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28 Sexo, drogas, desastres e a extinção dos dinossauros cia é um modo produ- As con Na sua definição mais fundamental, a ciê tivo de investigação, não uma lista de conclusões seduio clusões são a conseguência, não a essência A minha maior infelicidade com a maioria das apresentações popu- lares de ciência diz respeito ao seu fracasso em separar proposições fasci- nantes dos métodos que os cientistas usam para estabelecer os fatos da natureza. Os jornalistas e o público vivem de decla: ações polêmicas e im- pressionantes. Mas a ciência, basicamente, é um modo de saber — nas palavras perspicazes de P, B. Medawar, “'a arte do solúvel”. Se o baia lhão crescente de escritores populares de ciência se concentrasse em como | os cientistas desenvolvem e defendem essas fascinantes proposições, eles dariam a sua maior contribuição possível para a compreensão do público. 4 Considere-se três idéias, propostas com perfeita seriedade para ex- plicar o mais instigante de todos os enigmas — a extinção dos dinos- sauros. Como essas três idéias invocam os temas de fascínio funda- mental da nossa cultura — sexo, drogas e violência — elas com certc- za se encontram na categoria das propostas fascinantes. Quero demons- trar por que duas delas se classificam como especulação tola, ao passo que a outra representa a ciência no que ela tem de mais grandioso e útil A ciência trabalha com propostas averiguáveis. Se, após muita compilação e escrutínio de dados, novas informações continuam a afir- mar uma hipótese, podemos aceitá-la provisoriamente e ganhar con- fiança à medida que se acumulam indícios adicionais. Nunca podemos ter certeza completa de que uma hipótese é correta, embora sejamos capazes de demonstrar com confiança que ela está errada. As melho- res hipóteses científicas também são generosas e expansivas: elas suge- rem ampliações e implicações que esclarecem assuntos relacionados e até mesmo outros bem distantes. Considere-se simplesmente como a idéia de evolução influenciou virtualmente todos os campos intelectuais. A especulação inútil, por outro lado, é restritiva. Ela não gera ne nhuma hipótese averiguável e não oferece nenhum modo de se obter indícios potenciais de refutação. Note, por favor, que não estou falan- do de verdade ou falsidade. A especulação pode muito bem ser verda- deira; contudo, se não oferece, em princípio, nenhum material para 387 SS eee O SORRISO DO FLAMENGO confirmação ou rejeição, não podemos fazer nada com ela. Ela, sim nlesmente, tem de permanecer para sempre como uma idéia curiosa. A especulação inútil volta-se para si mesma e não leva a lugar algum; a ciência boa, que contém tanto as sementes da sua refutação poten- cial quanto implicações para conhecimentos adicionais diferentes e ave- se expande. Mas, basta de ação. Passemos para os di nossauros € as três propostas a respeito da sua extinção. 1. Sexo: Os testículos funcionam apenas numa faixa muito estrei- ta de temperatura (os dos mamiferos pendem externamente num saco escrotal porque as temperaturas internas do corpo são muito altas pa- ra que cles funcionem adequadamente). Um aumento da temperatura em todo o mundo no final do período cretáceo fez com que es testícu- los dos dinossauros parassem de funcionar, o que levou esses animais à extinção através da esterilização dos machos. 2. Drogas: As angiospermas (plantas com flores) desenvolveram- se de início por volta do final do reinado dos dinossauros. Muitas des- sas plantas contêm agentes psicoativos, evitados hoje pelos mamíferos em virtude do seu sabor amargo. Os dinossauros não tinham nem co mo sentir o amargor, nem tígados eficientes o bastante para eliminar a toxicidade das substâncias. Eles morreram de overdoses maciças. 3. Desastres: Um grande cometa ou asteróide chocou-se com a Ter: 4 cerca de 65 milhões de anos, o que provocou uma nuvem de poeira no céu e bloqueou a luz solar; isso impediu por completo a fo- tossintese, e as temperaturas do mundo se reduziram tão drasticamen- te que os dinossauros e legiões de outras criaturas acabaram sendo ex- tintas. Antes de analisar essas três provocantes declarações, devemos estabe- lecer uma regra fundamental muitas vezes violada nas propostas sobre a extinção dos dinossauros. Não existe o problema específico da extin- ção dos dinossauros. Muitas vezes, divorciamos eventos específicos dos seus contextos e sistemas mais amplos de causa e efeito. O fato funda- mental da extinção dos dinossauros é a sua sincronia com o desapare- cimento de tantos outros grupos ao longo de uma grande faixa de ha- bitats, do terrestre ao marinho. A história da vida tem sido pontuada por breves episódios de ex tinção em massa. Uma análise recente dos paleontólogos Jack Sepkoski c Dave Raup, da Universidade de Chicago, baseada na elhor e mais exaustiva tabulação de dados jamais reunida, mostra claramente que cinco episódios de extinção em massa colocam-se bem acima das ex- 388 EXTINÇÃO E CONTINUIDADE tinções “de fundo” dos tempos normais (quando consideramos todas as extinções em massa, grandes c pequenas, elas parecem localizar-se num ciclo regular de 26 milhões de anos — ver ensaio 30). A catástro- fe do cretáceo, que ocorreu há 65 milhões de anos e separa a era meso- zóica da cenozóica na nossa escala de tempo geológi tre as cinco. Quase todo o plâncton marinho teristuras unicelulares flu- tuantes) morreu de repente pelos padrões geológicas; dentre os inver- tebrados marinhos, pereceram quase 15% de todas as famílias, inclu- sive muitos grupos anteriormente dominantes, sobretudo as amonitas (parentes das lulas, com conchas espiraladas). Sobre a terra, os dinos sauros desapareceram depois de mais de cem milhões de anos de do- minio incontestado. Nesse contexto, as especulações limitadas apenas aos dinossauros ignoram o fenômeno maior. Precisamos de uma exp! o coordena- da para um sistema de eventos que tem a extinção dos dinossauros co- mo um dos seus componentes. Assim, faz pouco sentido, embora isso possa alimentar o nosso desejo de encarar os mamiferos como herdei- ros inevitáveis da Terra, conjecturar que os dinossauros morreram por- que os pequenos mamíferos comiam os seus ovos (uma favorita eterna dentre as especulações não averiguáveis). Parece por demais imprová- vel que algum desastre peculiar aos dinossauros tenha ocorrido a essas imponentes feras — e que a catástrofe tenha ocorrido justamente quan- do uma das cinco grandes mortandades da história envolvia a Terra por motivos completamente diversos. A teoria testicular, uma velha favorita da década de 1940, teve origem num estudo interessante e perfeitamente respeitável sobre as tolerâncias de temperatura no aligátor americano, publicado no sóbrio Bulletin of the American Museum of Natural History, em 1946, por três especialistas em répteis vivos e fósseis — E. H. Colbert, o meu primeiro professor de paleontologia, R. B. Cowles e C. M. Bogert. A primeira sentença do seu sumário revela uma proposta que vai além dos aligatores: “Este relatório descreve uma tentativa de inferir as reações de répteis extintos, especialmente os dinossauros, a altas tem- peraturas, fundamentadas nas reações observadas no aligátor moder- no.” Por meio de termometria retal, eles estudaram as temperaturas corporais de aligatores sob mudanças variáveis de aquecimento e res- friamento. (Ora, encare a verdade, você não iria querer enfiar um ter mômetro debaixo da língua de um aligátor.) As previsões sob averi- guação remontam a uma teoria formulada primeiramente por Galileu na década de 1630 — a gradação desigual de superfícies e volumes. À medida que um animal, ou qualquer objeto, cresce (contanto que co, de: -se en- 389 O SORRISO DO FLAMINGO A força de tal colisão seria imensa, bem maior que a megatona- gem de todas as armas nucleares do mundo (ver ensaio 29). Ao tenta. rem reconstruir um roteiro capaz de explicar a morte simultânea dos dinossauros sobre a terra e de tantas criaturas no mar, os Alvarez pro- puseram a hipótese de que uma nuvem gigantesca de poeira, gerada por partículas arremessadas para o alto com o impacto, teria escur do a Terra de modo a impossibilitar a fotossíntese e a fazer com que as temperaturas caíssem precipitadamente. O plâncton oceânico uni- celular fotossintético, com ciclos vitais medidos em semanas, perece- ria de imediato, mas as plantas terrestres poderiam sobreviver através da dormência das sementes (as plantas terrestres não foram muito afe. tadas rela extinção do cretáceo, e qualquer teoria adequada deve ex- plicar o curioso padrão de sobrevivência diferencial). Os dinossauros morreriam de fome e frio; os mamiferos, pequenos, de sangue quente, com necessidades alimentares mais modestas c uma melhor regulagem de temperatura corporal, mal e mal escapariam. “Que os miseráveis congelem no escuro”, como proclamavam, vários anos atrás, os ade sivos dos nossos vizinhos chauvinistas dos Estados do sul, durante a crise de óleo no inverno dos Estados do nordeste. Todas as três teorias, a disfunção testicular, a ingestão excessiva de agentes psicoativos, e o impacto de um asteróide, conseguem arre- batar a nossa atenção. Como fenomenologia pura, elas estão empata- das na parada de fascínio primordial. No entanto, uma representa ciên- cia expansiva, as outras, especulação restritiva e inaveriguável. O cri- o apropriado encontra-se nos indícios e na metodologia: devemos investigar o que há por trás do fascínio superficial de proposições par- ticulares. Como seria possível decidirmos se a hipótese dos testículos fritos é certa ou errada? Teríamos de saber coisas que o registro fóssil não oferece. Quais temperaturas eram ótimas para os dinossauros? Eles po- diam evitar a absorção de excesso de calor ficando na sombra ou em cavernas? A que temperatura os seus testículos deixavam de funcio- nar? Os climas do fim do cretáceo foram quentes o suficiente para em- purrar as temperaturas internas dos dinossauros até esse teto? Testícu- los simplesmente não sc fossilizam, e mesmo que o fizessem, como po- deríamos inferir as suas tolerâncias de temperatura? Em resumo, a hi- pótese de Cowles é apenas uma especulação curiosa que não leva a lu- gar algum. A declaração mais condenatória contra ela surgiu logo na conclusão da dissertação de Colbert, Cowles e Bogert, quando eles ad- mitiram; “É difícil propor quaisquer argumentos definidos contra es ta hipótese.” O que tenho a dizer pode parecet paradoxal — uma hi- 392 Ê EXTINÇÃO E CONTINUIDADE pótese contra a qual não se pode elaborar nenhum argumento não é mesmo boa de verdade? Muito pelo contrário. Ela é simplesmente ina guável e inútil. A overdose de Siegel tem menos for tez uma extrapolação a partir de dacos di: tores. Ele não violou completamente a primária de situar a ex- tinção cos dinossauros no contexto de uma grande mortandade em mas- aumento de temperatura poderia ser a causa básica de uma eral, que acabaria com os dinossauros por disfunção testi- os diferentes por outros motivos. Mas a especulação de o consegue tocar a extinção das amonitas ou do plâncton oc ceas produzem a própria comida com a boa e pura luz do Sol; elas não tomam overdoses de substâncias químicas de plantas terrestres). Trata-se apenas de um palpite gratuito, que busca chamar a atenção. Não pode ser averiguado, pois como vamos saber que sa- bores os dinossauros sentiam ou o que os seus figados conseguiam fa zer? Figados não se fossilizam melhor do que testículos A hipótese não faz sentido nem mesmo no seu próprio contexto. As angiospermas estavam em plena floração dez milhões de anos an- tes que os dinossauros seguissem o caminho de toda a carne. Por que demorou tanto a acontecer? Quanto às dores da morte química regis- tradas nas contorsões dos fósseis, lamento dizer (ou melhor, sinto-me satisfeito por dizer, em consideração para com cs dinossauros) que o conhecimento de geologia de Siegel deve ser um bocado deficiente: os músculos se contraem após a morte, 2 os estratos geológicos sobem e descem com os movimentos da crosta terrestre após o sepultamento — motivos mais do que suficientes para distorcer a aparência original de um fóssil. Por outro lado, a hipótese do impacto possui um fundamento só- lido de indícios. Ela pode ser submetida a exame, expandida, refinada e, se for incorreta, rejeitada. Os Alvarez não se limitaram a elaborar um palpite arrebatador para consumo público. Eles propuseram a sua hipótese após laboriosos estudos geoquímicos com Frank Asaro e He- len-Michacl terem revelado um vasto aumento de irídio nas rochas de- positadas justamente na época da extinção. O irídio, um metal raro do grupo da platina, está virtualmente ausente das rochas nativas da crosta terrestre; a maior parte do nosso irídio provém de objetos ex- traterrestres que se chocam com a Terra. A hipótese Alvarez rendeu frutos imediatos. Fundamentada ori- ginalmente nos indícios de duas localidades européias, ela levou os bio- quimicos de todo o mundo a examinar outros sedimentos de mesma da. Cowles pelos menc boa qualidade sobre alig pois o catástrofe 393 O SORRISO DO FLAMINGO idade. Eles encontravam quantidades atipicamente altas de irídio em toda a parte — das rochas continentais do oeste dos Estados Unidos até pontos do fundo do mar no Atlântico Sul Cowles propôs a sua hipótese testicular em meados da década de 1940. Até onde ela chegou desde então? Absolutamente a lugar algum, porque os cientistas nada podem fazer com ela. A hipóte de per- tecer na condição de apêndice curioso de um sólido estudo sobre gatores. O roteiro da overdose de Siegel também vai conquistar al- gumas notas na imprensa até cair no esquecimento. O asteróide dos Alvarez classifica-se numa categoria inteiramente diversa, e boa parte do comentário popular não percebeu a distinção essencial porque se concentrou no impacto e nos seus resultados, e esqueceu o que real- mente importa para um cientista — o irídio. Se você fala apenas sobre asteróides, poeira e escuridão, não está contando histórias melhores ou mais divertidas do que as dos testículos fritos ou das “viagens” ter- minais. É o irídio — a fonte de evidência averiguável — que importa e que forja a distinção crucial entre especulação e ciência. A prova, distorcendo uma expressão, encontra-se no fazer. A hi- pótese de Cowles não gerou coisa alguma em 35 anos. Desde a sua proposição em 1979, a hipótese Alvarez gerou centenas de estudos, uma importante conferência e as publicações resultantes. Os geólogos es- tão em polvorosa. Procuram por irídio em todas as outras fronteiras de extinção. Toda semana surge algo novo na imprensa científica. Con- tinuam a se acumular os indícios de que o irídio do cretáceo represen- ta um impacto extraterrestre e não o vulcanismo nativo. Enquanto fa co a revisão deste ensaio em novembro de 1984 (este parágrafo estará antiquado quando o livro for publicado), estão surgindo novos dados que incluem “assinaturas” químicas de outros isótopos que apontam para uma origem extraterrestre, esférulas de vidro do tamanho e do tipo produzidos por impacto e não por erupções vulcânicas, e varicda- des de sílica de alta pressão que se formam (pelo que sabemos) apenas sob o tremendo choque do impacto. Minha tese é simplesmente esta: qualquer que seja o resultado fi- nal (suspeito que será positivo), a hipótese Alvarez é ciência estimu- lante, proveitosa, porque gera exames, úferece-nos o que fazer e se ex- pande. Estamos nos divertindo, avançando e reguando, rumando pa- ra uma solução e ampliando a hipótese além do seu propósito original (ver no ensaio 30 algumas ampliações verdadcirarhente extraordinárias). Apenas como exemplo das contribuições inesperadas que a boa ciência engendra em outros campos, a hipótese Alvarez fez uma im- portante contribuição para um tema que tem arrebatado a atenção pú- 394 INÇÃO E CONTINUIDADE blica nos últimos meses — o chamado inverno nuclear (ver ensaio se- guinte). Num discurso proferido em abril de 1982, Luis Alvarez caleu- lou a energia que um asteróide de dez quilômetros liberaria no impac- to. Ele comparou tal explosão com uma troca nuclear plena e deixou implícito que uma guerra atômica total poderia desencadear conseguên- s semelhant ste tema, do impacto que gera nuvens gigantescas de poeira e nstituiu um importante estímulo para a de cisão de Carl Saga e um grupo de colegas, de formular as conseguên- cias climáticas do holocausto nuclear. A troca nuclear plena provavel- mente geraria o mesmo tipo de nuvem de poeira e escurecimento que pode ter eliminado os dinossauros. As temperaturas cairiam precipita- damente e a agricultura poderia se tornar impossível. Evitar a guerra nuclear é fundamentalmente um imperativo étic politico, mas te- mos de saber as consequências concretas para podermos fazer julga mentos firmes. Sinto-me encorajado por uma ligação final, entre dis ciplinas e preocupações profundas — a propósito, outro critério da ciên- cia no que ela tem de melhor!: reconhecer o fenômeno que, extermi- nando os dominadores prévios, os dinossauros, e abrindo caminho para a evolução de mamiferos grandes, inclusive nós, tornou possivel à nossa evolução, pode ajudar concretamente a evitar que nos juntemos aque- las feras magníficas em suas poses contorcidas nos estratos da Terra. a imaginação que vou s desses ensaios e terminarei este 1. Essa cuprichosa ligação estimula de tal quebrar à minha regra estrita de eliminar redundânc e o próxituo ensuio com este incitamento ao pensamento e é aê aos: