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ARTIGOS SOBRE DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Tipologia: Provas
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Arte sobre foto de Marcos Santos
resumo
É de engano e de mentira que se trata. A novidade está, como em tudo o mais nos dias que correm, no que os computadores e a rede mundial permitem fazer com isso. Sim, é de mentira que se trata, mas do uso dela com o objetivo específico de subverter ou minar a democracia, o único sistema de constituição do poder do Estado em que a “opinião pública” é o fator determinante.
P a l av r a s - c h av e : p ó s - v e r d a d e ; democracia; liberdade; justiça.
abstract
It is all about deception and lies. The novelty lies, as is the case of everything else in our current days, in what computers and the worldwide web can do with it. It is about lies, but mainly about using it to specifically subvert or undermine democracy, the only system for establishing the power of the state in which “public opinion” is a decisive factor.
Keywords : post-truth; democracy, freedom; justice.
Marcos Santos/USP imagens
dossiê pós-verdade e jornalismo
no livro e reclamava a mesma satisfação que tinha sido dada no caso anterior. Cabia a um júri aferir a verdade dos fatos e ao juiz zelar pelo cumprimento de todos os passos do processo e confirmar ou não, no final, a identidade do caso com o precedente. A pena, então, era automaticamente a mesma dada no caso anterior. Segue sendo assim até hoje nos países de common law , e a diferença no espaço para o arbítrio em cada um desses dois sistemas está na raiz da diferença no grau de corrupção dos organismos políticos e institucionais que eles integram. Mas esse não é o nosso assunto hoje... O fato é que só dois autores, na época, eram reconhecidos como fontes autorizadas de referência de writs. E os compêndios exis- tentes eram muito poucos e bem guarda- dos por órgãos ligados ao sistema judiciá- rio, posto que copiados à mão. A prensa de Gutemberg criou, entretanto, a primeira onda de “inflação editorial”. Ficou barato escrever e publicar. Uma série de compêndios wiki começou a surgir, a confusão tornou o filtro bem mais permeável, ficou fácil entrar com processos. Tudo estava contaminado pelos ruídos da imprecisão, da desconfiança e da sobrecarga sobre o sistema exatamente no momento em que estava havendo uma troca de dinastias no reino. Foi aí que James, o primeiro dos Stuarts, sentiu a oportunidade de agarrar para si os mesmos poderes absolutos de seus colegas do continente. Diante da resistência da tra- dicional corte de Common Pleas, ele cria outra, paralela, a Corte da Chancelaria. Dig- nitários da igreja faziam o papel de juízes e davam sentenças enviesadas pelas con- veniências de sua majestade e da “fé”. Os fatos iam ficando à margem dos processos. A justiça tradicional passa então a desau-
torizar e anular as sentenças da corte do rei. A temperatura sobe com murmúrios de alta traição. O confronto final se dá na sala do trono. Sua majestade brande o seu “poder divino” e a sua posição “acima de todos os homens” e ameaça o pescoço dos rebeldes com o machado. Os juízes à sua frente estão mudos, cabisbaixos. A rendição estava no ar. Mas então Edward Coke, o juiz supremo da Inglaterra, toma a palavra. E, com uma argumentação fulminante, declara o rei under god e under the law. É esse under god que nos interessa mais. O que ele estava afirmando ali era a preva- lência dos fatos sobre a “narrativa”, ainda que fosse a de sua majestade despejada lá do Olimpo. “Ninguém tem o poder de alterar os fatos, que a Deus pertencem.” E eram eles que deveriam orientar o oferecimento de justiça “ou não haveria paz jamais”... A luta não acaba ali, mas, desde então, passa a ser travada em outro patamar. A pedra fundamental da democracia moderna estava lançada e a primeira cabeça coroada da Europa ainda teria de rolar antes que o Parlamento se firmasse definitivamente como o poder hegemônico (1689), mas era todo o edifício do dogma, o único a sustentar o privilégio institucionalizado, que estava começando a ruir. A experimentação tomaria o lugar da revelação, a Terra sairia do centro do Universo e o homem sairia do centro da Terra, a ciência moderna nasceria, a huma- nidade se livraria para sempre da escassez e teria de aprender a lidar com a abundância e a superioridade da democracia, passo a passo, se afirmaria, senão por tudo o mais, pelo argumento indiscutível do resultado. Passados 413 anos, democracia mesmo, o sistema que, a partir da virada do século XIX para o XX, evoluiu para armar a mão
da “opinião pública” do recall , do referendo e da iniciativa para fazer a sua vontade efe- tivamente prevalecer sobre a dos seus repre- sentantes eleitos, ainda é um privilégio de muito poucos. O conceito geral, entretanto, foi universalmente adotado como sonho. Nin- guém pode bater de frente com ele impune- mente. Até as ditaduras precisam vender-se como “excesso de democracia” e incluir no seu figurino institucional elementos que ao menos se pareçam com instituições democrá- ticas. A paulatina conversão da luta contra a democracia “burguesa”, de uma disputa entre verdades concorrentes para a destrui- ção do próprio conceito de verdade, inclui o reconhecimento da relação indissolúvel entre democracia e verdade. Admitir que onde está bem plantada, a democracia só pode ser destruída por dentro, a partir de uma deliberação da maioria contra si mesma, e que só uma trapaça pode produzir esse efeito, homenageia a superioridade moral que seus inimigos sempre lhe negaram ao longo do século XX. No estágio pré-tecnológico, quase arte- sanal, aquilo que viria a se transformar na “pós-verdade” evoluiu do “patrulhamento ide- ológico” de antes do poder para a repressão e a agressão armadas da disputa por uma hege- monia geoestratégica, até desaguar, depois de detida no seu avanço militar, na tentativa de impor uma “hegemonia cultural” em busca do “consentimento social” para um conjunto de convicções, normas morais e regras de conduta semeadas com um trabalho meti- culoso de “superação” induzida de crenças e sentimentos estabelecidos, conducente à autoimolação das democracias, a ser obtida pelo “controle dos meios de difusão cultural da burguesia”, e à “cooptação de artistas, pro- fessores e intelectuais orgânicos” a serviço
Marcos Santos/USP imagens
inimigo que não respeita regra nenhuma pode explorar ilimitadamente, tanto pela vertente positiva quanto pela vertente negativa. A imprensa e o Judiciário, por exemplo, só podem mentir pelo que não fazem. Não dá para denunciar um inocente nem para inventar um fato inexistente sem ser des- mentido em seguida, mas é perfeitamente possível não denunciar um culpado e ignorar um fato existente sem ser necessariamente acusado de mentir. Não se pode esconder impunemente uma denúncia levada a uma redação, mas pode-se facilmente escolher a quais dossiês dar-lhe ou não “acesso” e, uma vez dentro das redações, decidir quais serão publicados, cercados ou não de todos os emocionantes recursos de son et lumi è re possíveis. Pode-se fazer minguar uma culpa muito grande falando baixo e pouco dela ou inflar uma culpa muito pequena falando alto e insistentemente nela. Pode-se “relacionar”, “envolver” ou “ligar” fortemente alguém a alguém, mesmo que essa ligação seja tênue e fortuita, com a mera justaposição de maté- rias. Pode-se descontextualizar um fato para fazê-lo parecer o que não é, condenar à não existência midiática alguém que vive de voto, brincar com a inversão da relevância do que alguém disse ou deixou de dizer até fazer do sujeito o avesso de si mesmo. Pode-se promover o linchamento moral de quem não declamar pela cartilha “correta” até que a mentira deixe de ser uma questão moral e se transforme numa questão de sobrevivência, expediente do qual guardam uma memória atávica os povos que viveram sob escravidão ou sob regimes de terror. E pode-se levar esse medo – seja da execução física, seja da execução moral ou econômica – a tais extremos que até evidências materiais ou biológicas “deixem de existir”...
Não há fim para essa lista de peço- nhas de ação instantânea, para as quais o único antídoto continua sendo a apuração meticulosa da verdade dos fatos, pois os “reis” hodiernos, individuais ou coletivos, também estão under god. Mas isso custa muito tempo e muito dinheiro, elementos cada vez mais escassos no universo do jor- nalismo profissional, onde, como em toda parte, homens da coragem e da estatura moral de Edward Coke continuam sendo tão raros como sempre foram. Foi a essa longa construção que se veio adicionar a vertigem da informática. Peque- nos pacotinhos de código multiplicáveis e aceleráveis ao infinito podem operar essas falsificações e semeá-las em escala global precisamente dentro de cada ouvido que já se tenha declarado alguma vez disposto a aceitá-las e viralizá-las. Algoritmos destrin- chando massas ciclópicas de big data podem analisar o trânsito dessas mensagens pela rede mundial em cada pormenor das suas sucessivas idas e vindas, redistribuí-las e ajustá-las para a produção do efeito dese- jado enquanto desviam das defesas erguidas à sua frente a cada passo. Novos aplicati- vos permitem reproduzir e animar avatares com imagens e vozes idênticas às originais a partir de uns poucos minutos de gravação do modelo... mas o único antídoto continua sendo a lenta e minuciosa apuração artesa- nal da verdade. A humanidade sem edição é mais feia que a outra, mas, com o tempo, aprenderá a adequar seus filtros às novas maneiras de fraudar os velhos. Pode-se sempre enganar muitos por algum tempo, mas nunca a todos o tempo todo. O que é mais difícil de pilotar é a perda da capacidade dos Estados nacio- nais de impor a lei especialmente no campo
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econômico, que é organicamente transnacio- nal. O capitalismo democrático é a expressão mais palpável da superioridade da democracia “burguesa”. A liberdade que ela construiu e, por quase um século, conseguiu garantir não é senão a que exercemos como produtores e consumidores que dispõem de alternati- vas de patrões e de fornecedores, obra da moribunda legislação antitruste americana que fez mais pela distribuição da riqueza neste planeta do que todas as revoluções socialistas juntas, incluídas da primeira à
última, e segue sendo uma excepcionalidade histórica absoluta. Foi ela que moldou tudo o que houve de bom no século XX e con- tribuiu para catapultar a humanidade para uma nova dimensão. A virulência do impulso concentrador instilado na economia global pelo capitalismo de Estado empurra incoer- civelmente o mundo para os monopólios e a concentração da riqueza e predispõe os ouvi- dos, tanto nas democracias plenas quanto nas apenas em potência, para a “pós-verdade”. É este o maior desafio do terceiro milênio.