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Este texto apresenta uma investigação sobre as influências de são francisco de assis na obra de gil vicente, um dramaturgo português do século xvi. O documento explora as fontes biográficas de são francisco e seus escritos, demonstrando como as ideias e princípios franciscanos se refletiram nas obras de gil vicente. Além disso, o texto aborda a autenticidade dos escritos de são francisco e a importância de sua influência na literatura.
Tipologia: Exercícios
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Rio de Janeiro 2018
Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa da Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Comparada.
Orientadora: Prof.ª Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval
Rio de Janeiro 2018
Fabio Sanches Paixão
Abrem-se as cortinas para o Jogral de Deus: o Franciscanismo nas obras de Gil Vicente
Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa da Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Comparada.
Aprovada em 25 de abril de 2018.
Banca Examinadora:
Profª. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval (Orientadora) Universidade de São Paulo
Profª. Dra. Cláudia Maria de Souza Amorim Instituto de Letras - UERJ
Prof. Dr. Henrique Marques Samyn Instituto de Letras - UERJ
Profª. Dra. Lenora Pinto Mendes Universidade Federal Fluminense
Profª. Dra. Luciana Barbosa Reis Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro 2018
Agradeço inicialmente a Deus, o Grande Arquiteto do Universo, que me deu força e condições para concluir este tão laborioso trabalho. À orientadora desta tese, Maria do Amparo Tavares Maleval, por ter acreditado na pesquisa, pela paciência, pelos comentários precisos, pelas críticas ao longo de toda a trajetória de escrita da tese. Aos professores e funcionários do Programa em Pós-Graduação em Letras da UERJ pela dedicação e assistência. Aos nobres professores que integram a Banca examinadora por suas disponibilidades em avaliar e contribuir com a construção do conhecimento proposto nesta tese de Doutorado. Ao meu colega de trabalho Guilherme Drumond, conhecedor da língua inglesa, que me auxiliou na escrita do abstract deste trabalho. À minha mãe e irmãos que sempre me incentivaram e acreditaram em mim. Agradeço ainda à minha esposa Carla Padrone e aos meus filhos Jean Carlos e Pedro Henrique. Ninguém mais do que eles sofreram com as agruras do processo de escrita. Agradeço pela paciência, pelo carinho e por entenderem a importância desta etapa para os meus projetos acadêmicos.
PAIXÃO, Fabio Sanches. Abrem-se as cortinas para o Jogral de Deus : O Franciscanismo nas obras de Gil Vicente. 2018. 191 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.
Esta tese analisa a obra de Gil Vicente em cotejo com os escritos e ideais de São Francisco de Assis, que se auto denominava Joculator Domini (Jogral de Deus), buscando provar que a ideologia dos Frades Menores está presente não só no teatro considerado “de devoção” e nos sermões vicentinos, mas em quase toda obra atribuída a Gil Vicente, inclusive em suas farsas e comédias. Para tanto, investiga-se o pensamento de São Francisco, presente em seus escritos considerados como autênticos atualmente, e como a ideologia franciscana perpassa pelas obras vicentinas. Sendo assim, este trabalho reafirmará também que, apesar de viver num momento de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, Gil Vicente era homem de espírito e formação medievais, enraizado em uma profunda concepção teológica cristã. Por tudo isso, o pai do teatro português, influenciado pelas ideias de São Francisco de Assis, produziu uma obra cujos pensamentos e valores apontam para um desejo de moralizar a sociedade portuguesa de Quinhentos e transformar, aprofundando-a, a religiosidade superficial praticada naquela época.
Palavras-chave: Gil Vicente. São Francisco de Assis. Teatro. Religião.
PAIXÃO, Fabio Sanches. The curtains are opened for the jogral of God : Franciscanism in the works of Gil Vicente. 2018. 191 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.
This these analyze Gil Vicente’s work comparing to the writes and ideas of Saint Francis of Assisi, named himself Joculator Domini (Jogral of God), trying to prove that the ideology of Frades Moraes is still present not only in the theater, considered “in devotion” but also in Vicentinos sermons. But in almost all works attributed to Gil Vicente, including in his farces and comedies. Therefore, to find out San Francis’s thought, present in his writes considered actually authentic, and how the Franciscana ideology are elapsed in Vicentinas work. Therefore this work restate that, despite the fact of living in a transition moment through Middle Age and Modern Age, Gil Vicente was a man in medieval formation and spirit rooted in a profuse Christian theological conception. For all these things, the father of portuguese theater, influenced by the writes of São Francisco de Assis, produced a work whose thoughts and values point to moralizing the five hundred portuguese society and transforming, deepening, the superficial religiosity, practiced at that time.
Keywords: Gil Vicente. Saint Francis of Assisi. Teather. Religion.
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vicentinas, encontram-se também presentes na afamada peça Auto da Barca do Inferno. Sendo assim, analisaremos dezesseis peças no total^1. É notório o vasto material de pesquisas já realizadas acerca de Gil Vicente, parecendo, à primeira vista, não haver mais como explorar algum assunto acerca de suas obras. No entanto, apesar dos vários estudos vicentinos e da extensa bibliografia sobre o autor português e seu teatro, muitas indagações ainda permanecem acerca de sua posição ideológica. Nesse sentido, teremos como segunda hipótese de trabalho defender que, mesmo sendo homem contemporâneo ao Humanismo e crítico de uma sociedade em crise de valores, Gil Vicente não é um pré-reformista, como afirmou Teófilo Braga em seus estudos sobre a Literatura Portuguesa. O dramaturgo português, ainda que siga um viés como crítico dos costumes, estaria longe de propor a rebelião dos reformistas protestantes e mesmo de ser um adepto do Erasmismo. Cabe lembrar que o protestantismo de Lutero se opôs à Igreja porque estava imbuído de um espírito antropocêntrico, fortalecido e apoiado pela burguesia mercantilista. Gil Vicente, ao contrário disso, não se identifica com os valores do Mercantilismo. Ligado constantemente à Corte, à família real, para quem representa, Gil Vicente era homem de espírito e formação medievais, enraizado em uma concepção teológica e fortemente influenciado pelas ideias e escritos de Francisco de Assis. Possivelmente tal influência teria gerado nele o desejo de contribuir para a transformação da sociedade portuguesa e a religiosidade superficial então praticada em sua época. Esse desejo está intimamente ligado à ordem que Francisco recebera quando estava de joelhos diante do Crucificado (ou Crucifixo )
Francisco encontrava-se sozinho na igreja e ficou amedrontado ao ouvir aquela voz, mas a força de sua mensagem penetrou profundamente em seu coração e ele, delirando, caiu em êxtase. Por fim voltou a si e tratou de pôr em execução a ordem recebida. Concentrou todas as forças na restauração daquela igreja material. Mas a igreja a que a visão se referia era aquela que “Cristo resgatara com seu próprio sangue” (At 20, 28). O Espírito Santo mais tarde lho revelou e ele o ensinou a seus irmãos (BOAVENTURA, in SILVEIRA, REIS, 1982, p. 469). Para o desenvolvimento desta tese, nos primeiros capítulos, será realizada uma investigação minuciosa das fontes biográficas de Francisco de Assis e dos Escritos
(^1) VICENTE, Gil. Obras completas. Porto: Lello & Irmão Editores, 1965.
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Franciscanos, a fim de melhor compreender os ideais do santo e de sua ordem, antes de compará-los com o sentido das obras vicentinas. Buscaremos, dessa forma, examinar, antes de tudo, as fontes biográficas primárias tradicionais, escritas por Tomás de Celano ( Vida I ) e Boaventura ( Legenda Maior ), além de uma fonte secundária que leva o nome do santo ( São Francisco de Assis ), escrita pelo historiador Jacques Le Goff. Cabe ressaltar que Le Goff (de 1924 a 2014), o qual foi um importante historiador francês, afirmou, ao justificar sua investigação sobre a vida de Francisco (LE GOFF, 2001, p. 10-11), ser fascinado pelo santo, um dos mais impressionantes personagens do seu tempo e da História Medieval e que inspirou o desejo de fazer dele um objeto da história total, exemplar para o passado e para o presente. Essa obra de Le Goff é dividida em quatro ensaios ou capítulos, dos quais os dois primeiros nos auxiliarão sobremaneira, por revelarem informações sobre a vida do santo pela ótica desse eminente medievalista. Apesar de se designar como “homem simples e sem letras”, Francisco nos deixou vários escritos que nos revelam muito sobre sua personalidade e seus ideais. Dessa forma, em outro capítulo, serão apresentadas análises dos textos franciscanos. Esses textos estão distribuídos, segundo uma divisão comumente aceita, em três grupos. Um primeiro grupo é atribuído a Francisco como Fundador e Pai ( Regra não Bulada, Regra Bulada, Regra de Vida para os Eremitérios, Testamento, Testamento de Sena, Admoestações, Forma de Vida, Última Vontade ); um segundo é atribuído a ele como evangelizador e conselheiro espiritual ( Cartas ); um terceiro grupo é lhe atribuído como cantor e orante (Louvores e Orações). Sabe-se, no entanto, que estas obras – ou a maioria delas – provavelmente foram ditadas a irmãos peritos na arte da escrita. O próprio Francisco confirma essa ideia com relação à Regra Não-bulada , quando diz no Testamento (cap. 4º): “E o fiz escrever”. Em algumas cartas, ocorrem situações semelhantes. Isso não significa que ele era analfabeto − afinal, o relato de Eccleston e os autógrafos, encontrados e preservados até os nossos dias, provariam o contrário. No entanto, as letras tremidas e a grafia desajeitada insinuam que Francisco não desenvolvera certa habilidade com as letras. Suas ideias, porém, foram preservadas em vários textos, mesmo que registradas por terceiros, e serão esses escritos analisados como parte de nosso corpus. Além de compreender a mensagem franciscana, será preciso entender também como era a época em que a ordem dos frades menores foi fundada e estabelecida. Sendo assim, ao tratarmos da biografia de Francisco, apontaremos também as características do momento histórico vivido por ele. Naquela época, uma renovação da Igreja era uma necessidade sentida
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tempo após sua morte, todo frade mendicante na rua parecia carregar dentro de si algo de seu mestre e multiplicar a sua presença. Sua personalidade contribuiu sem dúvida alguma para despertar e aprofundar o sentimento da originalidade e singularidade do indivíduo (AUERBACH, 1997, p. 65). Além da ideologia franciscana, presente nas regras e outros discursos de Francisco, interessa-nos evidenciar as virtudes mais prezadas por ele. Maria do Amparo Tavares Maleval evidencia, ao analisar, em seu artigo Da retórica do Franciscanismo nas Moralidades de Gil Vicente , essas virtudes, afirmando que, em texto de sua lavra, intitulado Elogio das Virtudes (FRANCISCO, in SILVEIRA, REIS, 1982, p. 166), Francisco de Assis exalta
a “rainha sabedoria”, irmã da “pura simplicidade”; a “santa pobreza”, irmã da “santa humildade”; a “santa caridade”, irmã da “santa obediência”. E ensina que a nenhuma o cristão deve ofender: “quem a uma ofender, nenhuma possui e a todas ofende”, acrescentando que “cada uma por si destrói os vícios e pecados”. Assim, a “santa sabedoria” “confunde a Satanás e todas as suas astúcias”; a “pura e santa simplicidade” “confunde toda a sabedoria deste mundo e a prudência da carne”; a “santa pobreza” “confunde toda a cobiça e avareza e solicitudes deste século”; a “santa humildade” o orgulho, a “santa caridade” “as tentações do demônio e a da carne” e desta os temores; a “santa obediência” “confunde os desejos sensuais e carnais e mantém o corpo mortificado para obedecer ao espírito e obedecer a seu irmão, e torna o homem submisso” a todos os homens e animais (FRANCISCO, in MALEVAL, 2014, p. 180). Essas virtudes exaltadas pelo santo – sabedoria e simplicidade, pobreza e humildade, caridade e obediência −, bem como o seu cântico de louvor à natureza, sua devoção à Virgem Maria e o seu desejo de reforma na Igreja são características facilmente percebidas nas obras de Gil Vicente. O ideal de santidade, contemplação e valorização da pobreza e humildade, além da refutação a qualquer saber puramente humano, seja de ciência ou erudição, pode ser identificado em seu teatro, como o próprio escreveu no Auto da Fé :
Por mostrar que a pobreza Actual e spiritual He o toque principal Da celestial riqueza: Porque He porta da humildade Caminho da paciência, Horto da sancta prudência Esteio da Sactidade (VICENTE, 1965, p. 113). Antes de analisar e entender o discurso de Gil Vicente em sua obra e perceber suas afinidades com o franciscanismo, será necessário, em capítulo à parte, expor os dados biográficos de Gil Vicente a fim de entender um pouco sobre a sua ideologia. Afinal, quem foi o homem considerado por alguns como o pai do teatro português? Que fatores de condenação encontra Gil Vicente na sociedade do seu tempo? Como apresenta suas críticas, implícita ou explicitamente? Até onde vai ou até onde pode ir, quando expõe suas opiniões?
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Pretendemos ainda mostrar, depois de responder a essas indagações, como a sua época permitiu-lhe certa liberdade de expressão, impondo-lhe, porém, uma demonstração de obediência e respeito por funções, dogmas e instituições. Será nosso objetivo, ainda no mesmo capítulo, apresentar as características do teatro vicentino, que, segundo alguns, foi um inovador da tradição dramatúrgica peninsular e, mesmo, europeia. Discutiremos ainda alguns equívocos da Copilaçam de 1562 e apresentaremos outras classificações mais sistemáticas das obras vicentinas, que vem sendo testadas. Após a análise do teatro de Gil Vicente, no mesmo capítulo, mostraremos, por meio de uma perspectivação histórica, as evidências de que ele era um adepto do franciscanismo. Será explicado de início que essa ideologia presente em suas obras foi motivada por várias razões, sendo uma delas – e provavelmente a mais forte – o fato de o franciscanismo estar presente na Corte portuguesa e ser admirado ou praticado por vários membros da família real portuguesa. Sem dúvidas, o fato de D. Leonor, sua principal mecenas, estar integrada na espiritualidade franciscana e atuando ativamente, por meio de suas obras de misericórdia e divulgação da cultura cristã, será a maior influência para o artista português. No entanto, convém ressaltar que tal pensamento já estava presente entre a realeza não só na época de Gil Vicente, no século XV e XVI; antes desse período, por exemplo, a rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, no século XIII, abraçou de forma total o franciscanismo, dedicando-se à prática da caridade e da humildade. A rainha inclusive fundou o convento das Clarissas e vestiu-lhe o hábito, quando ficou viúva. Enfim, mostraremos que outros acontecimentos comprovam que Gil Vicente teria recebido várias influências do pensamento de Francisco de Assis. Trataremos ainda do riso, elemento que, além de ser um dos recursos do teatro produzido por Gil Vicente, aproxima mais uma vez esta dramaturgia dos ideais franciscanos. E adiante-se que Gil Vicente segue a mesma linha de pensamento adotada por Plauto, dramaturgo latino, que acreditava no lema ridendo castigati more , isto é, rindo castigam-se os costumes. Essa alegria presente em suas obras também foi valorizada por Francisco (FRANCISCO, in SILVEIRA, REIS, 1982, p. 147), que, na Regra não-bulada , defendeu que os frades se mostrassem sempre alegres. O santo de Assis aconselhou que os frades nunca se mostrassem em seu exterior como tristes e sombrios hipócritas, mas antes se comportassem como gente que se alegra no Senhor, satisfeitos e amáveis, como convém. Antes de procedermos ao estudo do discurso franciscano presente nas obras de Gil Vicente, consideramos importante realizar um estudo histórico do franciscanismo em Portugal, demonstrando como os escritos franciscanos influenciaram a literatura portuguesa,
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combatida quando Gil Vicente implicitamente pretende corrigir, por meio de suas obras, as atitudes de várias personagens, como os fidalgos, religiosos e escudeiros; e aparecerá em suas palavras proferidas no Sermão pregado em 1506 (VICENTE, 1965, p. 1286), em que o artista demonstrou sua preocupação, afirmando que o mundo, à semelhança do enfermo, aperta os dentes ansiosamente, cada vez mais soberbo. Esse ideal também poderá ser percebido na análise das peças Farsa dos Almocreves e Quem tem farelos? Além disso, a união com a natureza e o amor por toda a criação divina, pensamentos tão propagados pelo Franciscanismo, serão examinados em algumas obras do dramaturgo português, como o Triunfo do Inverno , o Auto da História de Deus , a farsa Auto da Lusitânia e o Auto dos Quatro Tempos. A simplicidade ainda será valorizada na figura do eremita, personagem frequente em várias obras do dramaturgo português, como na Tragicomédia sobre a divisa da cidade de Coimbra , Amadis de Gaula e Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela. Essa imagem do eremita, em seu ideal de vida solitária e contemplativa, será comparada à ideologia de Francisco, já que, após sua conversão, ele passou a viver fora dos muros da cidade como um ermitão e expressou seu pensamento sobre esta vida eremítica. Depois, trataremos da temática que mais vezes apareceu nas peças de Gil Vicente: o afastamento do clero de sua missão espiritual. Essa era uma preocupação franciscana também, afinal, Francisco tinha consciência da responsabilidade de estar à frente de um rebanho na condição de guia. Apontaremos tais críticas vicentinas nas obras Clérigo da Beira, Comédia de Rubena, Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra e voltaremos a analisar a obra Romagem dos agravados, cuja crítica ao clero também fica evidente. Ainda faremos menção ao valor da oração para Francisco e mostraremos como essa temática foi explorada no teatro vicentino. Para isso, selecionamos as obras Floresta dos Enganos e Clérigo da Beira , em que se percebe uma preocupação de Gil Vicente com a oração verdadeira e não com aquela feita com “vazias” palavras. Por fim, trataremos do enaltecimento da cultura cavaleiresca que esteve presente na vida de Francisco de Assis, considerado o cavaleiro de Cristo, mas que também foi tema em obras vicentinas como Amadis de Gaula e Dom Duardos. Sem dúvida, o que transparece ao longo das numerosas obras vicentinas é uma ideologia cristã, e ele se mostra, dessa forma, como homem imbuído de pensamento e reflexões de tipo espiritual cuja essência se fundamenta nos valores católicos; provavelmente, por ter vivido em período de transição, herdando um pensamento medieval, seu ideário humanista se afasta do ideário de outros escritores portugueses. Dessa forma, nossa pesquisa,
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ao tratar de Gil Vicente como um franciscano, também trará uma reflexão acerca do humanismo português, mostrando que havia um considerável espaço para as produções místicas no século XVI, ainda que alguns enfatizem apenas a renovação e a valorização cultural deste momento. Ao tratar dessa questão, José Augusto Cardoso Bernardes afirma que
Assim sendo, não pode deixar de vir à tona um curioso problema de inserção periodológica: é que sendo G. V. (e convindo muito que seja) um artista do século XVI e querendo nós (precisando nós?) fazer desse século um tempo de renovação e de efervescência cultural, assinalado pelos ideais humanistas e pelo primado dos modelos greco-latinos (tornou-se inclusivamente necessário “encontrar”, para tanto, um humanismo especificamente português, de carácter cívico e livresco, cruzadístico e irenista) onde poderemos encontrar espaço para um autor que, embora pertencendo a essa mesma época, parece estar fora desta atmosfera? Esta pergunta, todavia, radica numa visão estereotipada do século XVI, ou seja, pressupõe a homogeneidade estético-cultural de toda uma centúria que sabemos atravessada por tensões de toda a ordem (BERNARDES, 2005, 194-195). Por tudo isso, fica evidente que Gil Vicente, antes de ser um artista humanista, era um pregador, obediente ao que o franciscanismo propunha: estar com Cristo e ser enviado a pregar (BÍBLIA, 2002, Marcos 3, 14-15)^4. O binômio de São Marcos sintetiza a finalidade para a qual foram constituídos os Doze: vida em comum com Cristo e participação na sua missão. E como pregador, Vicente dominava as técnicas de persuasão, característica essencial àqueles que se dedicavam à homilética. No entanto, a sua pregação não está só em seus sermões, mas em toda sua obra, desde as suas peças de devoção até as consideradas profanas. Nestas obras, em que ele desenvolve a sua arte de pregar e habilidade retórica, é possível notara valorização das mesmas virtudes destacadas pelo fundador da Ordem dos Menores, moralizando, por meio destes ensinamentos, a sociedade portuguesa de Quinhentos. Por todos esses aspectos apresentados, espera-se que, após as comparações entre os escritos de Francisco de Assis e as obras de Gil Vicente, fique evidente a presença do Franciscanismo nos textos vicentinos. Assim, considera-se que este trabalho contribuirá ainda mais para os estudos acerca de Gil Vicente e sobre o mundo pintado por ele nos seus autos, nas suas farsas ou nas suas comédias.
(^4) BÍBLIA de Jerusalém. S. Paulo: Paulus, 2002, p. 1767.