Pré-visualização parcial do texto
Baixe Etnomatemática - Ubiratan D'ambrósio e outras Notas de estudo em PDF para Matemática, somente na Docsity!
: Etnomatemática se situa numa área de transição entre a antropologia cultural e a matemática academicamente institucionalizada, Seu campo de estudo abre caminho a uma matemática antropológica: arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender os diversos contextos culturais. Ubiratan D'Ambrosio, professor titular da Unicamp, é considerado internacionalmente o introdutor dos estudos matemáticos aplicados à cultura de um povo. Membro de várias associações acadêmicas e autor de inúmeros trabalhos no campo da matemática pura e da filosofia das ciências; é presidente da Sociedade Latino-Americana da História das Ciências e da Tecnologia. ÁREAS DE INTERESSE DO VOLUME "ANTROPOLOGIA eCIÊNCIAS «EDUCAÇÃO eMATEMÁTICA E: E didia E OUTRAS ÁREAS DA À “ADMINISTRAÇÃO ARTES “CIVILIZAÇÃO *COMUNICAÇÕES “DIREITO «ECONOMIA “ENFERMAGEM “ESTÉTICA *FARMÁCIA “FILOSOFIA «GEOGRAFIA «HISTÓRIA ºLINGUÍSTICA “LITERATURA MEDICINA *ODONTOLOGIA *POLÍTICA *PSICOLOGIA «SAÚDE SOCIOLOGIA — UoIratar 131 Fu SERIE S| 74 | Ubiratan D' Ambrosio Professor titular de Matemática da Unicamp “EINOMATEMÁTICA Arte ou técnica de explicar e conhecer IL pessoas usam matemática na sua vida diária, sem terem sequer frequentado escola. Às vezes, essa matemática é mais profunda do que se suspeita. Ao construir seu barraco, uma pessoa analfabeta, que nunca aprendeu a ler ou escrever, usa 0 teorema de Pitágoras, calcula áreas, utiliza o conceito e as propriedades das diagonais do retângulo, etc. Í í i i i t Í Ê É 5.2 edição G q Conhecimento e poder 73 Referências bibliográficas 7 7. Conclusão 78 8. Vocabulário critico so 9. Bibliografia comentada -— 8 Prefácio Lhave some respect for my ancestors, and belicve they had more up in their sleeve than just the marvel of the unborm sue. * (D. H. Lawrence, 1921) Ao iniciar uma discussão sobre etnomatemática é interessante tecer algumas considerações de natureza mais geral e que servirão so- bretudo para definir o contexto teórico da nossa abordagem, nossa postura em relação ao estudo da matemática e das ciências em geral, à sua história e ao seu ensino. É importante reconhecer na etnomate- mática um programa de pesquisa que'caminha juntamente comi uma “prática escolar 0 “Não seria necessário tentar uma definição ou mesmo conceitua- ção de etnomatemática nesse momento. Mais como um motivador para nossa postura teórica, utilizamos como ponto de partida a sua etimologia: etno é hoje aceito como algo muito amplo, referente ao contexto cultural, e portanto inclui considerações como linguagem, jargão, códigos de comportamento, mitos e simbolas; matema é uma raiz difícil, que vai na direção de explicar, de conhecer, de entender; e tica vem sem ditvida de techne, que é a mesma raiz de arte € de téc- nica. Assim, poderiamos dizer que etnomatemática é a arte ou técni- ca de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos cultu- * “Eu tenho algum respeito pelos meus antepassados e acredito que eles tinham um trunfo escondido maior do que apenas a maravilha do cu que viria.” £ ETNOMATEMÁTICA rais. Nessa concepção, nos aproximamos de uma teoria de conheci. mento ou, como é modernamente chamada, uma teoria de cognição. Somos assim levados a identificar técnicas-ou mesmo habilida- des e práticas utilizadas por distintos grupos culturaís.na sua busca de explicar, de conhecer, de entender o mundo que os cerca, a reali- dade a eles sensível e de manejar essa realidade em seu bencíício é no benefício de seu grupo. Naturalmente, nos situamos aí no contex- to etnográfico. O próximo passo é a busca de uma É teórica, de um substrato concei dese prái an por q tno atemática e história das ciên ias apare mo áreas muito próximas nesse programa. Dentre essas'várias técnicas, habilidades € práticas encontram-se aquelas que utilizam processos de contagem, de medida, de classificação, de ordenação e de inferên- cia, e que permitiram a Pitágoras identificar o que seria a disciplina cientifica que ele chamou matemática. Naturalmente, essa tentativa de classificar estilos de abordagem da realidade, da natureza, é grega e assim matemática; como a concebemos nos nossos sistemas escola- res, resulta do pensamento grego. Outros sistemas culturais desen- volvem técnicas, habilidades e práticas de lidar com a realidade, de manejar os fenômenos naturais, e mesmo de teorizar essas técnicas, habilidades e práticas de maneira distinta, embora Os meios de fazer isso encontrem uma universalidade decrescentemente hierarquizada de processos de contagem, medições, ordenações, classificações e in- ferências, Isto é, grupos culturalmente diferenciados como grupos de adolescentes de uma comunidade indígena e jovens profissionais de uma cidade industrializada explicam o fenômeno da chuva de manei- ra absolutamente distinta, inclusive quantificando-o de outro modo. Igualmente, 40 propormos a crianças de comunidades distintas, na faixa dos dez anos, a construção de um papagaio, que envolve medi- ções, contagens e outras técnicas, a abordagem será completamente diferente. Da mesma maneira, ao propormos um problema como o controle de um sistema elétrico de grande potência à engenheiros e a matemáticos, a abordagem será também diferente. Essas diferen- cas vão além da mera utilização de técnicas, habilidades e práticas istintas, mas refletem posturas conceituais distintas e enfoques cog- nitivos distintos. Essencialmente, admitimos que toda atividade humana resulta de motivação proposta pela realidade na qual está inserido o indivi- duo através de situações ou problemas que essa realidade lhe propõe, PREFÁCIO 7 diretamente, através de sua própria percepção e de seu próprio meca- nismo sensorial, ou indiretamente, isto é, artificializados mediante pro- postas de outros, sejam professores ou companheiros. Queremos en- tender esse processo que vai da realidade à ação. Admitimos também que a abordagem dessas situações ou problemas é cultural, e procu- ramos analisar quais as diferenças cognitivas que resultam dessas di- ferenças culturais. Esse programa, que repousa sobre a admissão dos dois fatos acima, encontra muita semelhança com o que vem sendo chamado metacognição, com pesquisas recentes sobre a organização do cérebro e com inteligência artificial, Diríamos que esses são pro- gramas afins. Encontramos no programa Etnomatemática vantagens do ponto de vista ciiliural, ôndê à análise histórica aparede Gómio um instrumêiital iltiportante, e também do ponto de vista pedagógico, pois lidamos, diretamente com o processo de aprendizagem, — Sintetizando, poderíamos dizer que etnomatemática é um pro- grama que visa explicar os processos de geração, organização e trans- missão de conhecimento em diversos sistemas culturais e as forças in- terativas que agem nos e entre os três processos. Portanto, o enfoque é fundamentalmente holístico. e aa aa , Na metodologia adotada, se bem que repousemos sobre muita informação de natureza etnográfica, a análise histórica é fundamen- tal. Não seria necessário nem mesmo conveniente tentar uma defini- ção ou conceituação de história. Mais como um motivador para nos- sa discussão, vamos lembrar que Caldas Aulete, no seu Dicionário contemporâneo de tingua portuguesa, 1958, traz no verbete “histó- ria" o seguinte: “Narração de acontecimentos e ações dignos de me- mória cronologicamente dispostos”. Seriamos assim levados a iden- tificar fatos, nomes, lugares e datas, dispondo acontecimentos e ações numa ordem cronológica, tudo impregnado de uma postura ideoló- gica que nos determina se esses acontecimentos e ações são dignos de memória. Essa postura ideológica é típica na narrativa histórica e é discutida no excelente ensaio historiográfico de Bernard Lewis (1975), cujo titulo é em si uma explicação da importância dessa ob- servação: History: remembered, discovered, 11 d. Na história das s essa é a postura dominante, o qu e exclui etno- Teferências a matemáticas praticadas por outros um ponto de vista marcadamente eu- rocêntrico, paternalista é encarando os conhecimentos de outros con- textos culturais como na melhor “sabedoria”. Ce o l Valores no ensino de matemática Vamos começar com uma avaliação do que se passa no ensino de matemática. A análise tem um caráter de universalidade, pois o que observamos se passa em praticamente todos os países e em todos os níveis de aprendizado. Essa universalidade é de se esperar, bem como é justificado iniciar nossa crítica justamente pelo ensino de ma- temática. A matemática é, desde os gregos, uma disciplina de foco nos Ú sistemas educacionais, e tem sido a forma de pensamento mais está- vel da tradição mediterrânea que perdura até nossos dias como mani- | festação cultural que se impôs, incontestada, às demais formas. En- - | quanto nenhuma religião se universalizou, nenhuma língua se univer- q salizou, nenhuma culinária nem medicina se universalizaram, a ma- | temática se universalizou, deslocando todos os demais modos de quan- tificar, de medir, de ordenar, de inferir e servindo de base, se impon- (o como o modo de pensamento lógico e racional que passou a iden- tificar a própria espécie. Do Homo sapiens se fez recentemente uma transição para o Hormo rationalis. Este último é identificado pela sua capacidade de utilizar matemática, uma mesma matemática para to- da a humanidade e, desde Platão, esse tem sido o filtro utilizado pa- ra selecionar lideranças. VALORES NO ENSINO DE MATEMÁTICA 1 A partir das críticas sociais que se intensificaram no final do século passado, o ensino de matemática vem sendo objeto de estudos intensos. Congressos, conferências c comissões internacionais, possi- veis em grande parte graças à universalidade da disciplina, têm sido o fórum para essas reflexões. Ao examinar a séric de Conferências Internacionais de Educa- ção Matemática — CIAEM (1966, 1968, 1975 e 1979) — e os Con- gressos Internacionais de Erlucação Matemática — ICME (1968, 1972, 1976, 1980 e 1984) — nota-se uma distinção muito clara e marcante na ênfase que se deu em cada. um desses eventos. No caso latino- americano, as reuniões de Bogotá (1966), Lima (1968) e Bahia Blan- ca (1973) se caracterizaram por uma grande ênfase no conteúdo pro- gramático das diferentes inovações curriculares sempre com uma pre- sença dominante das condições de execução do programa. Em Cara- cas (1975), começa a notar-se uma mudança qualitativa muito pro- funda nas preocupações e discussões. Se bem que se tenha continua- do a dedicar um espaço considerável à discussão de programas, as sessões mais concorridas, com mais discussões e maior presença e re- percussão, foram aquelas dedicadas a discussões de natureza social e mesmo política. Temas como “Matemática é desenvolvimento” ti- veram destaque. No ano seguinte (1976), realiza-se a Terceira Confe- rência Internacional de Educação Matemática — ICME-3 —, em Karlsruhe, Alemanha, e aí também se vê o início de uma discussão profunda sobre algo mais que os conteúdos programáticos e as teo- rias de aprendizagem. A sessão “Objetivos e metas da educação ma- temática. Por que estudar matemática?”, que esteve a nosso cargo, encaminhou as discussões sobre objetivos da educação matemática em direção a reflexões socioculturais e políticas que, a nosso ver, fo- ram ali ouvidas pela primeira vez numa reunião internacional. Ao con- trário da ICME-I (Lyon, 1968) e da ICME-2 (Exeter, 1972), a pre- sença de países do Terceiro Mundo criou um ambiente para um ques- tionamento mais profundo da posição da matemática nos sistemas educacionais. Começou-se a falar de efeitos negativos que podem re- sultar de uma educação matemática mal adaptada a condições socio- culturais distintas, seja nos países do Terceiro Mundo, seja nos paí- ses com grande desenvolvimento industrial. A heresia de se questio- nar os cânones universalmente aceitos da educação matemática pela introdução preponderante de considerações socioculturais é um exem- plo da mudança qualitativa a que nos referimos no início deste ca- pítulo. 12 ETNOMATEMÁTICA Não se pode ignorar que os reflexos do movimento questiona- dor da mística cultural acadêmica de 1968 fizeram-se sentir nos anos 70 e, portanto, tiveram sua influência nas conferências de Caracas e de Karlsruhe. Ea Ademais, o ideal da educação de massa, isto é, educação igual e para todos, independente de classe social e econômica, começou a dominar Os ideais e aspirações políticos dos países a partir da Segun- da Gucrra Mundial, Vinte anos após, os efeitos ilusórios e algumas jvezes negativos dessa política sentem-se em muitos países, o que tam- bém contribui para o clima questionador e consegiientemente a mu- t dança qualitativa a que nos referimos (ver D'Ambrosio, 1986). Duas conferências importantes foram realizadas em 1978 e fi- zeram eco aos congressos que acabamos de mencionar: a conferência sobre “Desenvolvimento da matemática nos países do Terceiro Mun- do”, organizada por Mohamed El-Tom !, em Khartoum, Sudão, em fevereiro de 1978, e a conferência sobre “Maternática e o mundo real”, organizada por M. Niss c B. Booss na Universidade de Roskilde, Di- namarca, em junho de 1978, imediatamente precedendo o Congresso Internacional de Matemática de Helsinki, Finlândia, ? onde teve lu- gar uma sessão sem precedentes na história dos congressos interna- cionais de matemática, denominada *'Matemática e sociedade”. Es- sa foi a primeira e última vez em que se criou espaço, nos congressos internacionais de matemática, para se questionar a própria matemá- tica, em suas características epistemológicas. A Quinta Conferência Interamericana de Educação Matemática, que se realizou em Campi- nas, no ano de 1979, mostra definitivamente uma tendência para o sociocultural, confirmada por uma análise do Quarto Congresso In- ternacional de Educação Matemática, em Berkeley, 1980. * Finalmente, o Quinto Congresso Internacional de Educação Ma- temática, que se realizou em Adelaide, Austrália, em agosto de 1984, mostra uma tendência definitiva sobre preocupações socioculturais nas discussões sobre educação matemática. Questões sobre “Mate- mática é sociedade”, “Matemática para todos” e mesmo a crescente ênfase na “História da matemática e de sua pedagogia”, as discus- sões de metas da educação matemática subordinadas às metas gerais da educação e sobretudo o aparecimento da nova área de etnomate- mática, com forte presença de antropólogos e sociólogos, são evidên- cias da mudança qualitativa que se nota nas tendências da educação. matemática (ver D'Ambrosio, 19854). VALORES NO ENSINO DE MATEMÁTICA 13 Da predominância de discussões programáticas centradas ng conteúdo dos anos 60, característica tipicamente internalista, se ado- tarmos a nomenclatura dos filósofos e historiadores de ciências, pas- samos a uma atitude marcadamente externalista. Essa mudança qua- Hitativa, que é evidente nestes últimos dez anos, leva-nos a alguns ques- tionamentos e a uma discussão de valores com respeito à educação matemática, com implicações curriculares de alta importância. Vamos elaborar alguns pontos de reflexão e focalizar esses pon- tos numa questão básica: Por que se ensina matemática nas escolas com tal universalidade e intensidade? Por universalidade queremos dizer em todos os paises do mun- do e praticamente a mesma matemática. Por intensidade queremos dizer em quase todos os anos de escolaridade e para todos, com um peso muito alto na distribuição de cursos das escolas. Efetivamente, a matemática tem uma situação privilegiada. Poderíamos tentar muitas respostas a essa pergunta básica. Va- mos colocar algumas das respostas que mais tradicionalmente se dão a essa pergunta, mas em forma de questionamento. A ordem em que apresentamos esses questionamentos representa o que temos identifi- cado, através da literatura mais clássica sobre o tema, como a ordem de prioridades tradicionalmente apontadas para justificar o ensino da matemática. É Por sua beleza intrínseca como construção lógica, formal etc.? Certo, a matemática satisfaz tudo isso, mas dificilmente justi- ficar-se-ia uma importância tão grande, maior que a pintura ou a mú- sica, que também são construções lógicas, formais e de uma beleza incrível, E muitas outras coisas belas que não têm espaço nas escolas. 2. Por sua própria universalidade? e Certo, a matemática tem um caráter de grande universalidade, como também a pintura, 0 cinema é inúmeras outras manifestações culturais. Em síntese, isto não é suficiente para justificar sua presen- ça tão marcante nos sistemas escolares. 3. Porque ajuda a pensar com clareza e a raciocinar melhor? Certo, porém o xadrez também tem essas qualidades, é muito atraente e não é parte dos sistemas escolares. O mesmo pode-se dizer 16 ETNOMATEMÁTICA VALORES NO ENSINO DE MATEMÁTICA 17 se continua. Por exemplo, através de organizações curriculares mo- dulares. Eliminando os fatores negativos, sobretudo os três acima des- tacados, poderiamos defender, sem hesitação, a matemática nas es- colas, em todos os níveis, como fator de Progresso social, como fator de liberação indivídual e política, como instrumentador para a vida eparao trabalho. Nessas condições, nossa posição justifica a mate- mática nas escolas pelas razões seguintes: Por ser útil como instrumentador para a vida. . Isso significa desenvolver a capacidade do aluno para manejar situações reais, que se apresentam a cada momento, de maneira dis- tinta, Não se obtém isso com a simples capacidade de fazer contas nem mesmo com a habilidade de solucionar problemas que são apre- sentados aos alunos de maneira adrede preparada. A capacidade de manejar situações novas, reais, pode muito bem ser alcançada me- diante modelagem e formulação de problemas, que infelizmente não estão presentes cm nossos currículos antiquados. Também instrumen- tar para a vida significa desmistificar fenômenos, desarraigar o ““me- do” do sobrenatural. Isso se consegue mediante matemática de fenô- menos, ou seja, integrada com as demais ciências. A instrumentação para a vida depende, numa democracia, de uma preparação para a participação política, para bem votar é para acompanhar os procedi- mentos políticos. Para isso há necessidade de alguma capacidade de analisar e interpretar dados estatísticos, de noções de economia e da resolução de situações de conflitos e de decisão. Assim, não podem faltar, no currículo, estudos de estatística e probabilidade, economia e situações de conflito (Teoria dos Jogos). Por ser útil como instrumentador para o trabalho. Naturalmente, não são os trabalhos de ontem que interessam Ros egressos da escola do amanhã. Creio que um dos maiores males gue a escola pratica é tomar a atitude de que computadores, caicuta- doras e coisas do gênero não são para as escolas dos pobres. Ao con- trário: uma escola de classe alta pode dar-se ao luxo de não possuir um computador. Uma escola de classe pobre necessita expor seus alu- nos a esses equipamentos que estarão presentes em todo o mercado de trabalho do futuro imediato. Se uma criança de classe pobre não vê na escola um computador, como jamais terá oportunidade de manejá-lo em sua casa, estará condenada a aceitar os Piores empre- gas que sc lhe ofereçam. Nem mesmo estará capacitada para traba- lhar como caixa num grande magazine ou num banco. É inacreditá- vel que a educação maternática ignore isso. Ignorar a presença de com- putadores e calculadoras na educação matemática é condenar os es- tudantes a uma subordinação total a subempregos. > Do mesmo modo que vemos a utilidade da matemática nos vá- rios aspectos apontados acima, vemos suas raizes socioculturais co- mo fator de grande importância ao justificar a educação matemática para todos. Por ser parte integrante de nossas raízes culturais. Aqui também há aigo que deve ser analisado com muito cuida- “do. As raizes culturais que compõem a sociedade são as mais varia- das. O que chamamos matemática é uma forma cultural muito dife- rente que tem suas origens num modo de trabalhar quantidades, me- didas, formas e operações, características de um modo de pensar, de raciocinar e de uma lógica localizada num sistema de pensamento que identificamos como 9 pensamento ocidental. Naturalmente, grupos culturais diferentes têm uma maneira diferente de proceder em seus esquemas lógicos. Fatores de natureza lingúística, religiosa, moral e, quem sabe, mesmo genética têm a ver com isso. Naturalmente, ma- nejar quantidades e consegiientemente números, formas e relações geométricas, medidas, classificações, em resumo tudo o que é do do- miínio da matemática elementar, obedece a direções muito diferen- tes, ligadas ao modelo cultural ao qual pertence o aluno. Cada grupo cultural tem suas formas de matematizar. Não há como ignorar isso e não respeitar essas particularidades quando do ingresso da criança “na escola. Nesse momento, todo o passado cultural da criança deve ser respeitado. Isso não só lhe dará confiança em seu próprio conhe- cimento, como também lhe dará uma certa dignidade cultural ao ver suas origens culturais sendo aceitas por seu mestre e desse modo sa- ber que esse respeito se estende também à sua família c à sua cultura. Além do mais, a utilização de conhecimentos que ela e seus famili res manejam lhe dá segurança e ela reconhece que tem valor por si mesma e por suas decisões. É o processo de liberação do indivíduo que está em jogo. Ao falar de matemática associada a formas culturais distintas, chegamos ao conceito de etnomateméática. Etnomatemática implica uma conceituação muito ampla do erro e da matemática. Muito mais do que simplesmente uma associação a etnias, estro se refere a grupos 18 ETNOMATEMÁTICA culturais identificáveis, como por exemplo sociedades nacionais — tribais, grupos sindicais e profissionais, crianças de uma certa faixa etária etc. —, e inclui memória cultural, códigos, símbolos, mitos e até maneiras específicas de raciocinar e inferir. Do mesmo modo, a matemática também é encarada de forma mais ampla que inclui con- tar, medir, fazer contas, classificar, ordenar, inferir e modelar. À et- nomatemática se situa numa área de transição entre a antropologia cultural c a matemática que chamamos academicamente institucio- nalizada, e seu estudo abre caminho ao que poderiamos chamar de uma matemática antropológica. A partir daí, os estudos da História da matemática e da história social é política da matemática ganham uma nova e mais ampla dimensão, que deve ser incorporada aos sis- temas escolares. Isso naturalmente conduz a estudos sobre a nature- za da matemática e de epistemologias alternativas, c mesmo a estu- dos sobre a teoria matemática do conhecimento como parte integrante da educação matemática. A especificidade do conhecimento matemá- tico deve, de modo muito claro, ser diferenciada nos sistemas educa- cionais. Naturalmente, às duas razões que discutimos acima, a utilitária ea cultural, de natureza externalista, se acrescentam outras justífica- tivas para a manutenção da matemática nas escolas. Porque ajuda a pensar com clareza e a raciocinar melhor. Não nas esqueçamos, porém, de que pouco contribuem para is- so a maivria dos temas que constituem o que acima chamamos curri- culo obsoleto. Entretanto, devem-se introduzir jogos matemáticos, bem como questões sobre séries numéricas, números primos e, so- bretudo, geometria dedutiva. Os teoremas têm, hoje em dia, pouco valor como resultados, mas mantêm seu valor como um modelo de desenvolvimento lógico-formal. O mancjo de hipóteses e resultados prévios para se alcançar novos resultados é muito importante para o desenvolvimento do raciocínio. Por sua própria universalidade, Porém isso somente se consegue atingir, sem distorções do tipo prepotência e preconceito cultural, através de uma história compara- da das mutemáticas, associada a estudos de antropologia cultural, É o que chamamos de matemática antropológica. Também o exame da universalidade das matemáticas está associado a um exame crítico da própria institucionalização da matemática como ramo de conhecimen- to. Ísso se consegue compreender através de estudos de história e tam- VALORES NO ENSINO DE MATEMÁTICA (9 bém a partir de estudos de sociologia da matemática, incluindo a “*so- ciedade” dos matemáticos, isto é, uma análise do sistema de publica- ções, títulos, academias, institutos e congressos, o que significa dizer “ser um matemático” e ser reconhecido universalmente como tal, Is- so explica, em grande parte, a própria natureza do conhecimento ma- temático e a sua universalidade. Finalmente, não sc exclui a justificativa de matemática nos sis- temas educacionais por seu valor estético, isto é, matemática deve ser parte da educação geral. Por sua beleza intrínseca como construção lógica, formal cte. Não nos esqueçamos de que beleza é para ser apreciada e goza- da e não ensinada e aprendida. O ensino de matemática, por seu va- lor estético, é algo que será absorvido pelos alunos de modos muito diferentes, em circunstâncias também diferentes e muitas vezes ines- peradas. É uma beleza que resulta da apreciação, sensibilidade e, por conseguinte, de estados emocionais diversos. É o resultado de ativi- dades descontraídas, de lazer, tais como a apreciação da natureza, de objetos de arte etc. Pode-se aprimorar essa apreciação através de estudos de disciplinas como geometria do sagrado, astronomia e arit- mética e geometria místicas, talvez associados ou com referência a estudos de história da arte e de religião. Assim, encontramos resposta para a pergunta básica -— “Por que se ensina matemática nas escolas com tal universalidade e inten- sidade?” — numa multiplicidade de razões, associadas a uma quina de valores: 1. Utilitário 2. Culivral 3. Formativo (do raciocínio) 4. Sociológico (pela universalidade) 5. Estético Suponhamos que haja uma implicação da eleição dos valores na definição de currículo. Ao pensar no currículo como uma estraté- gia da ação pedagógica, consideramos solidariamente os objetivos, os conteúdos e os métodos como coordenadas de um ponto no espa- ço. Assim, o curriculo É conceituado como um ponto no espaço eu- clidiano tridimensional. 3º ETNOMATEMÁTICA uma nova educação matemática, sem as obsolescências que a carac- terizam hoje em dia. É em busca desse futuro que dirigimos nossa atenção, e nossa proposta curricular é parte dessa preocupação. Referências bibliográficas ! Developing mathematics in the we d ortd countries. Mathematics Studie Holland Pub. Co, 1979. n. 33. cuetEs dns, Astecdam, CI, Booss, B. & Niss, Mogens, eds, Interdiscipli : , B. & Niss, eus, iplinory Systems of Ra º Birckâuser Verlag, 1979. n. 68. á 7 Resevod, Basa, CH. STEEN, LA. de ALBERS, D. J., cds, Teaching t i , LA, . D. J., cds. feuchers, teach - qo nn dA 18 teuchers, teaching students. Bos 4 ; | CE amaste, Teresa. The social psychology of ereativity, New York, Springer Ver- ag, 1983. : o * CF. Umnsk, Arnaud-Aaron. La i matique: Voei fi Jens, . La perversion marbemutique: Voeit dt p. q nara, Editions du Rocher, 1985. f Pot pormado Mo 2 Uma proposta alternativa Neste capítulo fazemos uma proposta de monitoração do e no sistema escolar, que possibilitaria a eliminação total de exames, no- “tas e outros instrumentos atualmente essenciais para avaliação. Se considerarmos o sistema educacional como um todo, a ma- temática ocupa um lugar de destaque. *“Ler, escrever e contar” cons- titui a espinha dorsal de um sistema que visa fornecer oportunidades iguais para todos, c, ao mesmo tempo, preparar o quadro para o avan- ço e a melhoria do aspecto socioeconômico e político da sociedade. Ler, escrever c contar dominou o cenário escolar durante muitas dé- mem cadas. Isso deve continuar? O aparecimento dos computadores irá certamente alterar o ce- mário, prevendo-se, para a década de 90, um papel predominante do equipamento de processamento de informações. Embora influencian- 'doo ler, escrever e contar, o uso dos computadores vai afetar direta- * mente a educação matemática em sua própria natureza. Na verdade, jele traz uma nova visão dentro da matemática, Ele afetará a ação pe- - dagógica. O currículo, visto como a estratégia para a ação pedagógi- ca, exigirá novos componentes. Embora isso seja relevante para nos- sa discussão, passaremos ao que está diretamente relacionado com ETNOMATEMÁTICA UMA PROPOSTA ALTERNATIVA 25 nosso propósito, ou seja, identificar alguns indicadores de quanto a matemática está contribuindo para os objetivos sociais. Como ressaltamos no último parágrafo de D'Ambrosio, 1976, a matemática aparece como uma estratégia para atingir objetivos so- ciais a longo alcance, imersos nos conceitos de progresso e desenvol- vimento, porém com alguns valores permanentes em qualquer mode- lo de política global. O modelo que adotamos é dominado pelo espi- rito democrático na busca de um cstado ce bem-estar 506 : Uma for- sa crescente, igualmente dominante, é o espírito ecológico que Está. intimamente relacionado com considerações sobre a superioridade de nossa espécie e o que é de absoluta relevância para nós, “a internali- zação do pensamento holístico na ciência e na cultura”, como cita Richard A. Falk. ! isso requer novos modelos de organização social, política e econômica. E nos lembra a “Declaração de Veneza”, quan- do foi dito que “O desafio de nosso tempo — o risco da destruição de nossa espécie, o impacto do processamento de dados, as implica- ções da genética etc. — lança uma nova luz no que diz respeito às Tesponsabilidades sociais da comunidade científica, tanto na inicia- ção quanto na aplicação da pesquisa”, * Nossas responsabilidades, como educadores numa democracia, vão além de reproduzir o passado e os modelos atuais. Estamos preo- cupados em construir um futuro que poderá ser de diferentes formas, “ mas deverá ser melhor que o presente. Esse é o nosso objetivo. Per- gunta: O que tem a matemática a ver com isso? Nossa resposta é, sem dúvida: Tudo. A matemática tem raízes profundas em nossos sistemas cultu- rais e como tal possui muitos valores, conforme discutimos no capi- tuto anterior. Embora não tenha sido suficientemente estudada, a aná- lise de componentes ideológicos no pensamento matemático revela uma forte ligação com um certo modelo socioeconômico. Isso se equi- para com os componentes ideológicos da educação em geral, que tem sido enfatizada por M. Apple, * H. Giroux, “e os proponentes da f teoria crítica. Juntamente com algumas práticas eminentemente con- j servadoras, como a medicina — ao lidar com normalidade — e o di reito — lutando pela hierarquia de poder —, a matemática se po: ) ciona como uma promotora de um certo modelo de poder através do “conhecimento. Podemos facilmente parafrasear Duncan Kennedy É ; dizendo que os educadores de matemática ensinam os alunos a acre- i ditarem que as pessoas e instituições se organizam em hierarquias de + poder de acordo com sua capacidade matemática. A superioridade de quem atingiu um nível mais alto em matemática é reconhecida por todos, sendo a habilidade matemática uma marca do gênio. A abor- dagem crítica à cognição, à estrutura social e à independência do Es- tado, isto é, à organização geral do mundo, nos coloca numa posição de necessidade urgente de examinar o papel da matemática no nosso sistema educacional, partindo de uma perspectiva nova. Problemas como decadência do meio ambiente, violação de privacidade, falta de segurança, fome e doenças, ameaça de guerra nuclear, são idéias novas para O exercício de pensar sobre q futuro. Sem dúvida, o futuro está impregnado de ciência e tecnologia — para 6 bem ou para o mal. A matemática está na raiz da ciência e da tecnologia. Há alguns anos, a revista The Economist publicou um longo artigo intitulado *“Não podemos ser cidadãos do século XX sem matemática”, A responsabilidade dos educadores de matemáti- | ca com relação ao futuro é central e precisamos entender nosso papel * nessa rede complexa de responsabilidades divididas. Assim € como ; vemos a estrutura certa para discutir um sistema para propor uma «matemática mais salutar € progressista nas escolas. Naturalmente, isso implica sistemas que avaliem o rendimento do ensino ou, de maneira mais ágil, sistemas que monitorem 0 de- sempenho da escola como instituição. É fundamental, portanto, criar-se um sistema de monitoração para o rendimento escolar. Não podemos deixar de refletir sobre co- mo as autoridades responsáveis pelo sistema ou os legisladores usa- rão a informação coletada pelo sistema de monitoração, Há uma ne- cessidade evidente de um esforço educacional por parte das autorida- des. Como diz Israel Scheffer, * precisamos propor um modelo para os legisladores ao invés de lhes fornecer apenas dados. A metáfora aqui implícita está na necessidade de um entendimento dos processos de aprendizado e do conhecimento da posição da matemática na vida cotidiana, com sua complexidade, atividades, experiências, propos- tas, necessidades, tensões e criatividade por parte dos legisladores. Isso exige uma compreensão mais abrangente da natureza de nossa matéria em si e de sua posição em toda a amplitude do conhecimento humano. Diz o próprio Scheffer que “os responsáveis pelo sistema precisam ser poliglotas para aprender a falar os vários dialetos das matérias e aplicar essa linguagem na compreensão dos problemas”. 7 Quanto isso se aplica para os responsáveis pela educação matemática? Diversos aspectos devem ser considerados no sistema de moni- toração. O fundamental refere-se ao público. Falemos da responsa- 2 ETNOMATEMÁTICA UMA PROPOSTA ALTERNATIVA 29 Vamos nos concentrar nas questões principais que queremos apontar no sistema de monitoração. As questões devem nos propor- cionar indicadores de quão saudável estã o sistema educacional. De- vem, naturalmente, ser agrupadas de acordo com as razões pelas quais se ensina matemática no sistema escolar. . Retomando o discutido no capítulo anterior, dentre os valores identificados através da história da educação, salientamas: 1. Utilitário 2, Cultural 3. Formativo (da raciocinio) 4. Sociológico (pela universalidade) 5. Estético . Não hesitamos em dizer que essas cinco razões são igualmente importantes, porém tem havido um crescente desequilíbrio nos últi. mos cem anos favorecendo a primeira delas, isto é, as utilitárias. Isso é um erro. O caráter errôneo de uma educação matemática orientada fortemente ao utilitarismo é reforçado pelo aparecimento das caleu- ladoras e dos computadores. A educação matemática tradicional é na verdade, obsoleta e ineficiente. Por outro lado, o utilitarismo não atende à nova ênfase sobre as aplicações aos problemas reais do mun- do. Uma abordagem verdadeira deve tomar uma direção diferente. Não hã autenticidade nas chamadas “resoluções de problemas” re- forçadas no começo dessa década. Até mesmo num conceito mais abrangente como, por exemplo, aquele que nos dá a “Agenda for Ac- tion” (NCTM 1980), a ênfase é dada sobre problemas apresentados de modo formulado, já codificados. Situações reais são, na verdade, situações simuladas e, embora haja o desejo de trabalhar com situa ções “realmente reais”, essas não conseguem entrar nas salas de au- la, a menos que se mude de atitude com relação à matemática Mais que tudo, isso é o resultado de uma barreira epistemológi- ca. À dinâmica curricular estã presente na sala de aula, mas o curri- culo de matemática é decidido de forma bastante conservadora, in- cluindo tópicos que atingiram sua forma final, assim dizendo teorias que atingiram o estado de “normalidade”, na terminologia Kuhnian, Isso é muito bem descrito por Philip Kitcher: “Os especialistas demonstram sua capacidade produzindo soluções verificáveis para 05 problemas que nos deixam frustrados, produzem argumentos plausí- veis contra nossas propostas (argumentos cujos planos estão bem dis- farçados para serem desmascarados) e oferecem explicações psicoló- gicas muito convincentes de nossos erros". M Tudo isso reflete a po- sição de Kitcher contra o apriorismo matemático. Sabemos que a epistemologia básica, corrente e aceita, na prá- tica da educação matemática é apriorística. A abordagem bachelar- diana, que timidamente contesta isso, tem sido ignorada na educa- ção, particularmente na educação matemática. Quando Bachelard diz que “Q estado lógico é um estado simples e até mesmo simplista”, 15 e que esse estado não pode servir de prova no caso de uma realidade psicológica, ele abre um novo caminho para uma abordagem centra- da na complexidade psicoemocional do aluno, ao invés de técnicas transmitidas pelo professor. Na verdade, cle volta a William James e se refere a ele. Lamentavelmente, James se tornou marginalizado na educação matemática, o mesmo acontecendo com a epistemolo- gia de Bachelard. As tendências dominantes na filosofia da matemática tendem é a encobrir o fato de que a matemática está intimamente ligada à rea- ? lidade e à percepção individual dela. A realidade informa o indivi- duo através de um mecanismo que insistimos em chamar de sensual ao invés de sensorial, !é precisamente para reforçar a importância do componente psicoemocional. A questão-chave na resolução de pro- blemas que surgem quando nos perguntamos “Quanto os alunos aprenderam a respeito de resolução de problemas complexos” pode ser uma questão enganosa e para monitorá-la precisamos distorcer a atitude geral da classe. Problemas complexos estão relacionados com um novo estado de consciência, ao qual William James se refere di- zendo que o estado de consciência no qual reconhecemos um objeto é novo comparado ao estado de consciência no qual distinguimos o objeto. Isso reflete o que chamamos de impacto sensual da realidade sobre o indivíduo. Lamentavelmente, a educação matemática teve a tendência de suprimir o emocional da percepção individual da rea- lidade. A abordagem alternativa à resolução de problemas requer uma dedicação efetiva das crianças em práticas globais. A avaliação e o conceito de exame adquirem uma nova dimensão. A resolução de pro- blemas é na verdade vista de um modo mais amplo, que combina pro- cessos modelados e programas de treinamento com criatividade. A avaliação se torna mais qualitativa do que quantitativa, mais uma pes- quisa afetiva orientada do que uma pesquisa orientada de atuação. O sistema de monitoração deve considerar alguns indicadores novos. é Ma ETNOMATEMÁTICA UMA PROPOSTA ALTERNATIVA 31 É fundamental saber quais os indicadores que devem ser usa- dos num sistema de avaliação orientada, afetivo é qualitativo, quan- do passamos da resolução tradicional de problemas para a aborda- gem de modelos. Uma proposta imaginativa está implicita na análise de comportamento de detetive, como por exemplo foi feito por Um- berto Eca e Thomas A. Sebeok "º quando etes acrescentam o racioci- nio abditivo às considerações gerais de processos de raciocinio. En- quanto os debates sobre a resolução de problemas se concentram so- bre modos “indutivo-dedutivos” de Pensamento, a abdução, que pode ser conceituada como uma conjectura sobre a realidade e que precisa ser avaliada através de testes, parece ser o componente básico para se trabalhar com uma situação real. De acordo com Charles S. Pier- ce, a abdução aparece, juntamente com indução e dedução, como um modo especial de pensar no processo cognitivo. Embora muita coisa nova esteja envolvida na compreensão da mente desde William Ja- mes e Charles S, Pierce, suas abordagens ao raciocínio parecem se adaptar à nossa compreensão dos processos da mente e do corpo. Muito importante para uma educação matemática renovada é a tentativa de uma nova visão sociobiológica do fenômeno cultural, proposta por Charles I. Lumsden e Edward O. Wilson, basgados em entender o fenômeno da cultura através de uma segiiência de compo- nentes que eles chamam de aprendizado, imitação e reificação. Tu- do, exceto reificação, aparece em diversas espécies. A reificação é apre- sentada como “a atividade mental na qual se dã uma forma concre- ta, simplificada e rotulada com palavras ou outros simbolos, a fenô- menos vagamente perceptíveis e relativamente intangíveis tais como arranjos complexos de objetos ou atividades”, "8 e os autores à iden- tificam como característica unicamente encontrada nos seres humanos. Resumindo, vemos que Lumsden e Wilson, e, muito antes de. les, Pierce, vêem processos de codificação adquiridos através de me- canismos psicológicos que vão contra à estrutura linear que caracte- riza e fundamenta a prática da educação matemática. Os códigos são adquiridos através de um processo Teificativo, e guardados para uso posterior em diferentes situações. Entre esses códigos está a matemá- tica. Essa posição sugere que a melhor maneira de se ensinar mate- ambiente otidé o desafiomiata- mática é mergulhar as crianças ni mático esteja naturalmente presente. O trabalho de Teresa Amabile aponta para cia mesmalinha, béin'como a estrutura psicopedagógi- ca implicita na proposta LOGO. "º Isso não difere da mensagem da- í da em A edtucação de Henry Adams E que está na raiz do pensa- mento pedagógico de John Dewey. = Tentando trazer essas considerações à prática da matemática nas escolas, devemos nos voltar para situações “realmente reais”. Proje- tos de natureza global, tais como a construção de uma cabana ouo mapeamento de uma cidade ou a avaliação de consumo de água, for- necem informações que exigirão o manejar problemas e modelos. A resolução de problemas ocorre como consegiiência, daí adquire sig- nificado e sua solução faz sentido. A metodologia que pode se basear no projeto FoxFire *! leva em consideração o própr io ambiente da criança e começa com o que podemos chamar “descobrimento do fa- to”, no sentido de coleta de informações sobre a situação, e daí pas- sando a procedimentos modelados e finalmente atingindo o que cha- mamos de realização, isto é, a transformação dos resultados em ação ou objetos. Isso é baseado no ciclo ... realidade — indivíduo — ação — realidade ..., discutido em D'Ambrosio, 1985b. Esso é, sem dúvida, uma abordagem aberta à educação mate- mática, com atividades orientadas, motivadas c induzidas a partir do meio, e, consegiientemente, refletindo conhecimentos anteriores. Is- so nos leva ao que chamamos de etnomatemárica e que restabelece a matemática como uma prática natural e espontânea. Embora a pes- quisa sobre a influência de idéias já trazidas de antes da escola na abordagem experimental na educação científica, principalmente pela escola de Piaget, ? seja fregiente na educação matemática, Os esfor- ços para identificar as práticas ernomatemáticas e reconhecê-las co- mo uma basc de grande valor na educação são relativamente recen- tes, e ainda não foi analisado todo o potencial de um modelo peda gógico em matemática baseado na transição de práticas anteriores à escolaridade ou às práticas de natureza acadêmica. . Passemos agora a uma série de considerações que se referem à diferença na exposição da matemática a grupos de diferentes origens raciais, classes sociais, sexo, e de como essas diferenças podem se re fletir no nível de atuação, atitudes e desempenho no uso da matemá- tica. Nas duas últimas décadas tem se dado mais ênfase a esses pro- / blemas, sobretudo nos Estados Unidos. Juntaram-se dados sobre o , baixo rendimento em matemática de negros, nativos dios), mulhe- res e outros grupos. Algumas das explicações, ligadas à incapacidade | natural da raça ou de sexo, foram totalmente rejeitadas. Outras ex- | plicações apontam para estruturas sociais intencionalmente objetivan- do privar mulheres e certos grupos culturais e étnicos de uma educa- 31 ETNOMATEMATICA Defendendo o reconhecimento do enfoque etnomatemático co- mo alternativa ao currículo tradicional, estamos implicitamente ques- tionando a matemática como um sistema de codificação que permite descrever, trabalhar, entender e controlar a realidade. Isso está liga- do a um conceito amplo do que é conhecimento em face à realidade, como veremos nos capítulos seguintes. Esses códigos passam por um processo inicial, derivado de família e grupo de pessoas de mesmo nivel c cuja institucionalização é imprecisa e até agora não é clara- mente entendida. Esses estudos têm pertencido ao domínio dos an- tropólogas e recentemente entraram na consideração de educadores. Até agora tem havido certa resistência de se analisar esses assuntos no sistema escolar. Essas cinomatemáticas — há inúmeras — estão ligadas ao que Basil Bernstein 2º chama, em se tratando de lingua- gem, de “código restrito” em contraste com q “código elaborado”. Ou com o que Ivan llich 2º chama de “linguagem vernacular”* ou “universo vernacular”, Algumas características da ernomatemática devem ser enfa- lizadas: 1. E limitada em técnicas, uma vez que se bascia em fontes restritas. Por outro lado, seu companente criativo é alto, uma vez que é livre de regras formais, obedecendo critérios não relacionadas com a si- tuação. E particularística, uma vez que é limitada no contexto, embora seja mais ampla que o conhecimento ad hoc aposto ao caráter universal da matemática que visa ser livre de contexto. . Opera através de metátoras e sistemas de simbolos que são relacio- nados psicoemocionatmente, embora a matemática opere com sim- bolas que são condensados de forma racional. » o Naturalmente, isso leva a uma hierarquia de transmissão de co- nhecimento e ao problema fundamental de legitimação do conheci- mento. Enguanto a etnomatemática é limitada de valor, ao basear sua validade sobre a forma como uma coisa funciona em determina- da situação ou como isso agrada e se adapta a uma visão em particu- lar do mundo, a matemática baseia sua autoridade sobre uma hierar- quia sequencial, começando com a autoridade do professor, a auto- ridade da matéria impressa, e atingindo a autoridade do pensamento racional, Esse objetivo racional deixa em seu caminho, em sua for- mação, valores que estão enraizados np contexto cultural para o qual a etnomatemática é uma codificação natural. Ver a educação mate- mática de uma forma que personifique o valor e a cultura da criança, UMA PROPOSTA ALTERNATIVA isto é, sua ctnomatemática, parece ser o caminho desejado para uma versão mais humana do racionalismo. A passagem da etnomatemática para a matemática pode ser vista como a passagem da linguagem oral para a escrita. A linguagem cs- crita (Jer e escrever) repousa sobre o conhecimento da expressão oral que a criança já possui, e a introdução da linguagem escrita não deve suprimir a oral. Entender e respeitar a prática da etrnomatemática abre um grande potencial para o senso de questionamento, reconhecimen- to de parâmetros específicos e sentimento do equilíbrio global da na- tureza. As práticas etnomatemáticas ainda estão desvalorizadas no sistema escolar, em todos os níveis de escolaridade e até mesmo na vida profissional, e algumas vezes levam à humilhação e são, na maio- ria dos casos, consideradas irrelevantes para o conhecimento mate- mático. Dissemos em todos os níveis de escolaridade e até mesmo na vida profissional. Vamos esclarecer isso, estendendo nosso conceito de etnomatemática a níveis mais elevados de conhecimento como a física, a engenharia, a biologia etc. A função delta de Paul Dirac po- deria ser identificada como etnomatemática, assim como os cálculos feitos pela maioria dos engenheiros, físicos e biólogos poderiam ser chamados “ernocálculos””. Sylvanus Thompson, quando escreveu seu Calculus mede easy, em 1910, estava, na realidade, publicando etno- matemática. Os exemplos podem ser muitos nesse nível, Infelizmen- te, no nivel “criança”, essa forma de conhecimento não tem muita farça para ser notada a pento de scr publicada. Os sistemas escola- res, que estão essencialmente voltados para o currículo e para a for- ma de alcançá-lo, eliminam a etnomatemática, que nem mesmo che- ga a ser reconhecida. Vamos, para finalizar, nos referir à dificuldade de construir um sistema de monitoração produtivo quanto à educação matemática nos seus valores culturais, estéticos e formativos, e para o qual o valor utilitário é enfocado como a capacidade de trabalhar em situações “realmente reais”. Os aspectos culturais, estéticos e formativos da evolução do alu- no quase não podem ser avaliados. Uma visão respeitosa e digna do próprio ser (um problema principal no aspecto cultural) não pode ser medida diretamente, e os valores estéticos quase não são pesados. O mesmo acontece com os valores formativos; provavelmente, os tni- cas parâmetros possíveis de serem introduzidos no sistema de moni- toração serão relacionados com atitudes emocionais da classe. 36 ETNOMATEMÁTICA Com relação aos valores utilitários, conseguidos melhor atra- vés de projetos globais, os esquemas avaliando participação, envol- vimento e relatórios devem ser destacados, Tudo o que se enfatizou como possíveis componentes do siste- ma de monitoração parte de práticas de avaliação atuais e reflete nossa inclinação à supressão de exames, testes e práticas semelhantes no sis- tema escolar. . . Referências bibliográficas * Solving the puzzles Of global reform. Adternatives, H (1) : 45-81, jan, 1986. Ver esp. p. 68. 2 Symposium on final sterement, Unesco, 1986. 4 Jdeology end curriculum. London, Routledpe & Kegan Paul, 1979, * Jdeology, culture and thte process of schooling. Philadelphia, Temple University Press, 1981. à Legal education end the reproduction of hierarchy. Cambridge, AFAR, 1983. * On the education of policy makers. Harvard Educational Review, 54 (3): 52-65, May 1984. ? ibidem, p. 154. 5 The improvement uf science teaching. Daedatus, 112 (3) : 167-87, Spring 1983. * The social psychology of creeiivity, cit. “LA history of education in entiquity. Madison, University of Wisconsin Press, 1982. B- 73. (Orig. em francês, 1948; trad. de George Lamb, 1956.) Apre, Mortiner 1. The Paídeia Program: an educational syllabus. New York, Mac. Millan Pub, Co., 1984, p. 84. “ From catechism to comunication; language, leaming and mathematics, plenary address o tlte australian ass, of math teachers conference. Erisbane, Jan. 1986. Mimcographed. VA curriculum development and curriculum research; the difficulty of curricular te- form in school mathematics. 1984. Mimeographed. The nature of mathematical knowledge. New York, Oxford University Press, 1984. posa. TE Essaí sur la connaissance approchée, Paris, 1. Vein, 1981. p. 27. ** D'AMBRoSiO, Ubiratan. Unity renlity and action: à holistic approach to amathema- tics education. In; STEEM, É, & ALDEKS, D. J., eds. Teaching teachers, teaching st. denis, cit. É The sign of three, Bloomingron, Indiana University Press, 1983. “ Gemes, mind end culture; the evolutionary process. Cambridge, Mass., Harvard Uni- versity Press, 1981, p. 381. DCF. PaPERT, Seymour. Mindstorms, New York, Basic Books, 1980. 2" Apams, Henry. The education 0f Henry Adams. New York, The Library of Ame- rica, 1983, p. 715-1192. (Publicação original, 1905.) f UMA PROPOSTA ALTERNATIVA 5 2 Cr. Wiaainton, Eliot, ed. Foxfire 6. Garden City, NY. Ancher Press/Doubleday, 1980. 22 Cf, CAUSINILLE-MARMECHE, E.; MEHEUT, M.: SERE, M. G.; Weit-BaRAIS, À. The influenee of a priori ideas on the experimental approach. Science Education, 69 (2): 20111, 1985. ese 2 The nature of mathematical knowledge, cit. . 2 Sex differences in mathematical reasoning ability: more facts. Science, 222 : 1029-31, 2 Dec. 1983. 25 Class, codes and control, London, Routicdge & Kegan Paul, 1971. v. L. 2 Gender. New York, Pantheon Books, 1982.