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Tipologia: Provas
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Leonardo Gonçalves Juzinskas Procurador da República. Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Rodrigo Santa Maria Coquillard Ayres Indigenista Especializado da Funai. Pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj). Nós somos a terra. Somos indissociáveis dela. Não queremos terra para gerar lucro, mas para garantir a nossa existência. Sonia Guajajara Resumo: Este estudo problematiza a tese do marco temporal e as suas contradições, posição abraçada pelo Supremo Tribunal Federal em importantes julgados. Atenta, em primeiro lugar, para o instituto do indigenato e para a trajetória da política indigenista do Estado brasileiro, a fim de compreender o contexto em que ocorre a adoção desse posicionamento por parte do tribunal, com atenção especial para as suas consequências. Procura demonstrar, a partir da ordem constitucional, a inconsistência do marco temporal de 1988 bem como a do caráter extremamente restritivo atribuído ao conceito de renitente esbulho, que produzem os efeitos deletérios de banalizar e catalisar violações de direitos contra os povos indígenas no Brasil. Palavras-chave: Marco temporal. Renitente esbulho. Indigenato. Terras indígenas. Demarcação.
Abstract: This paper discusses the time frame thesis and its contra- dictions, a position conducted by the Brazilian Supreme Court in important claims. Attends, first of all, to the institute of indigen- ism and to the trajectory of the indigenous policy of the Brazilian State, in order to understand the context in which the Court assets this guidance, concerning specially consequences. It seeks to dem- onstrate, from the constitutional law, the inconsistency of the 1988 time frame, as well as of the extremely restrictive character given to the concept of reluctant disseisin, which produce the deleteri- ous effects of trivializing and seizing the rights of the indigenous peoples in Brazil. Keywords: Time frame. Reluctant disseisin. Indigenate. Indigenous lands. Demarcation. Sumário : 1 Introdução. 2 Os povos indígenas e o Estado bra- sileiro. 2.1 O indigenato. 2.2 O novo paradigma constitucional. 3 O Supremo Tribunal Federal e as terras indígenas. 3.1 A tese do marco temporal. 3.2 O esbulho possessório indígena sob a ótica constitucional e transnacional. 4 Conclusão. 1 Introdução A questão indígena, infelizmente, ainda é uma chaga aberta na sociedade brasileira. A partir da chegada dos europeus, a vida das populações originárias foi radicalmente afetada, resultando em um grande genocídio que dizimou povos e culturas por completo, muitas vezes sem deixar rastros. É imensurável o tamanho da dívida que o Estado brasileiro possui para com os indígenas sobre- viventes, que seguem resistindo frente às pressões e aos avanços da chamada civilização sobre os seus modos de viver e – principal- mente – sobre as suas terras. Não por acaso, a terra é o elemento central da questão indí- gena, razão de tensões e conflitos em todo o País. Em 1988, a Constituição inaugurou uma nova ordem democrática, que pos- sibilitou, com maior efetividade, a garantia dos direitos indíge- nas. Com as demarcações de terras, esses procedimentos passaram a ser judicializados por aqueles que se sentiram prejudicados, o que
em 305 etnias e são falantes de 274 línguas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2012, p. 85-90), havendo dezenas de referências a índios não contatados, em situação de isolamento. Houve um prolongado extermínio. Os povos originários sofreram todos os tipos de violência desde os primeiros contatos com os europeus. “Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais. Depois, pela dizimação através de guerras de extermínio e da escravização” (Ribeiro, 2006, p. 42). Mesmo após os anos de cativeiro, durante todos esses séculos até hoje, os povos indígenas seguem sofrendo com os ata- ques aos seus direitos mais básicos, e é a espoliação de suas terras o elemento central dessa tragédia. As primeiras referências ao direito dos índios às terras por eles habitadas se deram no século XVI, com destaque para o Alvará Régio de 1680, editado pela Coroa portuguesa, que reconhece a posse delas. A partir desse reconhecimento expresso, ganha con- torno o instituto do indigenato, “fonte primária e congênita da posse territorial” pelos indígenas (Silva, 2006, p. 855). Relaciona-se a um direito originário, anterior e precedente a qualquer outro, devendo ser declarado por parte do Estado. Vale transcrever, neste ponto, um trecho do Alvará Régio de 1680 (Portugal, 1680): E para que os ditos Gentios que assim decerem e os mais que ha de prezente milhor se conservem nas Aldeas, Hei por bem que sejão senhores de suas fasendas como o são no Certão sem lhe poderem ser tomadas nem sobre elles se lhes fazer molestia, e o Governador com parecer dos ditos Religiosos assignará aos que descerem do Certão logares convenientes para nelles lavrarem e cultivarem e não poderão ser mudados dos ditos logares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro ou tributo algum das ditas terras, ainda que estejão dadas em sesmaria a pessoas particulares por que na concessão destas se reservaria sempre o prejuiso de terceiro, e muito mais se entende e quero se entenda ser reservado o prejuiso e direito dos Indios primarios e naturaes Senhores dellas. Por conseguinte, desde o segundo século da colonização já existe legislação que, pelo menos em tese, garante o direito origi- nário dos índios às terras por eles habitadas, dando forma ao ins-
tituto do indigenato. Perrone-Moisés (1998, p. 119), ao analisar a legislação indigenista do período colonial, encontra vários diplo- mas legais que, de uma forma ou de outra, já se referiam a esse direito imprescindível para a sobrevivência dos povos indígenas: As terras das aldeias são garantidas aos índios desde o início. A expressão “senhores das terras das aldeias, como o são na serra”, declaração dessa garantia, aparece pela primeira vez no Alvará de 26/7/1596 e será retomada nas Leis de 1609 e 1611. Várias Provisões tratam da demarcação (presente desde o Alvará de 26/7/1596) e garantia de posse dessas terras (p. ex.: Provisão de 8/7/1604, Carta Régia de 17/1/1691, Diretório de 1757, pars. 19, 80). Esse reconhecimento prossegue no chamado Diretório dos Índios, por meio de uma lei editada em 1755, na administração do Marquês de Pombal, que reformula a política indigenista do império. Um pouco depois, a Lei n. 601, de 1850, também conhecida como Lei de Terras, foi regulamentada pelo Decreto n. 1.318, de 1854, cujo art. 75 dizia que as terras reservadas para colonisação de indigenas, e por elles distri- buidas, são destinadas ao seu usofructo; e não poderão ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conce- der o pleno gozo dellas. Em termos constitucionais, Silva (2016, p. 4) afirma com proprie- dade que a “Constituição de 1934 foi a primeira a acolher expressamente o indigenato, [...] regra que foi repetida nas demais Constituições”. Percebe-se, então, que o primeiro marco constitucional do instituto seria de 1934, sendo reproduzido pelas constituições que se seguiram, até a atual. Assim, a Constituição de 1988 não pode ser considerada o ponto de partida do direito às terras indígenas, seja por uma perspectiva legal, seja constitucional, como ensina o autor (Silva, 2006, p. 857-858): Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1 º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares,
dade envolvente, a fim de que ele também participasse do chamado progresso e contribuísse para tanto. Essa visão pode ser facilmente verificada por meio da análise do Estatuto do Índio, que considera o índio incapaz, devendo ser tutelado. É sintomático que, em seu art. 1º, o diploma já explicite, sem rodeios, o “propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. Por meio desse cenário, o indígena era visto como um verdadeiro obstáculo ao avanço civilizacional do País, e devia ser integrado e convertido em força de trabalho. Essa era a mentalidade que regia as relações entre o Estado brasileiro e os povos indígenas. Com base em um olhar etnocêntrico, os próprios direitos indí- genas eram vistos sob uma perspectiva não índia, perpetuando enor- mes distorções na sua necessária proteção. Advindo a Constituição Federal de 1988, após muita luta dos movimentos indígenas e da sociedade civil, o cenário jurídico se transformou, rompendo-se com o paradigma assimilacionista, integracionista, em favor de uma diversidade cultural e de um protagonismo dos povos indígenas na defesa de seus direitos, que devem ser lidos de acordo com a sua própria perspectiva. Vale a lição de Vitorelli (2013, p. 30-32): De acordo com o princípio integracionista, os índios são indiví- duos não evoluídos, membros de populações em um estágio menos adiantado que o atingido pelos outros setores da comunidade nacio- nal (art. 1º da OIT/53), ou seja, são um nível inicial do processo da evolução, se comparados com a sociedade não-índia, pelo que o Estado tem a responsabilidade de buscar sua integração a esta, de forma a possibilitar-lhes o desenvolvimento. [...] A nova ordem jurídica, implementada pela Constituição da República de 1988, acolheu a relatividade das culturas, como demonstra a leitura do art. 231, que reconhece e valoriza a diver- sidade cultural, assim como a pluralidade de etnias. Não busca a ordem constitucional assimilar os índios à cultura predominante entre os não-índios, o que denota que o art. 1º do Estatuto do Índio deve ser tido como não recepcionado.
O texto constitucional estabelece um capítulo reservado para a proteção dos índios, explicitando a importância da questão para a nova ordem democrática. Como não poderia ser diferente, a proteção das terras indígenas ganha espaço destacado, reconhecendo-se, no art. 231, aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradi- ções, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Por sua vez, reconhecendo também a histórica e imensurá- vel dívida do Estado para com os povos indígenas, o legislador constituinte ainda determinou, no art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que a União concluísse a demarcação de todas as terras indígenas no prazo de cinco anos da promulgação da Constituição. Infelizmente, o prazo passou longe de ser cum- prido, mas não deixou de servir para evidenciar a robusta preocu- pação do Poder Constituinte no sentido de que as terras indígenas fossem demarcadas e protegidas a tempo. Essa nova postura significa outra relação com as terras indígenas. Se antes imperava uma visão assimilacionista na política indigenista, a própria proteção territorial dava-se com a finalidade de integrar o índio à sociedade envolvente. Por isso, desde a colonização vigorou a figura do aldeamento (Perrone-Moisés, 1998, p. 120), na qual os índios eram estabelecidos em locais fixos, condicionados à cultura do colonizador, em áreas drasticamente menores que as originais: O aldeamento é a realização do projeto colonial, pois garante a conversão, a ocupação do território, sua defesa e uma constante reserva de mão-de-obra para o desenvolvimento econômico da colônia. Como diz o Regimento das Missões de 1686, é preciso “que haja nas ditas aldeias índios, que possam ser bastantes, tanto para a segurança do Estado, e defensas das cidades, como para o trato e serviço dos moradores, e entradas dos sertões”. Pode-se dizer que essa herança dos aldeamentos, até a supera- ção da política indigenista assimilacionista, sobreviveu em relação às terras indígenas. No passado, demarcações ocorreram ignorando-se
Também se posicionou a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua, oportunidade em que esse tribunal internacional afirmou a necessidade de um “mecanismo efetivo de delimitação, demarcação e titulação das propriedades das comunidades indíge- nas, em conformidade com seu direito consuetudinário, valores, usos e costumes” (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2001, p. 86), rejeitando a visão assimilacionista das terras indígenas em favor da diversidade cultural, funcionalizando-se a proteção à propriedade privada. A propriedade serve aos ditames da reprodu- ção física, cultural e espiritual dos povos originários. Uma vez superado esse olhar etnocêntrico, a Constituição Federal de 1988, em total conformidade para com os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, consolida a pro- teção das terras indígenas, direito já reconhecido pelo arcabouço jurídico anterior, com base na perspectiva dos próprios índios. Sem dúvida, isso representa uma importante mudança de paradigma ao sepultar a visão integracionista, mas não pode ser apontado como inaugurador do indigenato, tendo em vista que as terras indígenas são constitucionalmente protegidas desde o texto de 1934. 3 O Supremo Tribunal Federal e as terras indígenas 3.1 A tese do marco temporal Contudo, apesar do indigenato e da transparência trazida pela Constituição, o Supremo Tribunal Federal vem relativizando a proteção do direito indígena à terra em favor de uma valorizada segurança jurídica, utilizando como fundamentação a chamada tese do marco temporal. Essa interpretação parece confrontar diretamente o texto constitucional, tendo em vista que estabelece uma data limite como condicionante de direitos originários, merecendo um estudo mais apurado. É sabido que,em 2003,o SupremoTribunal Federal editou a Súmula n. 650^1 , segundo a qual “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição 1 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Súmula 650. Brasília, 31 out. 2003. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula
Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocu- padas por indígenas em passado remoto”, ou seja, de acordo com o enunciado, as áreas de aldeamentos extintos não são consideradas terras indígenas, sem se estabelecer maior precisão. Em primeiro lugar, mos- tra-se necessário trazer o histórico dessa súmula (Santos Filho, 2005, p. 1), uma vez que não se refere a processos de demarcação: Essa Súmula foi veiculada em razão de provocações da Suprema Corte para pronunciamento acerca de eventual interesse da União Federal na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, em vista do disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. Em diversas ações de usucapião relacionadas a terras situadas em Guarulhos-SP e Santos André-SP, a União sustentava possuir inte- resse na solução do litígio, ao argumento de que a área usucapienda estava encravada em antigo aldeamento indígena, tratando-se, portanto, de bem da União, a teor do disposto no Decreto-Lei 9.760/1946, e no artigo 20, incisos I e XI, da Constituição. Ocorre que, na jurisprudência predominante do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e do Superior Tribunal de Justiça, já estava assentado que o Decreto-Lei 9.760, onde arrolados exaustivamente os bens da União, foi editado sob a égide da Constituição de 1937, e não foi recepcionado pela Constituição de 1988, inexistindo, assim, interesse da União Federal no deslinde da ação de usucapião. Assim, a Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal teve apenas o condão de cristalizar em definitivo os entendimentos estampados em inúmeros julgados proferidos pelos Colendos Tribunal Regional Federal da 3ª Região e Superior Tribunal de Justiça, especificamente quanto a inexistência de interesse da União em ações de usucapião em terras a que se refere o artigo 1º, alínea h, do Decreto 9.760/1946. Embora no precedente tenha se discutido o que deve ser entendido por terra indígena ou não, o fato é que não se tratava de um processo de demarcação, de uma população demandando a terra. A preocupação foi afastar o interesse da União nos casos em que, muito remotamente, uma área tenha sido habitada por =1634. Acesso em: 19 abr. 2018.
própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação da área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Claramente, em uma leitura muito otimista, o tribunal tentou encontrar uma solução salomônica a fim de amenizar o conflito e a insegurança existentes entre povos indígenas e fazendeiros devido à questão fundiária. Em 2013 a decisão foi confirmada, ao ocorrer o julgamento dos embargos de declaração. Na ocasião, os ministros Marco Aurélio Mello e Joaquim Barbosa, sendo vencidos, aco- lheram os embargos, afirmando o último que “o Tribunal traçou parâmetros excessivamente abstratos e completamente alheios ao que foi proposto na ação originariamente. O Tribunal agiu como um verdadeiro legislador”^4. É inequívoco que o tribunal foi, no mínimo, bastante extravagante nessa atitude. É necessário dizer que, segundo o próprio STF, “os fundamen- tos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar”^5. Não obstante, é inegável que foi estabelecido um padrão no tratamento judicial da questão. Os tribunais passaram a seguir os parâmetros desenha- dos, reconhecendo a data da promulgação da Constituição como a 4 Brasil. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Pet 3.388 ED/RR. Embar- gos de declaração. Ação popular. Demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, 23 de outubro de
referência temporal de ocupação para o reconhecimento das terras indígenas, e a questão chegou novamente à Suprema Corte. Esse posicionamento foi confirmado, especialmente, em dois julgados da Segunda Turma do STF, o RMS 29.087/DF e o ARE 803.462-AgR/MS, decididos em 2014. No primeiro caso, der- rubou-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reconhecia a ocupação de uma população Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, expulsa em 1940 das terras por ela habitadas desde a década de 1750, que permaneceu “na região trabalhando nas fazendas, cultivando costumes dos seus ancestrais e mantendo laços com a terra”^6. Para o STF^7 , a mencionada presença não seria suficiente para estabelecer a ocupação tradicional exigida, desca- racterizando-se a terra indígena em favor dos fazendeiros. A tese do marco temporal compreende o conceito de “reni- tente esbulho”, trazido também no caso Raposa Serra do Sol. De acordo com essa visão, para que a terra indígena seja reconhecida, como se disse, os índios deveriam habitá-la quando promulgada a Constituição, salvo se isso não tiver ocorrido “por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”^8. O Supremo Tribunal Federal explicitou essa criação no ARE 803.462-AgR/MS^9 , delimitando as condições que entende cabíveis para a sua caracterização: 6 Brasil. Superior Tribunal de Justiça (1. Seção). MS 14.746/DF. Relatora: Ministra Eliana Calmon. Brasília, 10 mar. 2010. p. 8. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/ revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=952089&num_registro =200902088856&data=20100318&formato=PDF. Acesso em: 19 abr. 2018. 7 Brasil. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). RMS 29.087/DF. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, 16 set. 2014. p. 23. Disponível em: http://redir.stf.jus. br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6937880. Acesso em: 19 abr. 2018. 8 Brasil. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Pet 3.388/RR. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, 19 mar. 2009. Disponível em: http://redir. stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133. Acesso em: 19 abr. 2018. 9 Brasil. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). ARE 803.462-AgR/MS. Terra indígena Limão Verde. Área tradicionalmente ocupada pelos índios (art. 231, § 1º, da Constituição Federal). Marco temporal. Promulgação da Constituição Federal. Não cumprimento. Renitente esbulho perpetrado por não índios: não configura- ção. Relator: ministro Teori Zavascki. Brasília, 9 dez. 2014. p. 1-2. Disponível em:
da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas envia- das em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência da Funai. Essas manifestações formais, esparsas ao longo de várias décadas, podem representar um anseio de uma futura demarcação ou de ocupação da área; não, porém, a existência de uma efetiva situação de esbulho possessório atual. Nesse sentido, como se não bastasse estabelecer um marco tem- poral para os direitos originários reconhecidos pela Constituição, essa posição restringiu de tal forma o renitente esbulho que tornou quase impossível caracterizá-lo. Para o STF, apesar dos protestos formais por ele citados, haveria ocorrido uma tolerância dos indíge- nas ao esbulho, que teriam deixado de reivindicar a terra (Brasil, 2014, p. 15). Mostra-se nítido que essa posição ignora todo o his- tórico de violência sofrida pelos povos indígenas, exigindo-lhes o uso de instrumentos que lhes eram materialmente negados, seja pela existência de um regime ditatorial e uma condição jurídica tutelar, seja pelo extermínio a que estavam submetidos. 3.2 O esbulho possessório indígena sob a ótica constitucional e transnacional A instituição inventiva de um marco temporal para que se analise a ocupação indígena, somada a um conceito extremamente restritivo de renitente esbulho, tem servido, de fato, para que o Estado brasileiro confira legalidade a incontáveis violências ocor- ridas no passado, além de caracterizar uma afronta à Constituição Federal de 1988 e a seus princípios norteadores. Segundo o art. 20, XI, da Constituição, as terras indígenas – aquelas necessárias à reprodução física e cultural dos povos indíge- nas, por eles tradicionalmente ocupadas – são bens da União, ou seja, cria-se aí uma propriedade vinculada ou propriedade reser- vada com o fim de garantir os direitos dos índios sobre ela. Por isso, são terras inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. (Silva, 2006, p. 855). Essa afirmação pode ser comprovada pela leitura do art. 231 e alguns de seus parágrafos, indispensáveis para esse estudo:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, cos- tumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambien- tais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. [...] § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponí- veis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. [...] § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante inte- resse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. Segundo Sarmento (2013, p. 13), “a melhor interpretação da Constituição, sem sombra de dúvidas, é a que qualifica o direito do art. 231 da Constituição como cláusula pétrea”, tendo em vista o inequívoco propósito do constituinte de garantir a máxima efe- tividade aos direitos fundamentais indígenas. Dessa forma, a insti- tuição de um marco temporal como condição para a sua garantia contraria de modo expresso o texto constitucional, praticamente ferindo de morte o conceito de direito originário e congênito. A Constituição, de diversas formas, preocupou-se em não legitimar os esbulhos ocorridos no passado, e isso não se pode negar. A tese criada não reflete sequer um consenso internacional sobre o tema ou uma terceira via na abordagem. Na Latino amé- rica, por exemplo, tem-se o exemplo da interpretação conferida
Ademais, nas palavras de Silva (2016, p. 9), em parecer sobre a questão aqui estudada, a Constituição de 1988 é o último elo do reconhecimento jurídico- -constitucional dessa continuidade histórica dos direitos originá- rios dos índios sobre suas terras e, assim, não é o marco temporal desses direitos. Desse modo, em primeiro lugar, as terras indígenas não podem ser consideradas sob um aspecto puramente cronológico, e, mesmo que o pudessem, não seria o texto constitucional de 1988 que esta- beleceria esse marco. Significa dizer, sem risco de erros, que o marco temporal [...] não se sustenta, seja pela incidência do § 6º do art. 231 da CF/88, pela posse nativa e anímica, seja pelo esbulho praticado face os povos originários. (Cupsinski et al ., 2017, p. 10). Assim, sob nenhum aspecto, a data da promulgação da atual Constituição pode ser utilizada como referência para a ocupação indígena. Essa confusão ocorre, segundo a doutrina, em razão do equí- voco cometido pela tese do marco temporal, que considera a ocupa- ção indígena de acordo com os parâmetros relacionados à posse do direito civil, quando a Constituição trata do indigenato, instituto diverso. Nos termos do parecer elaborado por Silva (2016, p. 17), o conflito nas terras indígenas “não é uma disputa de natureza posses- sória, porque os índios, como observado, não têm uma posse nesse sentido de direito privado”. São, como já se afirmou, direitos ori- ginários e congênitos, que não se subordinam a uma cadeia domi- nial, e a Constituição de 1988 deixou isso evidente. “Não se pode exigir da comunidade indígena que ostente os títulos da terra ou que demonstre a ocupação efetiva e ininterrupta. Os direitos dos índios às suas terras precedem a qualquer outro” (Silva, 2004, p. 145). O problema se agrava quando entra em cena o chamado reni- tente esbulho. Por essa visão, caso os indígenas não estivessem na posse direta da área quando promulgada a Constituição, nem hou- vesse conflito possessório nessa data, não haveria direito à demarcação. Seria como se os índios tivessem tolerado o esbulho ou até abando-
nado o território, abrindo mão dele. De acordo com essa posição, “a teoria a ser aplicada para a solução do caso é a do fato indígena, já que a ocupação deve ser verificada de fato, e não a teoria do indigenato, para evitar uma investigação imemorial da ocupação” (Vitorelli, 2013, p. 220). Não parece ter sido essa a opção do constituinte. O que mais assusta, contudo, é o caráter restritivo conferido pelo STF ao renitente esbulho. Como se viu, o tribunal desprezou uma série de manifestações formais por parte dos indígenas em pro- testo pelo seu território, com um rigor desproporcional, que prati- camente aniquila o direito fundamental daqueles índios esbulhados. Ao contrário disso, “não se pode utilizar de uma interpretação res- tritiva acerca do renitente esbulho, como se a controvérsia judicia- lizada fosse uma disputa possessória individual” (Cupsinski et al ., 2017, p. 13). Sustenta-se que, mesmo utilizando o marco temporal de outubro de 1988, faz-se necessário, pelo menos, que o conceito de renitente esbulho seja interpretado de forma mais alargada, a fim de maximizar a proteção constitucional dos povos indígenas. Se assim não for, ferir-se-á de morte o art. 231 da Constituição Federal (Silva, 2004, p. 150): Os índios não precisam provar que ocupam a terra desde o ano 1500. Eles precisam provar que habitam a terra atualmente e estão sendo esbulhados ou que ocupavam a terra e foram espoliados de seu terri- tório em um passado vivo e palpitante que pode ser reconstituído pela história oral, modo de ocupação e vestígios de sua presença na área. Diante de uma ocupação tradicional atual ou pretérita, os títulos domi- niais são nulos e extintos, não produzindo efeitos. Da mesma forma é nulo e não produz efeitos qualquer ato que visa à ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas tradicionais (art. 231, § 6º, Constituição Federal de 1988). Tal dispositivo constitucional reforça o conceito de direito originário que os índios têm sobre suas terras tradicionais. O direito originário precede a qualquer outro. Se os índios foram expul- sos da terra, convencidos a sair ou removidos, no momento de tal ato eles ocupavam a terra em caráter permanente, uma vez que os índios não abandonaram suas terras espontaneamente. Ao saírem da terra por qualquer desses motivos, os índios não perdem a posse sobre elas, porque essa posse é permanente e impres-