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A DUPLA SISTEMATIZAÇÃO DO DIREITO CONTINENTAL: CODIFICAÇÃO E CIENTIFICIZAÇÃO Prof. Jairo liso! - UPIS Doutor em Direito pela UFPE A modernidade, ao submeter o saber jurídico ãos domínios da razão epistêmica e da jógica formal, acabou por sistematizá-lo como um conjunto de teorias jurídicas -- sistemas conceitueis onde à norma juridica figura como categoria fundamental. De igual modo, tratou de imprimir sisiemalicidade ao discurso normativo como objeto central do saber jurídico: a lei codificada arrima-se também nas idéias de plenitude e coerência lógicas. Com este duplo e articulado movimento de sistematização, do discurso c do meta-discurso normativo, promoveram-se profundas alterações ne penssunento jurídico, visando a gavantir previsibilidade às práticas jurídico-decisórias, de modo nadarestasse ao sabor da vontade casuística do intérprete-aplicador. de um raciocinio jurídico: de natureza dedunva está profundamente arraigada nestas duas pretensões do pensamento jurídico moderno: 1) a cientificização do saber jurídico, desviando seu leito prudencial para os domínios da ciência, munindo-o com a roupagem. lógico-formal da racionalidade epistêmica; 2) a codiiicação das normas legais, onde se verten um esforço de sistematização da lei com intuito de lrazer para o campo normativo o modo de conclucdência silogística. Perseguia-se com isso a vinculação incondicional do aplicador ao texto da lei, como expressão acabada. de um ato de vontade do legislador. Os códigos perseguiram institúir um sistema de normas capaz de oferecer um tratamento exaustivo à matéria regulada e, ao mesmo tempo, responder aos princípios lógico-aristotélicos que lhe emprestavam coerência interna. As idéias de codificação e de sistema, filhas diletas do jusracionalismo iluminista dos séculos XVII e XVII, twaduzem a busca de um direito organizado segundo as exigências da razão!, Com eles se pretendeu oferecer aos conflitos judicializados uma única solução normativa válida. 4 Rd 1 WIEACRER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. n. 340-395. Com este núcleo teórico-instrumental, a um só tempo legalisia, formalista e normativista, o pensamento jurídico continental submeteu o ato decisório a um controle racional inspirado no modelo de inferência silogística. Bem observado, a norma jurídica geral é o critério pelo qual o sistema escolhe o problema: não sendo o conflito subsumível ao texto normativo, constitui-se num falso problema jurídico, ou seja, um conflito não jurídico. De igual modo, nos conflitos que interessam ao direito, só são juridicamente relevantes os aspectos que se enquadram na norma geral. Toda a conflitividade transbordante .ao esquerna da lei não in à discussão judiciária do conflito. Assim, ao imprimir significação jurídica, a norma reinstitucionaliza o conflito: toma o conflito, enquanto fato num fato jurídico, emprestando-lhe decidibilidade nos limites de vm esquema racionaimente controlado. A racionalização do exercício do poder pela tLripartição de suas funções essenciais exigia, entre outras coisas, não mais sc confundissem sob o manto de uma mesma autoridade os atos de elaboração « aplicação do dire LD. “A decisão judicial fundameNtada na lei limita-se-ir, nestes moldes, ao exercício de mera cognição, garantindo-lhe uma natureza exclusivamente técnica; já a elaboração legislativa do direito estaria calçada em atos de natureza política. O cientismo jurídico, desdobrando-se em idéias como as de “sistema normativo”, “norma geral”, “silogismo ju-iiciário” e “igualdade formal de todos perante a lei”, marcou de tai modo a cultura jurídica atual que não seria correto pensarmos o direito em termos de juizes e normas antes do advento do Estado Moderno. Para garantir objetividade às práti judiciárias positivou-se de forma mais expli ita e sistemática as regras constituiivas do cireito: daí a consolidação e a codificação das leis, a constitucionalização do direito e sua projeção na idéia de ordenamento jurídico. Com o advento da modernidade e a adoção de um novo padrão de racionalidade de vocação epistêmica, desacreditou-se no modelo da phrónesis herdada dos gregos e estudada no âmbito da filcsofia prática, por não corresponder à busca da evidincia pelos cânones da demonstração, Perseguiu-se a separação radical entre os processos de conhecimento e de valoração do mundo e, com isso, a razão posto que direito Estatal não resultava da mera arbitrariedade do poder; de outro, é "expressão da autoridade visto que não é eficaz, não vale se não for posto e feito valer pelo Estado (e precisamente nisso pode-se identificar no movimento pela codificação uma raiz do positivismo jurídico)'s. Esta idéia de sistema, subjacente à concepção jusracionalista de direito, serviu de estrutura formai para a derradeira consolidação do positivismo legalista. Os códigos modernos, em sua origem, representavam a pretensão iluminista de um legislador racional - modelo que falhou diante das idiossincrasias históricas do legislador concreto: o pensaimento jusracionalista não percebeu a “lógica irracional! que perpassa o exercício do poder político pelos corpos lcgislativos. O processo de claboração legislativa do Código Cívil Napoleônico na Prança, apesar de se inspirar num autoprojeto originalmente jusracionalista, acabou consalidamic a lwadição romanística do direito comum, substituindo a idéia de um conjunto de normas deduzidas de princípios racionais « priori por uma sistematização normativa do velho direito romano”, Apesar da importância das impostações do jusracionalismo racionalista da finoca da lhistração, seja no tocante à codificação do direito, seja va elaboração de um saber juridico de vocação vistemáiica, foi o historicismo alemão que emprestou. os fundamentos de superação do jusnaturalismo, garantindo a transição ao positivismo, onde o direito estatal é obra de uma vontade política historicamente determinada. O historicismo, opondo-se ao movimento de codificação que avançava na Europa continental, teceu profundas críticas ac universalismo dos princípios abstratos da razão € conferiu ao direito toda a contingência da história: o direito é produto de forças espirituais e coletivas historicamente determinadas, cabendo aos juristas a sua organização sob a forma dos sistemas conceituais da racionalidade cientifica, O positivismo jurídico resgatou as idéias de sistema e de codificação do jusracionalismo, de um lado, e o caráter puramente coniingencial e iemporal do direito no historicismo alemão, de outro. Entretanto, negou a submissão do legislador às forças históricas e espirituais do povo, concebendo 8 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosoiia do direito. São Paulo: icone, 1995. p. 54. 7 BOBBIO, Norberto, O positivismo juridico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 63-89. um direito produto do exercício de um poder soberano, cuja elaboração submete-se à vontade arbitraria do legistador histórico. O monopólio da produção jusnormativa por atos de soberania do Estado-legislador é um dos primados fundamentais da concepção liberal-burguesa da ordem jurídica e política subjacente ao Estado de Direito. O reconhecimento do irracionalismo inerente à função legislativa não impediu, no entanto, perseverassem as pretensões de controle racional do diréito; antes, acabou provocando um importante deslocamento: no lugar do legislador racional, proposto pelo ideário jusracionalista, surge a figura do juiz racional, sustentada pelos positivistas. Assim, o direito passou a ser, de um lado, o produto resultante da atividade política do poder legislativo e, de ouiro, o limite do poder decisório judicial. À ciência do direito, aliada de sua função de claboração do direito, cabia tão-somente promover a interpretação sistematizadora da lei, “pres si la ley es fruto de la voluntad, de la ideologia dei f improcedente ensayur una ciencia de la isgislacié poder o de una formación esponiânea y cosficada, resulta por completo 8 A busca do controle racional manifesta-se claramente nas duas concepções jusfilosóficas antípodas que se sucederam nos umbrais do mundo moderno: de um lado, o pensamento jusracionalista propôs a redução das práticas legislativas a uma atividade técnico-cient ica, onde o direito legislado espelharia um sistema normativo logicamente dedutível de um conjunto de principios jurídicos universais e apriorísticos; de outro lado, o positivismo jurídico buscou reduzir o juiz a um simples técnico e aplicador acrítico dos iextos legais fixados pela vontade política do legislardor?. A iúéia de um juiz racional foi indispensável à consolidação do Estado Moderno, ínsita à lógica da separação das funções le ativa e judicial. De igual modo, ao dar vazão à noção jusracionalista de sistema normativo, o fenômeno da codificação consolidou vm dos mais renitentes mitos do pensamento jurídico desde a cra moderna: o mito do silogismo judiciário. A aplicação subsuntiva do direito codificado traduz uma compreensão iécnico- cognitiva da atividade jnriciária, cujo êxito depende de uma magistratura estreitamente vinculada ao texto legal, imune às intervenções de índole 8 SANCHÍS, Luis Prieto. Ley, principios, derechos. Madrid: Dykinson, 1988. p. 18-19. º BOBBIO, Norberto. Derecho y lógica. Ciudad del México: Universidad Nacional Autônoma de México, 1965, p. 13. 1 manifesto potencial de enxugamento e sistematização do texto legal: o método abstrativo-generalizador, no qual se inspira a atividade codificadora até os dias de hoje. Surgem os códigos modernos ostentando, de um lade, maior rigor no âmbito lógico-formal intemo e, de outro, maior flexibilidade para adaptar- se com eficiência à diversidade empírica das condutas hipotericamente normadas. Estes códigos foram dotados de inovadoras “partes gerais” que passaram a cumprir, desde então, uma relevante função normativa: mediante suas construções conceiiuais ebstratas, tralam de impritair unidade diversidade temática positivada nos mais variados dispositivos da lei codificada. A uma só palavra, com o advento dos códigos, garantiu-se uma > maior “sistematização” dos conteúdos normativos legais. Operar o direito por meio de um pensamento sistemático dependia de uma dupla sistematização: de um lado, a normativa, alcançada pela codificação do direito; de outro, a das construções teoréticas c seus sistemas conceptuais, eis somente ser possível raciocinar-se sistematicamente no interior de wma tcoria. Dai o pape: ordenador das teorias gerais ao emprestarem suas c ções conceituais às partes gerais dos códigos de lei, Por força desta idição cientificista, os juristas continentais tomam o direito como um, sis ormas legais vinculantes, ou seja, um conjunto logicamente coerente e orrienado de ratio decidendi apriorísticas, formando uma totalidade que aspira encerrar os conteúdos normativos necessérios à fundamentação das decisões judiciais. Os findamentos normativos que formam o sistema jurídico advêm ordinariamente da atividade estatal, seja como conjunto de precedentes registrados pela corte judicial, seja como complexo de textos elípticos resultantes da elaboração político-legisiativa e devidamente publicados em coietâncas oficiais. A moção de ordenamento jurídico confere acabamento a esta pretensão moderna de definir na anterioridade do julgamento o fundamento normativo da decisão. Os sistemas de cireito legislado buscam conter a ratio decidendi no corpo do texto legal e suas adjacências (lacunas da lei), texto e contexto onde os magistrados devem encontrar os fundamentos normativos de suas sentenças judiciais; já no common law, as razões de decidir são fixadas pelo alcance vinculante dos precedenies judiciais, pondo à vista uma estratégia antes jurisprudencial do que propriamente consuetudinária de positivação do direito. Ao fim e ao cabo, cada qual busca oferecer um critério objetivo e apriorístico de definição jurídica dos direitos tuteláy cis pelo Estado, o que corresponde à idéia fundamental de segurança jurídica. Se tomarmos os códigos civil e penal - as duas grandes obras legislativas da modernidade -, perceberemos um alcance diferenciado da função jurisdicional em face do princípio da legalidade: no âmbito do direito privado este princípio é mitigado pela possibilidade da validação da decisão judicial em fundamentos outros que não o específico conteúdc da lei; já no camjpo penal, dado o caráter injuntivo da reserva legal, aplica-se o direito nos limites da legalidade estrita. Em outras palavras, a jurisdição criminal deve tística, por seu ater-se à interpretação e aplicação da lei, A jurisdição turno, está habilitada. a avençar pelo terreno vantanoso da identificação e colmatação de lacunas da lei, o que se desenvolve mediante a atividade integradora do direito. No direito brasileiro esta organização inivassistemática estremada no artigo 4º da, Lei de Introdução ao Código Civil, pois “quando a lei for omissa, O juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes c 05 rincípios gerais do direito”, e no artigo 1º do Código Penal, onde está B jp 8 & & rescrito que “não há crime sem lei anterior que o não há pena sem E! prévia cominação legal”, Como techo indispensável à idéia de sistema verifica-se ainda o enquadramento de ambas as soluções no axioma entológico do direito, segundo o qual “udo o que não estã juridicamente proibido, « o juritticamente permitido”. Assim, no âmbito criminal o campe do que juridicamente proibido está demarcaido especificamente pela lei. Já no direito privado, permite-se reconhecer o caráter lacunoso da lei, liberando ao aplicador do direito identificar reis omissões e promover a integração do sistema de acordo com a amaiogia, os costumes e os princípios gerais do direito. Conforme já acentuamos, o desenvolvimento desta sistemática de interpretação e aplicação pretensamente objetiva do direito legislado deu-se em torno das grandes codificações modemas do século KVII, embalado pelos ideais iluministas. Gestou-sc, a partir daí, wma fé incondicional na racionalidade da lei codificada, sentimento que sobreviveu aos ataques da 12 BRASIL, Lei de Introdução ao Código Cinil: Decreto-Lei nº 4.657 1942.. 13 BRASIL. Código Penal: Decreto-Lei nº 2.848, de '7 de dezembro de 1940, Art. 1º. , de 4 de setembro de