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História da Loucura na Idade Clássica, Notas de estudo de Ciências Biologicas

?História da Loucura na Idade Clássica?, escrita em 1961, foi a tese de doutorado em Filosofia do renomado pensador francês, admiradíssimo até por Gilles Deleuze quanto à luz que irradiava a todos por onde passava, Michael Foucault, dono de uma dissertação que vale a pena ser lida e re-lida antes de morrermos."

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 03/06/2010

Saloete
Saloete 🇧🇷

4.6

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Michel Foucault

História da Loucura na Idade Clássica

EDITORA PERSPECTIVA

Título do original em francês Histoire de la Folie à l'Âge Classique Coleção Estudos Dirigida por J. Guinsburg

Sumário

  • Prefácio .....................................................................................
    1. Stultifera navis
    1. A Grande Internação
    1. O Mundo Correcional
    1. Experiências da Loucura
    1. Os Insensatos
  • SEGUNDA PARTE
  • Introdução
    1. O Louco no Jardim das Espécies
    1. A Transcendência do Delírio
    1. Figuras da Loucura..............................................................
      • I. O GRUPO DA DEMÊNCIA
      • II. MANIA E MELANCOLIA...................................................
      • III. HISTERIA E HIPOCONDRIA
    1. Médicos e Doentes
  • TERCEIRA PARTE
  • Introdução
    1. O Grande Medo.................................................................
    1. A Nova Divisão
    1. Do Bom Uso da Liberdade
    1. Nascimento do Asilo
    1. O Círculo Antropológico......................................................
  • ANEXO
    • Notas
    • HISTÓRIA DO HOSPITAL GERAL
      • In L'Hôpital général, brochura anônima de 1676.
  • Bibliografia
    • ESTUDOS GERAIS................................................................
    • PRIMEIRA PARTE
    • SEGUNDA PARTE
    • TERCEIRA PARTE

Prefácio

Deveria escrever um novo prefácio para este livro já velho. Confesso que a idéia não me agrada, pois isso seria inútil: não deixaria de querer justificá-lo por aquilo que ele era e de reinscrevê- lo, tanto quanto possível, naquilo que está acontecendo hoje. Possível ou não, hábil ou não, isso não seria honesto. Acima de tudo, não seria conforme tudo aquilo que deve ser, com relação a um livro, a reserva daquele que se escreveu. Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser. A reedição numa outra época, num outro lugar, ainda é um desses duplos: nem um completo engodo, nem uma completa identidade consigo mesmo.

Para quem escreve o livro, é grande a tentação de legislar sobre todo esse resplandecer de simulacros, prescrever-lhes uma forma, carregá-los com uma identidade, impor-lhes uma marca que daria a todos um certo valor constante.

Sou o autor: observem meu rosto ou meu perfil; é a isto que deverão assemelhar-se todas essas figuras duplicadas que vão circular com meu nome; as que se afastarem dele, nada valerão, e é a partir de seu grau de semelhança que poderão julgar do valor dos outros. Sou o nome, a lei, a alma, o segredo, a balança de todos esses duplos.

Assim se escreve o Prefácio, ato primeiro com o qual começa a estabelecer-se a monarquia do autor, declaração da tirania: minha intenção deverá ser seu preceito, leitor; sua leitura, suas análises, suas críticas se conformarão àquilo que pretendi fazer; entendam bem minha modéstia: quando falo dos limites de meu empreendimento, pretendo limitar sua liberdade, e se proclamo a sensação de não ter estado à altura de minha tarefa é porque não

1. Stultifera navis

Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. Às margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se como que grandes praias que esse mal deixou de assombrar, mas que também deixou estéreis e inabitáveis durante longo tempo. Durante séculos, essas extensões pertencerão ao desumano. Do século XIV ao XVII, vão esperar e solicitar, através de estranhas encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar do medo, mágicas renovadas de purificação e exclusão.

A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris, chegou a haver 19. delas em toda a cristandade^1. Em todo caso, por volta de 1266, à época em que Luís VIII estabelece, para a França, o regulamento dos leprosários, mais de 2.000 deles encontram-se recenseados. Apenas na Diocese de Paris chegou a haver 43: entre eles Bourg-la-Reine, Corbeil, Saint-Valère e o sinistro Champ-Pourri^2 ; e também Charenton. Os dois maiores encontravam-se na periferia imediata de Paris: Saint-Germain e Saint-Lazare^3 ; tornaremos a encontrar seus nomes na história de um outro mal. É que a partir do século XV, o vazio se estabelece por toda parte; a partir do século seguinte, Saint- Germain torna-se uma casa de correição para os jovens; e antes de São Vicente, em Saint-Lazare existe apenas um único leproso, "o senhor Langlois, prático leigo da corte". O leprosário de Nancy, que figurou entre os maiores da Europa, mantém apenas quatro doentes sob a regência de Maria de Médicis. Segundo as Memórias de Catel, teriam existido 29 hospitais em Toulouse por volta do fim da época medieval: 7 eram leprosários, mas no começo do século XVII apenas 3 são mencionados: Saint-Cyprien, Arnaud-Bernard e Saint-Michel^4. As pessoas gostam de celebrar o desaparecimento da lepra: em 1635, os habitantes de Reims fazem uma procissão solene para agradecer a Deus por ter libertado a cidade desse flagelo^5.

(^1) Citado em COLLET, Vie de saint Vicent de Paul, Paris, 1818, I, p. 293. (^2) Campo podre. (N. do T.) (^3) Cf. J. LEBEUF, Histoire de la ville et de tout la diocèse de Paris, Paris, 1754-1758. 4 Citado em H. M. FAY, Lépreux et cagots du Sud-Ouest, Paris, 1910, p. 285. 5 P.-A. HILDENFINGER, La Léproserie de Reims du XIIe ou XVlle siècle, Reims, 1906, p. 233.

Nessa época, há já um século o poder real tinha assumido o controle e a reorganização dessa imensa fortuna que representavam os bens fundiários dos leprosários; através de um ordenamento de 19 de dezembro de 1543, Francisco I tinha mandado proceder a seu recenseamento e inventário "a fim de reparar a grande desordem que então havia nas gafarias"; por sua vez, Henrique IV prescreve, num édito de 1606, uma revisão das contas e destina "as quantias que resultariam desse exame ao tratamento dos gentis-homens pobres e dos soldados estropiados". O mesmo pedido de controle é feito em 24 de outubro de 1612, mas pensa-se agora em utilizar as rendas abusivas na alimentação dos pobres^6.

De fato, a questão dos leprosários na França só foi regulamentada ao final do século XVII, e a importância econômica do problema suscitou mais de um conflito. Não havia ainda, em 1677, 44 leprosários apenas na província do Dauphiné?^7 A 20 de fevereiro de 1672, Luís XIV atribui às ordens de Saint-Lazare e do Mont-Carmel os bens de todas as ordens hospitalares e militares, encarregando-as de administrar os leprosários do reino^8. Cerca de vinte anos mais tarde, o édito de 1672 é revogado, e através de uma série de medidas escalonadas entre março de 1693 e julho de 1695, os bens das gafarias passam aos outros hospitais e estabelecimentos de assistência. Os poucos leprosos dispersos ao acaso pelas 1.200 casas ainda existentes serão agrupados em Saint-Mesmin, perto de Orléans^9. Essas prescrições são aplicadas primeiro em Paris, orde o Parlamento transfere as rendas em questão para os estabelecimentos do hospital geral; o exemplo é imitado pelas jurisdições provinciais: Toulouse destina os bens de seus leprosários ao hospital dos Incuráveis (1696) ; os de Beaulieu, na Normandia, passam para o Hôtel-Dieu (hospital principal) de Caen; os de Voley são atribuídos ao hospital de Saint-Foy^10. Sozinho, com Saint-Mesmin, o recinto dos Ganets perto de Bordeaux permanecerá como testemunha.

Para um milhão e meio de habitantes no século XII, Inglaterra e Escócia tinham aberto, apenas as duas, 220 leprosários. Mas já no século XIV o vazio começa a se implantar: no momento em que

6 DELAMARE, Traite de Police, Paris, 1738, I, pp. 637-639. 7 VALVONNAIS, Histoire du Dauphiné, II, p. 171. 8 L. CIBRARIO, Précis historique des ordres religieux de Saint-Lazare et de Saint- Maurice, Lyon, 1860. 9 ROCHER, Notice historique sur la maladrerie de Saint-Hilaire-Saint-Mesmin, Orléans, 1866. 10 J.-A. ULYSSE CHEVALIER, Notice historique sur la maladrerie de Voley près Romans, Romans, 1870, p. 61.

Se se retiraram os leprosos do mundo e da comunidade visível da Igreja, sua existência no entanto é sempre uma manifestação de Deus, uma vez que, no conjunto, ela indica sua cólera e marca sua bondade:

Meu companheiro, diz o ritual da Igreja de Viena, apraz ao Senhor que estejas infestado por essa doença, e te faz o Senhor uma grande graça quando te quer punir pelos males que fizeste neste mundo.

E ao mesmo tempo em que, pelas mãos do padre e seus assistentes, é arrastado para fora da Igreja gressu retrogrado, asseguram-lhe que ele ainda é um testemunho de Deus: "E por mais que estejas separado da Igreja e da companhia dos Sãos, não estarás séparado da graça de Deus". Os leprosos de Brueghel assistem de longe, mas para sempre, a essa subida do Calvário na qual todo um povo acompanha o Cristo. E, testemunhas hieráticas do mal, obtêm a salvação na e através dessa própria exclusão: uma estranha inversão que se opõe à dos méritos e das orações, eles se salvam pela mão que não se estende. O pecador que abandona o leproso à sua porta está, com esse gesto, abrindo-lhe as portas da salvação.

Por isso, tem paciência com tua doença, pois o Senhor não te despreza por tua doença, e não se separa de tua companhia; mas se tiveres paciência serás salvo, como o foi o lazarento que morreu diante da casa do novo-rico e foi levado diretamente ao paraíso^14.

O abandono é, para ele, a salvação; sua exclusão oferece-lhe uma outra forma de comunhão.

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Freqüentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e "cabeças alienadas" assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão — essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas reintegração espiritual.

14 Ritual da Diocese de Viena, impresso sob o Arcebispo Gui de Poissieu, por volta de 1478. Citado por CHARRET, Histoire de l'Eglise de Vienne, p. 752.

Mas não nos antecipemos.

A lepra foi substituída inicialmente pelas doenças venéreas. De repente, ao final do século XV, elas sucedem a lepra como por direito de herança. Esses doentes são recebidos em diversos hospitais de leprosos: sob Francisco I, tenta-se inicialmente colocá-los no hospital da paróquia de Saint-Eustache, depois no de Saint-Nicolas, que outrora tinham servido de gafarias. Por duas vezes, sob Carlos VIII, depois em 1559, a eles tinham sido destinadas, em Saint-Germain- des-Près, diversas barracas e casebres antes utilizados pelos leprosos^15. Eles logo se tornam tão numerosos que é necessário pensar na construção de outros edifícios "em certos lugares espaçosos de nossa cidade e arredores, sem vizinhança"^16. Nasceu uma nova lepra, que toma o lugar da primeira. Aliás não sem dificuldades, ou mesmo conflitos. Pois os próprios leprosos sentem medo.

Repugna-lhes acolher esses recém-chegados ao mundo do horror:

Est mirabilies: contagiosa et nimis formidanda infirmitas, quam etiam detestantur leprosi et ea infectos secum habitare non permittant 17. Mas se os leprosos têm direitos mais antigos de se instalar nesses lugares "segregados", são pouco numerosos para fazê-los valer; os atingidos pelas doenças venéreas, um pouco por toda parte, logo ocuparam-lhes o lugar.

E, no entanto, não são as doenças venéreas que assegurarão, no mundo clássico, o papel que cabia à lepra no interior da cultura medieval. Apesar dessas primeiras medidas de exclusão, elas logo assumem seu lugar entre as outras doenças. De bom ou mau grado, os novos doentes são recebidos nos hospitais. O Hôtel-Dieu de Paris os acolhe^18 , várias vezes tenta-se escorraçá-los, mas em vão: eles lá ficam e se misturam aos outros doentes^19. Na Alemanha constroem

15 PIGNOT, Les Origines de l'Hôpital du Midi, Paris, 1885, pp. 10 e 48. 16 Segundo um manuscrito dos Archives de l'Assistance Publique (dossier Petites- Maisons, fichário n. 4). 17 TRITHEMIUS, Chronicon Hisangiense, citado por POTTON em sua tradução de Ulrich von Hutten: Sue la maladíe française et sur les propriétés du boi, de gaíac, Lyon, 1865, p. 9. 18 A primeira menção à doença venérea na França encontra-se num relatório do Hôtel-Dieu, citado por BRIELE, Collection de Documents pour servir a l'Histoire des hôpitaux de Paris, Paris, 1881-1887, III, fasc. 2. 19 Cf. os autos de uma visita ao Hôtel-Dieu, em 1507, citados por PIGNOT, op. cit., p. 125.

imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos.

A Narrenschiff é, evidentemente, uma composição literária, emprestada sem dúvida do velho ciclo dos argonautas, recentemente ressuscitado entre os grandes temas míticos e ao lado de Blauwe Schute de Jacob Van Oestvoren em 1413, de Borgonha. A moda é a composição dessas Naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhes traz, senão a fortuna, pelo menos a figura de seus destinos ou suas verdades. É assim que Symphorien Champier compõe sucessivamente uma Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza em 1502, depois uma Nau das Damas Virtuosas em 1503. Existe também uma Nau da Saúde, ao lado de Blauwe Schute de Jacop van Oestvoren em 1413, da Narrenschiff de Brant (1497) e da obra de Josse Bade: Stultiferae erae naviculae scaphae fatuarum mulierum (1498). O quadro de Bosch, evidentemente, pertence a essa onda onírica.

Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Esse costume era freqüente particularmente na Alemanha: em Nuremberg, durante a primeira metade do século XV, registrou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinqüenta anos que se seguiram, têm- se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se aqui apenas de loucos detidos pelas autoridades municipais^23. Eram freqüentemente confiados a barqueiros: em Frankfurt, em 1399, encarregam-se marinheiros de livrar a cidade de um louco que por ela passeava nu; nos primeiros anos do século XV, um criminoso louco é enviado do mesmo modo a Mayence. Às vezes, os marinheiros deixavam em terra, mais cedo do que haviam prometido, esses passageiros incômodos; prova disso é o ferreiro de Frankfurt que partiu duas vezes e duas vezes voltou, antes de ser reconduzido

23 T. KIRCHHOFF, Geschichte der Psychiatrie, Leipzig, 1912.

definitivamente para Kreuznach^24. Freqüentemente as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos.

Não é fácil levantar o sentido exato deste costume. Seria possível pensar que se trata de uma medida geral de expurgo que as municipalidades fazem incidir sobre os loucos em estado de vagabundagem; hipótese que por si só não dá conta dos fatos, pois certos loucos, antes mesmo que se construam casas especiais para eles, são recebidos nos hospitais e tratados como loucos. No Hôtel- Dieu de Paris, seus leitos são colocados em dormitórios^25 ; por outro lado, na maior parte das cidades da Europa existiu, ao longo de toda a Idade Média e da Renascença, um lugar de detenção reservado aos insanos: é o caso do Châtelet de Melun^26 ou da famosa Torre dos Loucos de Caen^27 ; são as inúmeras Narrtürmer da Alemanha, tal como as portas de Lübeck ou o Jungpfer de Hamburgo^28. Portanto, os loucos não são corridos das cidades de modo sistemático. Por conseguinte, é possível supor que são escorraçados apenas os estrangeiros, aceitando cada cidade tomar conta apenas daqueles que são seus cidadãos. Com efeito, é possível encontrar na contabilidade de certas cidades medievais as subvenções destinadas aos loucos, ou donativos feitos em favor dos insanos^29. Na verdade, o problema não é tão simples assim, pois há pontos de reunião deles onde os loucos, mais numerosos que em outras partes, não são autóctones. Em primeiro lugar, surgem os lugares de peregrinação: em Saint-Mathurin de Larchant, em Saint-Hildvert de Gournay, em Besançon, em Gheel: estas peregrinações eram organizadas e às vezes subvencionadas pelas cidades ou pelos hospitais^30. E é possível

24 Cf. KRIEGK, Heilanstatten, Geistkranke ins mittetillterliche Frankfort am Main,

25 Ver as Contas do Hôtel-Dieu, XIX, 190 e XX, 346. Citado por COYECQUE, L'Hôtel-Dieu de Paris au Moyen Age, Paris, 1889-1891. Histoire et Documents, I, p. 109. 26 Archives hospitalières de Melun. Fonds Saint-Jacques, E, 14, 67. 27 A. JOLY, L'internement des fous sous l'Ancien Régime dans la généralité de Basse-Normandie, Caen, 1868. 28 Cf. ESCHENBURG, Geschichte unserer Irrenanstalten, Lübeck, 1844 e VON HESS, Hamburg topographisch, historisch, und politik beschreiben, I, pp. 344-

29 Por exemplo, em 1461 Hamburgo entregou 14 th. e 85 s. a uma mulher que devia ocupar-se de loucos (GERNET, Mitteilungen aus der ältereren Medizine- Geschichte Hamburgs, p. 79). Em Lübeck, há o testamento de um certo Gerd Sunderberg para «den armen dullen Luden» em 1479. (Citado em LAEHR, Gedenktage der Psychiatrie, Berlim, 1887, p. 320.) 30 Há mesmo casos em que se subvencionam substitutos: Entregue e pago um homem que foi enviado a Saint-Mathurin de Larchant para fazer a no-sena da dita irmã Roblac, estando doente e com frenesi. VIII, s.p.» Contas do Hôtel- Dieu, XXIII, COYECQUE, toc.. mi., ibid.

aplica sanções contra um sacerdote que se torna insano; mas em Nuremberg, em 1421, um padre louco é expulso com uma particular solenidade, como se a impureza se acentuasse pelo caráter sacro da personagem, e a cidade retira de seu orçamento o dinheiro que devia servir-lhe de viático^34. Acontecia de alguns loucos serem chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem a seguir perseguidos numa corrida simulada e escorraçados da cidade a bastonadas^35. Outro dos signos de que a partida dos loucos se inscrevia entre os exílios rituais.

Compreende-se melhor agora a curiosa sobrecarga que afeta a navegação dos loucos e que lhe dá sem dúvida seu prestígio. Por um lado, não se deve reduzir a parte de uma eficácia prática incontestável: confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. Esta navegação do louco é simultaneamente a divisão rigorosa e a Passagem absoluta. Num certo sentido, ela não faz mais que desenvolver, ao longo de uma geografia semi-real, semi- imaginária, a situação liminar do louco no horizonte das preocupações do homem medieval — situação simbólica e realizada ao mesmo tempo pelo privilégio que se dá ao louco de ser fechado à s portas da cidade: sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e inversamente. Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvida a sua até nossos dias, se admitirmos que aquilo que outrora foi fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo de nossa consciência.

A água e a navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das

34 Um homem que lhe havia roubado o casaco ê punido com sete dias de prisão. (Cf. KIRCHHOFF, loc. cit.) 35 Cf. KRIEGK, loc. cit.

estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer^36. É esse ritual que, por esses valores, está na origem do longo parentesco imaginário que se pode traçar ao longo de toda a cultura ocidental? Ou, inversamente, é esse parentesco que, da noite dos tempos, exigiu e em seguida fixou o rito do embarque? Uma coisa pelo menos é certa: a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu.

Já sob o disfarce de um louco, Tristão, outrora, tinha-se deixado jogar por marinheiros nas costas da Cornualha. E quando se apresenta no castelo do Rei Marcos ninguém o reconhece, ninguém sabe de onde vem. Mas seus propósitos são muitos estranhos, familiares e longínquos; conhece demasiado os segredos do notório para não ser de um outro mundo, bem próximo. Não vem da terra sólida, com suas sólidas cidades, mas sim da inquietude incessante do mar, desses caminhos desconhecidos que escondem tantos estranhos saberes, dessa planície fantástica, avesso do mundo. Isolda é a primeira a saber que esse louco é filho do mar, e que marinheiros insolentes o jogaram ali, signo da desgraça: "Malditos sejam os marinheiros que trouxeram este louco! Por que não o jogaram ao mar?"^37 E várias vezes no decorrer dos tempos o mesmo tema reaparece: entre os místicos do século XV ele se tornou o motivo da alma-barca, abandonada no mar infinito dos desejos, no campo estéril das preocupações e da ignorância, entre os falsos reflexos do saber, no meio do desatino do mundo — barca prisioneira da grande loucura do mar se não souber lançar sólidas âncoras, a fé, ou esticar suas velas espirituais para que o sopro de Deus a leve ao porto^38. Ao final do século XVI, De Lancre vê no mar a origem da vocação demoníaca de todo um povo: o sulco incerto dos navios, a confiança apenas nos astros, os segredos transmitidos, o afastamento das mulheres, a imagem enfim dessa grande planície perturbada fazem com que o homem perca a fé em Deus bem como todas as ligações sólidas com a pátria; ele se entrega assim ao Diabo

36 Esses temas são estranhamente próximos do tema da criança proibida e maldita, encerrada numa barquinha e entregue às ondas que a levam para um outro mundo — mas para esta há, depois, o retorno à verdade. 37 Tristan et Lseult, ed. Bossuat, pp. 219-222. 38 Cf. entre outros TAUBER, Predigter, XLI.

Bobo assume cada vez maior importância^43. Ele não é mais, marginalmente, a silhueta ridícula e familiar^44 : toma lugar no centro do teatro, como o detentor da verdade — desempenhando aqui o papel complementar e inverso ao que assume a loucura nos contos e sátiras. Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade; na comédia em que todos enganam aos outros e iludem a si próprios, ele é a comédia em segundo grau, o engano do engano. Ele pronuncia em sua linguagem de parvo, que não se parece com a da razão, as palavras racionais que fazem a comédia desatar no cômico: ele diz o amor para os enamorados^45 , a verdade da vida aos jovens^46 , a medíocre realidade das coisas para os orgulhosos, os insolentes e os mentirosos^47. As antigas festas de loucos, tão consideradas em Flandres e no Norte da Europa, não deixam de acontecer nos teatros e de organizar em crítica social e moral aquilo que podiam conter de paródia religiosa espontânea.

Igualmente na literatura erudita a Loucura está em ação, no âmago mesmo da razão e da verdade. É ela que embarca indiferentemente todos os homens em sua nau insensata e os destina à vocação de uma odisséia comum (Blauwe Schute de Van Oestvoren, a Narrenschiff de Brant); é dela o império maléfico que Murner conjura em sua

Narrenbeschwörung; é ela que está ligada ao Amor na sátira de Corroz Contre Fol Amour ou que está em litígio com ele para saber qual dos dois vem primeiro, qual dos dois torna o outro possível, conduzindo-o à sua vontade, como no diálogo de Louise Labé, Débat de folie et d'amour. A Loucura também tem seus jogos acadêmicos: ela é objeto de discursos, ela mesma sustenta discursos sobre si mesma; é denunciada, ela se defende, reivindica para si mesma o estar mais próxima da felicidade e da verdade que a razão, de estar mais próxima da razão que a própria razão. Wimpfeling redige o Monopolium Philosophorum^48 e Judocus Gallus o Monopolium et

43 Na Sottie de Folle Balance, quatro personagens são «loucos»: o fidalgo, o mercador, o lavrador (isto é, toda a sociedade) e a própria Folle Balance. 44 É ainda este o caso na Moralité nouvelle des enfants de maintenant ou na Moralité nouvelle de Charité, onde o Louco é uma das 12 personagens. 45 Como na Farce de Tout Mesnage, onde o Louco imita o médico para curar uma camareira doente por amor. 46 Na Farce des cris de Paris, o Louco intervêm numa discussão entre dois jovens a fim de lhes dizer o que ê o casamento. 47 O Bobo, na Farce du Gaudisseur, diz a verdade toda vez que o Gaudisseur se vangloria. 48 Heidelberg, 1480.

societas, vulgo des Lichtschiffs^49. Enfim, no centro desses jogos sérios, os grandes textos dos humanistas: Flayder e Erasmo^50. Diante de todos esses propósitos, de sua dialética infatigável, diante de todos esses discursos indefinidamente retomados e revirados, uma longa dinastia de imagens, desde Jerônimo Bosch com A Cura da Loucura e A Nau dos Loucos , até Brueghel e sua Dulle Grete; e a gravura transcreve aquilo que o teatro e a literatura já usaram: os temas sobrepostos da Festa e da Dança dos Loucos^51. Tanto isso é verdade que a partir do século XV a face da loucura assombrou a imaginação do homem ocidental.

Uma sucessão de datas fala por si mesma: a Dança dos Mortos do cemitério dos Inocentes data sem dúvida dos primeiros anos do século XV^52 ; a da Chaise-Dieu teria sido composta por volta de 1460; e é em 1485 que Huyot Marchand publica sua Danse Macabre. Esses sessenta anos foram dominados, seguramente, por todas essas imagens zombeteiras da morte. E é em 1492 que Brant escreve a Narrenschiff, cinco anos depois traduzida para o latim. Nos últimos anos do século, Bosch compõe sua Nau dos Loucos. O Elogio da Loucura é de 1509. A ordem da sucessão é clara.

Até a segunda metade do século XV, ou mesmo um pouco depois, o tema da morte impera sozinho. O fim do homem, o fim dos tempos assume o rosto das pestes e das guerras. O que domina a existência humana é este fim e esta ordem à qual ninguém escapa. A presença que é uma àmeaça no interior mesmo do mundo é uma presença descarnada. E eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. Da descoberta desta necessidade, que fatalmente reduzia o homem a nada, passou- se à contemplação desdenhosa deste nada que é a própria existência. O medo diante desse limite absoluto da morte interioriza-se numa ironia contínua; o medo é desarmado por antecipação, tornado irrisório ao atribuir-se-lhe uma forma cotidiana e dominada, renovado a cada momento no espetáculo da vida, disseminado nos vícios,

49 Estrasburgo, 1489. Estes discursos retomam, num tom sêrio, os sermões e discursos bufos pronunciados no teatro, como o Sermon joyeux et de grande value é tous les fous pour leur montrer é sages devenir. 50 Moria Rediviva, 1527; Elogio da Loucura, 1509. 51 Cf. por exemplo uma festa dos loucos reproduzida em BASTELAER (Les Estampes de Brueghel, Bruxelas, 1908), ou a Nasentanz que se pode ver em GEISBERG, Deutsche Holzsch, p. 262. 52 Segundo o Journal d'un Bourgeois de Paris: «No ano de 1424, fez-se uma dança macabra no cemitério dos Inocentes», citado em E. MALE, L'Art religieux de la fin du Moyen Age, p. 363.