rim, para realizar um transplante para outro paciente.
Realizando-se uma interpretação puramente gramatical, pode-se concluir que tal médico praticou o crime de furto, definido no art. 155 do Código Penal (subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel). Com efeito, o médico subtraiu, tirou, para terceira pessoa, uma coisa, o rim, alheia, do paciente que, após extirpado do corpo, tornou-se móvel. Estará, assim, a princípio, sujeito a uma pena de reclusão de um a quatro anos e multa.
Estará correta esta interpretação? Claro que não, apesar de literalmente ser aceitável tal conclusão.
(^3) In: FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 18.
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E não está porque a vontade da norma do art. 155 do Código Penal não é proteger a saúde das pessoas, mas seu patrimônio. E o rim não é patrimônio, mas órgão indispensável à manutenção da vida do homem.
Se não está certa esta interpretação, como, então, descobrir, qual norma se aplica ao fato narrado?
O método literal não é o único, pois é preciso, além dele, utilizar o intérprete do método teleológico ou finalístico, com o qual se descobre a vontade da lei.
Por meio deste método, o intérprete vai descobrir a vontade da lei, perguntando quais seus objetivos, qual sua finalidade.
Como já foi dito, a tarefa do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves. De conseqüência, é claro que as normas penais incriminadoras foram elaboradas para dar proteção aos ditos bens jurídicos. Cada norma penal incriminadora visa à proteção de um ou mais bens jurídicos. A norma do art. 155 do Código Penal, que define o crime de furto, visa proteger o patrimônio – bens materiais de valor econômico – das pessoas, dos ataques consistentes na apropriação das coisas que integram o patrimônio, sem violência contra a pessoa e sem nenhuma outra agressão a qualquer outro bem jurídico.
Já a norma do art. 157, Código Penal – que define o crime de roubo – visa proteger o mesmo patrimônio das pessoas, mas dos ataques violentos – protegendo, igualmente, a vida, a integridade física ou a tranqüilidade dos indivíduos.
Nas duas normas citadas, protege-se o patrimônio, e na segunda, além dele, a pessoa.
Para descobrir, portanto, a vontade da lei, é indispensável, em primeiro lugar, considerar o bem jurídico. No exemplo da extração do rim, é de se concluir que não pode ser furto, pois aquele órgão não se inclui entre os bens do patrimônio da pessoa, mas é um órgão integrante de sua integridade física, sem o qual resta atingida sua saúde.
Ora, existe alguma norma penal que protege a integridade corporal e a saúde das pessoas? Claro que existe. Já no Código Penal encontrava-se o art. 129:
“Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um ano). § 1 º – Se resulta: (...) II – debilidade permanente
10 – Direito Penal – Ney Moura Teles
O conhecimento da vontade da norma penal incriminadora exige o conhecimento da vontade de todo o ordenamento jurídico. Assim, por exemplo, “matar” é proibido, mas, se quem o faz age em “legítima defesa”, não há o crime.
Um exemplo. No caput do art. 342 do Código Penal está definido o crime de “falso testemunho ou falsa perícia”, assim:
“Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor, ou intérprete em processo judicial ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral.”
Já no § 2º do mesmo artigo, há uma norma que impede a aplicação da pena para este crime: “O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.”
Se o intérprete examinar apenas o caput do art. 342, poderá cometer lamentável engano, ignorando que, na hipótese de a testemunha, antes da sentença, desmentir-se, não haverá punição.
O intérprete, portanto, deve estar atento ao sistema. Examinar todas as normas que regulam o mesmo fato. Nunca contentar-se com a primeira conclusão, com a leitura superficial das normas.
O Código Penal é um sistema dividido em duas partes, a parte geral e a parte especial. Na primeira, estão os princípios gerais do Direito Penal; na segunda, a definição das várias espécies de crime com suas respectivas penas.
Na parte geral, no título I (arts. 1º a 12), as regras de aplicação da lei penal. Nos títulos II, III e IV (arts. 13 a 31), as normas que tratam do crime, em todas as suas características gerais.
No título V (arts. 32 a 95), as normas sobre as penas, e no VI (arts. 96 a 99), as medidas de segurança. O título VII (arts. 100 a 106) traz os princípios diretores da ação penal e, finalmente, o título VIII (arts. 107 a 120) cuida da extinção da punibilidade.
Na segunda parte, a Parte Especial, que vai do art. 121 até o 359, estão definidas as várias modalidades de condutas consideradas criminosas, com algumas normas penais permissivas especiais, e outras normas explicativas, relativas aos crimes em espécie.
As várias espécies de crime estão agrupadas em função do bem jurídico. Nos arts. 121 a 154, estão reunidos os chamados crimes contra a pessoa, ou seja, os crimes contra o ser humano.
Dentre deles, os crimes contra a vida encontram-se nos arts. 121 a 128, que são:
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as várias espécies de homicídio – simples, privilegiado, qualificado, culposo simples, culposo qualificado –, o induzimento, a instigação ou auxílio ao suicídio, o infanticídio e as várias modalidades de aborto.
Como se vê, portanto, existe uma ordem harmônica, de modo que o intérprete, quando vai aplicar a norma incriminadora ao fato, deve considerar a existência de várias normas e uma só delas aplicável, e que ela deve estar coerentemente ajustada ao sistema.
É preciso, pois, considerar o sistema, que, sendo harmônico, não admite ambigüidades, dúvidas ou incertezas. A vontade da lei é uma só.
Conhecer a história da lei, o contexto em que foi determinada, suas razões determinantes, sua gênese e suas transformações, pode, às vezes, ser importante no momento da descoberta de sua vontade.
BETTIOL, todavia, nos explica “que o estudo da história do Direito Penal nem sempre é útil para a compreensão do Direito Penal moderno, porque o que interessa é o significado que a norma num determinado momento apresenta, não as modalidades de suas formas precedentes, o como veio à luz. Mas se a indagação sobre transformações formais da norma em períodos sucessivos pode também trazer esclarecimentos, acerca do conteúdo substancial da própria norma, idêntica indagação deve ser realizada a respeito dos valores que ela atualmente tutela e tal indagação se enquadra perfeitamente nas exigências de uma interpretação teleológica”.
Em algumas oportunidades, confrontar o direito nacional com o de outros países, para verificar o tratamento dispensado por outros povos ao mesmo instituto, é de acentuada importância para a descoberta da vontade da lei. Assim, também o estudo do direito comparado tem seu lugar na interpretação finalística.
Deve o intérprete atentar para o chamado elemento político-social, de natureza
(^4) Op. cit. p. 161.
Interpretação da Lei Penal - 13
meses e, no máximo, dois anos e oito meses, além da multa.
Como interpretar o significado da expressão várias? Qual o mínimo de pessoas que devem presenciar tais crimes, para que as penas sejam aumentadas de 1/3? Duas pessoas, três pessoas ou quatro pessoas?
Quando se fala em várias pessoas, pode-se estar falando em cinqüenta, mil, duas mil pessoas. O número máximo de pessoas que pode presenciar uma calúnia é o número de pessoas que existe no planeta, menos o caluniador e a vítima. E o número mínimo é uma pessoa. Uma pessoa, todavia, não são várias pessoas. Para que sejam várias pessoas, esse mínimo pode ser duas, três ou quatro.
Se o intérprete chegar à conclusão de que o número mínimo é dois, terá interpretado a expressão várias da forma mais ampla possível, ou seja, várias pessoas é, no mínimo, duas pessoas.
Entendendo que o número mínimo é quatro, terá interpretado a expressão de forma a restringir sua amplitude, isto é, várias pessoas é, no mínimo, quatro pessoas, indica que se está diante de um número de pessoas menor, menos amplo, do que se o mínimo fossem duas pessoas.
Concluindo que o mínimo é três pessoas, não terá nem ampliado, nem restringido o significado da expressão várias.
Em conclusão, se o intérprete confere à letra da lei um conteúdo mais amplo, mais extenso, estará chegando a um resultado extensivo, se, ao contrário, diminui a amplitude da palavra, seu alcance, estará atingindo um resultado restritivo; se não estende nem restringe, estará tão-somente declarando o conteúdo denotativo da palavra.
No exemplo de HUNGRIA, o resultado correto da interpretação é declarativo. A vontade da norma do art. 141 do Código Penal é aumentar as penas daqueles crimes quando forem eles cometidos na presença de no mínimo três pessoas.
Como chegar a essa conclusão? Com a utilização do método finalístico de interpretação, especialmente com amparo no elemento sistemático, já explicado.
O Código Penal é um sistema harmônico de normas que, por isso, não se contradizem, antes se ajustam com perfeição.
Observando-se todo o Código Penal, encontram-se outras normas nas quais há menção à quantidade de pessoas. Assim o art. 226, I, que contém um dispositivo que se aplica aos crimes contra os costumes, estupro, sedução etc. Diz aquela norma que, se qualquer daqueles crimes for cometido “com o concurso de duas ou mais pessoas”, a
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pena será aumentada de quarta parte. O § 1º do art. 150, por sua vez, faz aumentar a pena do crime de violação de domicílio, se ele for cometido “por duas ou mais pessoas”.
Então pode-se verificar que o Código Penal quando quer referir-se à quantidade mínima de duas pessoas, expressamente refere-se ao número dois, utilizando-se da fórmula “duas ou mais pessoas”, para se referir ao mínimo de pessoas que exige.
A conclusão a que se deve chegar é a de que, se o Código quisesse que a pena para o crime de calúnia fosse aumentada de 1/3 quando cometida na presença de, no mínimo, duas pessoas, não teria usado a expressão várias, mas, coerentemente com o sistema, teria dito: na presença de “duas ou mais pessoas”. Afasta-se, portanto, o resultado extensivo na interpretação.
Se o mínimo não é duas pessoas, por que não seriam quatro pessoas? Responda-se negativamente, com base no mesmo elemento sistemático. O mesmo Código, quando quer referir-se a uma quantidade mínima de quatro pessoas, expressamente diz: “mais de três pessoas”, como na norma penal incriminadora do art. 288, que define o crime de quadrilha ou bando. Ali, para deixar claro que o mínimo de pessoas exigido é quatro, o Código não usou a expressão várias, mas, “mais de três”, e mais de três é, no mínimo, quatro pessoas.
Dar outra interpretação para a expressão várias seria, portanto, ignorar a harmonia do sistema do Direito Penal.
Declarativa é a interpretação que não confere, ao texto da lei, nenhum sentido mais amplo, nem mais restrito, mas tão-somente declara uma correspondência. São as palavras da lei, o texto da lei, correspondentes a sua vontade, sem necessidade de extensão, nem de restrição do alcance das palavras que a compõem.
Quando as palavras do texto legal disserem mais do que é sua vontade, o intérprete deve restringir seu alcance, amoldando-o à intenção da lei. Outro exemplo de HUNGRIA bem ilustra essa situação6.
Diz o art. 28, I, do Código Penal, que “a emoção ou a paixão” não excluem a responsabilidade penal. Se alguém cometer um fato definido como crime sob o domínio do estado de emoção ou da paixão, não estará, por isso, excluída sua responsabilidade
(^6) Op. cit. p. 80.
16 – Direito Penal – Ney Moura Teles
responsabilidade penal, porque a emoção e a paixão patológicas – quando constituírem doença mental – podem excluir a capacidade penal.
Em outras palavras, a vontade da norma do art. 28, I, não é dizer literalmente: a emoção ou a paixão não excluem a responsabilidade penal. Sua vontade é dizer: não excluem a imputabilidade penal: I – a emoção ou a paixão não patológicas.
Esta é a vontade da lei. Como se observa, fez-se uma interpretação que restringiu o alcance das palavras, sua amplitude, sua extensão. Literalmente amplas, abarcando toda e qualquer situação, são, todavia, restringidas, para corresponderem à vontade da lei.
O resultado da interpretação foi, portanto, restritivo. Esta é a chamada interpretação restritiva.
O inverso também ocorre. A letra da lei, em certas situações, diz menos que é sua vontade. O significado denotativo das palavras utilizadas não corresponde, por ser menos amplo, ao que a norma pretende.
Tratando-se de normas penais incriminadoras, aquelas que definem o crime e cominam as penas, em face do princípio da legalidade, que exige que a lei penal seja exata, precisa, certa, clara, é preciso muito cuidado com a interpretação que estenda o sentido, o alcance, o conteúdo das palavras, conferindo à norma, de conseqüência, maior alcance. Em se tratando de normas definidoras de crime, o intérprete deve atentar para, conferindo maior alcance às palavras, não violar o princípio da reserva legal.
São raros os casos em que se pode fazer, com normas penais incriminadoras, uma interpretação extensiva. Outro exemplo clássico de HUNGRIA^7 ,^ aliás, não diz respeito, propriamente, a uma norma penal incriminadora, mas ao nome jurídico de um crime: a bigamia. O grande penalista pátrio mostra que, quando a lei faz referência ao crime de bigamia, não deseja ela proibir apenas o segundo casamento, ou dois casamentos, mas o terceiro, quarto, mais de um casamento.
Deseja a lei, portanto, definir como crime não apenas a bigamia, mas também a poligamia. Então, o sentido da expressão bigamia deve ser interpretado extensivamente,
(^7) Op. cit. p. 82.
Interpretação da Lei Penal - 17
como abarcando, igualmente, a trigamia, tetragamia, enfim, a poligamia.
O exemplo bem revela que raramente se podem interpretar extensivamente normas penais incriminadoras. Tanto que a própria definição do crime de bigamia não carece de nenhuma interpretação extensiva, pois, na definição, as palavras correspondem, precisamente, ao texto da lei: “contrair alguém, sendo casado, novo casamento”. A vontade da norma é proibir que alguém, sendo casado, contraia novo casamento, seja o segundo, o terceiro ou o quarto. A norma incriminadora, portanto, não exigiu interpretação extensiva.
Diz a doutrina que um exemplo de interpretação extensiva está na necessidade de se compreender, na locução “expor a contágio de moléstia venérea” também a expressão “contagiar”, do crime de “perigo de contágio venéreo”, do art. 130 do Código Penal, porque a lei desejaria punir não só a exposição ao perigo de contágio, mas, igualmente, o próprio contágio.
Não me parece correto esse entendimento. O crime definido no art. 130 do Código Penal define apenas o comportamento perigoso, pune simplesmente a criação da situação de perigo de contágio venéreo. Se este vier a ocorrer, o crime praticado será outro, o de lesão corporal.
A interpretação finalística vai conduzir, necessariamente, a um resultado harmônico e conclusivo, induvidoso, e o intérprete não deve se preocupar se o resultado será restritivo, extensivo ou meramente declarativo. Se o método teleológico tiver sido aplicado com critério, especialmente com atenção à razão de ser da norma, considerando-se o bem jurídico, a agressão perpetrada e elemento sistemático, a interpretação terá sido realizada corretamente.
Aplicado o método teleológico e se, mesmo assim, não se chegar a um resultado harmônico, induvidoso, remanescendo ainda dúvidas, o caminho não pode ser outro: interpreta-se conforme seja mais favorável ao perseguido, ao acusado da prática do crime.
Por mais que o ordenamento jurídico procure ser abrangente de todas as situações que busca regular, por mais que a lei queira alcançar todos os comportamentos que atingem de modo grave os bens mais importantes, por mais que o
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respeito à possibilidade de o terceiro exigir também o reconhecimento, pelo tabelião, da assinatura do procurador constituído (João) no instrumento de substabelecimento.
Pois bem, se um juiz tiver de decidir sobre a exigibilidade do reconhecimento da firma no instrumento de substabelecimento, verificando a inexistência de lei a esse respeito, deverá, como manda o art. 4 º da Lei de Introdução ao Código Civil, considerar que o terceiro tem o direito a exigir o reconhecimento da firma no substabelecimento.
Terá, então, decidido usando a analogia.
Tratando-se de Direito Penal, é de se perguntar: pode o juiz, diante de um fato a ele relatado, e na ausência de norma penal incriminadora, aplicar, ao fato, a norma penal que incide sobre um fato parecido?
A resposta é, com todas as letras, garrafais: NÃO. O uso da analogia no que diz respeito às normas penais incriminadoras é terminantemente proibido, pelo princípio da legalidade: nullum crimen, nulla poena, sine lege. Só a lei pode definir crimes e cominar penas.
Se não há lei considerando o fato um crime, o juiz está impedido de, usando a analogia, aplicar uma pena à pessoa que o praticou.
O art. 155 do Código Penal define como crime o comportamento de uma pessoa consistente em “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Este é o delito denominado furto.
Se Cláudio, com vontade de ir ao shopping, estando atrasado e não tendo um veículo, abre o veículo de Alfredo, no estacionamento da faculdade, consegue fazê-lo funcionar e, com ele, vai até o lugar desejado, deixando o veículo no estacionamento, terá cometido uma “subtração de coisa alheia móvel para, simplesmente, usá-la”.
Apresentado tal fato ao juiz, para julgamento, este, inicialmente, verificará que Cláudio não subtraiu o veículo para si, nem para terceira pessoa. Logo, tal fato não está proibido pela norma do art. 155 do Código Penal.
O juiz, verificando que não existe norma proibindo Cláudio de realizar tal subtração, poderá, por analogia, aplicar a norma do art. 155, que se aplica a fatos bem parecidos, bem semelhantes?
Claro que não. Só há furto quando a subtração é feita com o ânimo de
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assenhoreamento da coisa, isto é, para o próprio agente ou para terceira pessoa.
Não houve crime de furto. Cláudio, é evidente, cometeu um fato contra o Direito, mas não contra o Direito Penal. Sua atitude é ilícita, mas na esfera do direito civil. Violou um direito de Alfredo e, segundo manda o art. 927 do Código Civil, deverá reparar os danos causados. Crime de furto, todavia, não praticou.
O uso da analogia para suprir omissões ou lacunas do sistema de normas penais incriminadoras é terminantemente proibido, porque viola o Princípio da Reserva Legal. Definir crimes, cominar penas, é matéria reservada à lei ordinária federal e só ela pode fazer.
O Juiz, não.
O Código Penal (nos arts. 124 a 127) proíbe a realização do aborto – interrupção da gravidez, com a morte do produto da concepção –, cominando-lhe severa sanção penal. O art. 128, II, do Código Penal, todavia, contém uma norma penal permissiva, que diz:
“Não se pune o aborto praticado por médico: II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” Trata-se de uma norma penal permissiva justificante, daquelas que consideram justificada, lícita, a conduta definida como crime.
Isto significa que, se Maria, estuprada, ficar grávida, poderá consentir em que o médico realize intervenção cirúrgica com o fim de interromper sua gravidez, e matar o produto daquela concepção. É permitido esse aborto. Não ofende o Direito. É justo.
A norma é clara, o aborto é justificado, se a gravidez tiver resultado de um estupro, que é a “conjunção carnal” obtida mediante violência ou grave ameaça.
É preciso pensar agora noutra situação, um pouco diferente da anterior, a de Ana, que foi constrangida, mediante gravíssima ameaça ou, até, violência física, por José, a praticar com ele diversos atos libidinosos.
Foi constrangida a sexo oral, sexo anal, enfim, a uma série de contatos físicos, sem, contudo, ter havido conjunção carnal, a penetração do pênis na vagina.
Apesar da ausência da conjunção carnal, Ana, dias depois, verificou estar grávida. Como não tivera qualquer contato sexual com outro homem, é óbvio que, por uma