Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

LEAL, Victor Nunes-Coronelismo, Enxada e Voto, Notas de estudo de História

Adobe Acrobat Document - 2,17MB -01/05/15

Tipologia: Notas de estudo

2015

Compartilhado em 23/06/2015

antonio-bezerra-moraes-9
antonio-bezerra-moraes-9 🇧🇷

4.9

(22)

51 documentos

1 / 180

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64

Pré-visualização parcial do texto

Baixe LEAL, Victor Nunes-Coronelismo, Enxada e Voto e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity!

Sumário

Prefácio à sétima edição Prefácio à terceira edição Prefácio à segunda edição

  1. Indicações sobre a estrutura e o processo do “coronelismo”
  2. Atribuições municipais
  3. Eletividade da administração municipal
  4. Receita municipal
  5. Organização policial e judiciária
  6. Legislação eleitoral
  7. Considerações finais

Notas Bibliografia citada Sobre o autor

Prefácio à sétima edição

José Murilo de Carvalho

DÍVIDA

Devo, indiretamente, a Victor Nunes Leal o interesse pelo tema do coronelismo. Segundo seu próprio depoimento, ele recusou o convite para redigir o verbete sobre o assunto, que lhe fora feito pelos responsáveis pelo Dicionário Histórico-Biográĕco Brasileiro organizado pelo CPDOC/FGV e publicado em

  1. Alegou na ocasião falta de competência, por desatualização, em mais uma de suas costumeiras e exageradas manifestações de modéstia. Como segunda opção, fui eu convidado para a tarefa. Ganhei eu, perdeu o Dicionário, perderam os leitores.

RECEPÇÃO DE CORONELISMO

O primeiro contato que tive com Victor Nunes se deu por ocasião de homenagem que lhe prestamos em 1980 no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), que então inaugurava o primeiro programa de doutorado em Sociologia e Política organizado no Brasil nos moldes do novo sistema de pós-graduação implantado ao ĕnal da década de 1960. Na ocasião, ao responder a saudação que lhe ĕz, Victor Nunes voltou pela primeira e última vez ao tema de seu livro que saíra em 1948, para efeito de defesa de tese, ainda com o título original de O município e o regime representativo no Brasil: contribuição ao estudo do coronelismo. Intitulou sugestivamente sua resposta, publicada na revista do Instituto, “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Sua principal preocupação na ocasião foi responder a alguns críticos, sobretudo a Eul-soo Pang, que, segundo ele, não tinham compreendido seu conceito de coronelismo. De fato, a maioria dos autores que empregaram o conceito usado por ele, sem distinção entre críticos e admiradores, identiĕcava coronelismo com mandonismo local. Era o caso do crítico Eul-Soo Pang, mas também do admirador Barbosa Lima Sobrinho, que por insistência do autor escreveu o prefácio à segunda edição do livro feita pela Alpha Omega em 1975 (a primeira saíra em 1949, já com o

nacionais, expresso em polarizações como casa-grande versus Estado (Gilberto Freyre), feudalismo versus capitalismo (Partido Comunista), litoral versus sertão (Euclides da Cunha), eleição versus representação (Gilberto Amado), e, sobretudo, público versus privado (Nestor Duarte, Sérgio Buarque de Holanda). A divergência mais clara de Coronelismo era com A ordem privada e a organização política nacional (1939) de Nestor Duarte, que separava poder público e ordem privada. Sempre tive a impressão de que, em sua tese, Victor Nunes estava polemizando com Nestor Duarte. Ele negava tal intenção. Mas, talvez por sua conhecida elegância, talvez por receio da banca, ou pelas duas coisas, ele não polemizou abertamente com ninguém na tese. Mesmo que o tivesse feito no caso de Nestor Duarte, diĕcilmente o reconheceria. Victor Nunes não ignorava nem negava as tensões envolvidas nas polarizações, mas buscou entendê-las como relações quase diria dialéticas. O coronel e o governador obedeciam a dinâmicas distintas, mas interagiam, imbricavam-se, invadiam reciprocamente seus territórios, corroendo e alterando no processo a própria natureza do público e do privado. Está aí, parece-me, uma proposta de interpretação de poder explicativo muito maior do que o das dicotomias, em que pese a atração analítica exercida por elas. E m Coronelismo Victor Nunes superou também os determinismos que ainda povoavam nosso pensamento social, alguns deles herdados do século XIX. Havia, entre outros, juridicismos (Alberto

Torres), economicismos (Caio Prado), culturalismos (Gilberto Freyre), racismos (Oliveira Viana), psicologismos (Paulo Prado). Victor Nunes combinou diversas abordagens, sem atribuir a apenas uma variável caráter explicativo exclusivo e excludente. Reconhece uma estrutura agrária e uma classe proprietária que se inserem na economia de exportação. Mas o coronel, operador dessa economia, é também um ser profundamente político que interage com o Estado, servindo-o e dele se servindo, perdendo lentamente no processo sua hegemonia. No esquema analítico do autor entram fatores econômicos, políticos e sociais, além dos tradicionais aspectos jurídicos e ĕnanceiros. Entra ainda grande sensibilidade para a dimensão histórica, que o faz caracterizar o fenômeno do coronelismo como sistema restrito a um momento especíĕco de nossa vida política. Com isso, evita as análises genéticas que viam na história do país, em sua cultura e sua história, permanências que o condenavam à eterna infantilidade democrática. A essas virtudes, o livro acrescentava um traço metodológico que poderíamos chamar de moderno, surgido após a introdução das ciências sociais em nosso sistema universitário. Ele pode ser deĕnido como combinação do tratamento teórico e conceitual com cuidadosa pesquisa empírica. Em Coronelismo, a preocupação com a precisão conceitual e o esboço de uma teoria que poderíamos chamar de médio alcance (o sistema coronelista) combinam-se com o recurso aos dados quantitativos do IBGE, disponíveis

no censo de 1940 e nos anuários, aos Anais e Diário do Congresso, e aos jornais da época e às pesquisas sociológicas e antropológicas que começavam a ser produzidas. Educado na tradição bacharelesca, propensa ao juridicismo e ao ensaísmo, sem treinamento ou estada no exterior de que se beneĕciaram, por exemplo, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, sem recorrer a autores estrangeiros, cujas línguas aparentemente não dominava, “o rapazinho caipira de Carangola”, como certa vez se deĕniu, no esforço de se tornar titular da cátedra de Ciência Política da FNFi, produziu o primeiro trabalho moderno de

ciência política em nosso país.

GÊNESE DE CORONELISMO

Mais difícil do que apontar as inovações do livro é traçar sua gênese, isto é, o caminho percorrido pelo autor em sua produção. Diante da escassez de informações fornecidas por ele, tenho que me restringir a pequenas indicações e algumas hipóteses. Victor Nunes formou-se em 1936, aos 22 anos, bacharel em direito pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, instituição resultante da fusão, em 1920, da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais com a Faculdade Livre de Direito da Capital Federal. Embora exercendo simultaneamente, por necessidade ĕnanceira, trabalho jornalístico, não pode não ter sido inĘuenciado pela forte presença na faculdade de professores de esquerda, como Leônidas de Resende, contratado em 1932, depois de derrotar em concurso Alceu Amoroso Lima; Hermes Lima, que impôs em 1933 outra derrota ao líder católico; e Edgardo de Castro Rebelo, de geração mais antiga. Hermes Lima tem quatro textos citados em Coronelismo, e foi posteriormente colega de Victor Nunes no Supremo Tribunal Federal, tendo sido, com este e Evandro Lins e Silva, aposentado compulsoriamente em 1969. Edgardo de Castro Rebelo também é citado na tese. Na Faculdade de Direito, segundo depoimento de Evaristo de Moraes Filho, todos os estudantes eram “mordidos” pelo marxismo. Coronelismo foi criticado, em chave marxista, por Paul Cammack, sob a alegação de que o autor via os coronéis apenas como atores políticos, não como produtores, quer dizer, não como classe social. No entanto, está claro no texto que eles constituem uma classe social, e uma classe dominante, e que foi seu enfraquecimento como produtores que os levou a acordo com o poder estatal. Há aí, sem dúvida, indicação da mordida marxista. A visão de classe não poderia ter tido origem no círculo de amizades do autor, composto de advogados, jornalistas e homens de governo. Muito menos da Faculdade Nacional de Filosoĕa, onde predominavam professores integralistas, como Álvaro Vieira Pinto e iers Martins Moreira, ou tidos como simpatizantes, como Santiago Dantas, além de militantes católicos conservadores, como Alceu Amoroso Lima. A mordida marxista pode lhe ter inoculado também um gostinho por grandes esquemas interpretativos. Depois de trabalhar com Gustavo Capanema no Ministério da Educação, Victor Nunes foi, por indicação do ministro, contratado em 1943 pela Faculdade Nacional de Filosoĕa, criada em 1939. Substituía o professor André Gross, que retornara à França, como catedrático interino da disciplina de Ciência Política. A titularidade na cátedra exigia defesa de tese. Victor Nunes pôs-se logo a trabalhar intensamente na preparação das aulas e na feitura da tese. Foram, em suas próprias palavras, tempos de “angústia verdadeira”. Nas horas vagas, assistia a concursos para estudar a tática dos arguidores. Não há comentários seus sobre a convivência com os colegas e sobre a possível inĘuência sobre seu trabalho. Comentou uma vez apenas sobre Manuel Bandeira, poeta de sua admiração, mas que nada tinha a ver com coronelismo. Depoimentos da época aĕrmam que, na verdade, havia pouco contato entre professores. Contato ou não, alguns dos colegas são citados na tese. Um deles é L. A. Costa Pinto, professor assistente da cadeira de sociologia. Dele, Victor Nunes aproveitou os estudos sobre a sociedade rural brasileira e sobre as lutas de família. Outro é Jorge Kingston, catedrático de estatística que escrevera sobre a concentração da propriedade rural em São Paulo. Alceu Amoroso Lima, professor de literatura brasileira, e Djacir Menezes, de economia política, também aparecem na bibliograĕa. Mas não parece que a citação desses colegas indicasse real inĘuência. O mais provável é que apenas tenham fornecido suporte

sétima, do livro. No entanto, não quero terminar sem acrescentar razão adicional. Preencher os requisitos para ocupar a cátedra foi o motivo imediato do trabalho. Há na tese e, por sinal, em toda a obra e na vida pública de Victor Nunes, uma como metateoria, um valor mais alevantado, que vai expresso no título original, rebaixado, por razões editoriais, a subtítulo “O município e o regime representativo no Brasil”. Para além do coronelismo que, por sua deĕnição, já era coisa do passado, havia a preocupação maior com a implantação no Brasil de um autêntico sistema representativo, isto é, da democracia política. Escrevendo ao ĕnal do Estado Novo, quando renasciam as esperanças de avanços democráticos, Victor Nunes via no coronelismo muito mais do que um tema de pesquisa. Via nele um dos sintomas do falseamento da representação. O momento político lhe transmitia ainda otimismo em relação ao futuro da democracia, distanciando-o da maioria dos pensadores da década de 1930. Estes, ou não acreditavam na democracia, caso de defensores do Estado Novo como Francisco Campos, Azevedo Amaral, Oliveira Viana, ou eram céticos a seu respeito, como Sérgio Buarque de Holanda. Victor Nunes, embora tivesse sido funcionário do Estado Novo, também se afastou dos defensores do regime ao não colocar nas mãos do Estado a liderança de nosso processo de modernização. De acordo com suas premissas, o processo dependia da transformação do mundo rural, da urbanização, da libertação, pela educação e pela abertura do mercado de trabalho, da massa dos trabalhadores e pequenos proprietários rurais do domínio econômico e político dos coronéis. A democratização plena, podemos acrescentar hoje, só será alcançada quando estiver plenamente constituído um corpo de cidadãos independentes capaz de dirigir os governos pela representação. Longo caminho foi percorrido, mas o alvo ainda está longe de ser atingido, na medida em que a plenitude da cidadania ainda não chegou a todos os recantos e a toda a população do país. Enquanto isso não se veriĕcar, os valores democráticos que informaram Coronelismo continuarão vivos a nos desaĕar com novas tarefas. Victor Nunes mirava mais além que sair, analiticamente, do igarapé do município para o mar alto da vida nacional, mirava o mundo dos valores universais da liberdade e da democracia. Em 1969, pagou com a aposentadoria compulsória a fidelidade a esses valores. Como observou Orlando Carvalho, esse universalismo de Victor Nunes, por surpreendente que a aĕrmação possa parecer, seria um traço comum aos mineiros. É o que expressam os versos de um colega do autor de Coronelismo no Ministério da Educação, também mineiro de uma cidadezinha do interior: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”.

Janeiro de 2012

Prefácio à terceira edição

Alberto Venâncio Filho

Habent sua fata libelli. “Os livros têm o seu destino.” O livro Coronelismo, enxada e voto — O município e o regime representativo no Brasil foi publicado pela primeira vez como tese universitária para provimento da cadeira de política da Faculdade Nacional de Filosoĕa da Universidade do Brasil em 1948, sob o título O município e o regime representativo no Brasil — Contribuição ao estudo do coronelismo, e divulgado com o novo título em 1949 em edição comercial. Alcançando grande sucesso, só em 1975 foi reeditado, tendo ainda merecido em 1977 uma edição em inglês pela Cambridge University Press, com o título de Coronelismo: municipality and representative government in Brazil. Desde 1975 desapareceu das livrarias. Ao contrário de Os Sertões de Euclides da Cunha, publicado em 1902 e hoje na 37a edição, Coronelismo, enxada e voto ĕcou inacessível por esse longo tempo, e se equipara, assim, a outra grande obra de historiograĕa brasileira: Dom João VI no Brasil, de Oliveira Lima, publicada em 1908, com segunda edição em 1945, e só recentemente reeditada. A presente reedição de Coronelismo, enxada e voto reproduz integralmente o texto original. O autor, para a segunda edição, nada quis alterar, considerando que o livro descrevia com ĕdelidade um momento da vida política brasileira, e que poderia permanecer como exemplo desse momento. Essa segunda edição de 1975 foi feita quase à sua revelia. Em carta de 2 de agosto de 1974 a um amigo, diria: “É possível mesmo que eu me anime a reler meu livro, o que não ĕz por inteiro, desde então, como não li até hoje a tradução inglesa”. A obra está ligada ao magistério de Victor Nunes Leal, professor de política como atividade preponderante, desde 1949 até 1956. Naquele ano foi designado chefe da Casa Civil do presidente Juscelino Kubitschek e depois nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal em 1960, quando se transferiu para Brasília; injustamente aposentado em 1969, voltou a exercer a advocacia até falecer, em 1985. É necessário situar o livro no exato contexto, bem como mencionar as origens do autor e as circunstâncias que o levaram ao exercício da cadeira de política e à preparação da tese que se converteu no livro famoso. Nascido em Carangola, Minas Gerais, em 1914, ĕlho de agricultor tornado comerciante com

Outra fase de esforço mais intenso, em que a advocacia foi sacriĕcada, veio com os estudos para elaboração da tese de concurso. Eles me consumiram três anos, acrescidos de seis meses, a contar do edital de concurso, para redação, revisão e impressão do livro.

Victor Nunes Leal explicaria mais de uma vez a escolha do tema. Em primeiro lugar, preparando-se para o concurso, assistiu a várias arguições, e o impressionou o fato de os examinadores sempre questionarem as generalizações teóricas, quase sempre apressadas. Assim, disse:

Evitei na minha tese de concurso temas teóricos, procurando compreender com o máximo de objetividade as características de um fenômeno da nossa realidade política — coronelismo — em suas conexões com o funcionamento da federação brasileira, com ênfase especial no relacionamento dos Municípios com os Estados.

A banca de concurso foi constituída de dois professores da casa, Djacir Menezes, de economia política, recentemente concursado, e Josué de Castro, de geograĕa humana, e três professores de fora — de direito —, Pedro Calmon, Bilac Pinto e Oscar Tenório. Na nova instituição de ensino, por inĘuência dos professores de outras faculdades, especialmente de direito, o concurso se ressentia ainda do velho estilo coimbrão, em que o examinador procurava destruir a tese para aĕnal lhe dar a nota máxima. O concurso não discrepou do sistema, em que mais aguerrido se mostrou Bilac Pinto, amigo e colega de Leal na redação da Revista de Direito Administrativo, manifestando dúvidas sobretudo na metodologia e na utilização dos dados estatísticos; mas aĕnal a banca conferiu o grau máximo. Em carta ao amigo que lhe ofertara um volume do Coronelismo, encontrado em sebo com as anotações de Oscar Tenório, comentaria:

O seu achado me repõe, como numa fotograĕa esmaecida, no salão da velha Faculdade Nacional de Filosoĕa, com livros enĕleirados à minha frente e ao lado uma ampla mala cheia de outros que então nem cheguei a consultar. Voltam-me os calafrios das críticas mais contundentes ou mais difíceis de responder. Ouço de novo as palavras iniciais de Pedro Calmon: “Disse Capistrano de Abreu de Pereira da Silva que ninguém poderia ignorar completamente a história do Brasil sem ter lido sua obra. Também lhe digo, professor Victor Nunes Leal, que ninguém poderá ignorar completamente o que seja o coronelismo sem ter lido sua tese”. Quase afundei com a risada que sacudiu o auditório, mas, pronto, me preparei para pagar na mesma moeda, quando me coube responder: “Ilustríssimo Professor Pedro Calmon. A admiração e o respeito de que é merecedor não me impedem de lhe devolver, com a devida vênia, o dito de Capistrano de Abreu. Ninguém poderá ignorar completamente o que seja a minha tese sem ter ouvido a arguição que V. Exa. acaba de fazer”. Os risos da assistência compensaram meu desalento inicial, mas a chamada de cada um dos examinadores reabria minha ansiedade.

Exerceu até 1960 o ensino de política na Faculdade Nacional de Filosofia. Diria com modéstia:

Nunca passei de um professor dedicado e sério, mas discreto e sem pretensões, pela minha própria condição de autoridade, pela pouquíssima familiaridade com as línguas estrangeiras, pela carência de bibliograĕa e pela nenhuma frequência a cursos de pós- graduação, seja no exterior, seja no Brasil.

Comentaria ainda:

O penoso sacrifício quando acumulei a cátedra com as funções de chefe da Casa Civil da Presidência da República: eu precisava reunir dois salários para cobrir minhas despesas acrescidas, já que a mordomia da época se limitava ao carro oĕcial com motorista e gasolina. Consegui na faculdade o primeiro horário, bem cedo, mas assim mesmo, ao sair da classe frequentemente encontrava recados do infatigável madrugador que era o presidente Juscelino.

A tese de concurso, publicada em edição comercial com o título sugerido por um amigo, o publicitário Emil Farhat, obteve grande êxito, por se tratar de um trabalho pioneiro que apresentava metodologia nova. O historiador Francisco Iglesias foi o primeiro a destacar-lhe a importância, em resenha publicada n a Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, em outubro de 1950. Embora acoimasse o título de um tanto sensacionalista, “sugerindo propaganda ou polêmica”, comenta:

Trata-se de obra objetiva feita de conformidade com o princípio que deve presidir a pesquisa social, sem qualquer intromissão de julgamento ou ponto de vista comprometido. O autor só se preocupou por compreender uma pequena parte de nossos males, “deixando a outros” a tarefa de dedicar o remédio, mas o ensaísta mostra nesse estudo a informação de que é dotado, ampla e sólida. Com boa linguagem, adota planos positivos de bons resultados e que se deve louvar, sobretudo com clareza. O texto contém quase sempre apenas o essencial.

E conclui:

Com esse livro, Victor Nunes Leal enriquece a sua obra de jurista e cientista político, ao mesmo tempo que dá valiosa colaboração aos estudos de história de política entre nós.

Os comentários elogiosos se sucedem. Basílio de Magalhães, que colaborara com nota sobre a etimologia da palavra coronelismo, diria em carta:

A sua contribuição ao estudo do coronelismo vai certamente marcar época em nossa escassa literatura histórica-jurídica e político- social. Você aproveitou bem todo material que se lhe deparou, comentando muito apropositadamente e em muitas vezes com bastante originalidade.

Fernando de Azevedo afirmaria que:

É um trabalho excelente sobre todos os aspectos: bem construído, bem pensado e documentado. É trabalho que projetou uma luz viva com suas análises seguras e penetrantes, tratando-se de contribuição de primeira ordem para inteligência da vida política do país.

Hélio Viana aĕrmaria que o livro constitui, “no gênero, a maior e melhor pesquisa até hoje feita em nosso país”. Francisco de Assis Barbosa diria anos depois que

lecionando inicialmente introdução à ciência política e, posteriormente, direito constitucional, mas sem a dedicação que os encargos da magistratura lhe obstavam. Na década de 1950, escreveria o importante trabalho A divisão de poderes no quadro político da burguesia, em que analisa a concepção do Estado individualista e liberal, baseado na doutrina de Montesquieu, contrapondo-a à sociedade moderna, com os problemas de urbanização e da tecnologia. Exporia que:

A teoria da divisão dos poderes está condenada no mundo contemporâneo, pois nasceu para atender a um reclamo profundo da consciência humana, que é a proteção das liberdades do homem e do cidadão. O problema, pois, que se coloca nos dias de hoje é o de descobrir uma nova técnica em proteção das liberdades humanas.

E conclui:

Este o grande desaĕo a que o nosso tempo lança os homens de estudo e de ação: o desaĕo a sua capacidade de organizar adequadamente a felicidade humana.

Em 1958 proferia aula inaugural na Faculdade de Filosoĕa sob o título “Objeto da ciência política”, que é síntese expressiva sobre a matéria. Pode-se aĕrmar que o livro de Victor Nunes Leal foi responsável pelo interesse que o tema do coronelismo passou a desfrutar. Em 1965, dois jovens intelectuais pernambucanos, Marcos Vinicius Vilaça e Roberto Cavalcante de Albuquerque, publicavam o livro Coronel, coronéis, análise do processo de ruptura da sociedade agropecuária do Nordeste brasileiro feita através de pesquisa de quatro casos recentes de domínio econômico social e político do coronelismo, os coronéis Chico Romão, José Albino, Chico Heráclio e Veremundo Soares. No ano seguinte, Eul-Soo Pang publicava em inglês o volume traduzido com o título Coronelismo e oligarquias (1889-1934), um estudo do fenômeno do coronelismo na Bahia na Primeira República. E Maria Isaura Pereira de Queiroz trataria do mandonismo na vida política no Brasil. Entretanto, permanecia totalmente esgotado o livro e, quase contra a vontade do autor, que exigiu um prefácio de Barbosa Lima Sobrinho, era editado em 1975 pela editora Alpha Omega, na série Política, dirigida por Paulo Sérgio Pinheiro e com conselho orientador de vários elementos prestigiosos das ciências sociais. No prefácio, (reproduzido nesta edição), dizia Barbosa Lima Sobrinho, que:

o livro de Victor Nunes Leal desde o seu aparecimento passou a valer como um clássico de nossa literatura política. Não é um aglomerado de impressões pessoais, mas uma análise profunda de realidades que aprofundaram suas raízes na organização agrária como produto espontâneo do latifúndio.

Victor Nunes Leal, entretanto, foi sensível à publicação em inglês, solicitada pelo professor Malcom Deas para a Cambridge University Press na série de Estudos Latino-Americanos. No prefácio acentuava- se que o livro “representa um marco divisório dos estudos de ciência política no Brasil, constituindo o

início da fase universitária desses estudos”. Na nota do editor, o professor Malcom Deas apontava que o livro

era também um texto essencial para o estudo do caciquismo no mundo hispânico e mediterrâneo. O material de Victor Nunes Leal é a história do Brasil, as leis do Brasil, mas a investigação modelar oferece orientação e estímulo na área das relações entre os níveis superior de governo e as localidades, as fronteiras do poder público e privado e sua interdependência em solos pouco férteis, seja no Brasil, seja no exterior.

As atividades da magistratura e posteriormente da advocacia não permitiram que Victor Nunes Leal voltasse ao tema; assim, a segunda edição, como a edição inglesa, foi publicada sem nenhuma alteração em relação à edição original. Em 1984, ao receber o título de professor emérito da Universidade de Brasília, declararia que:

à medida que envelheceu o tema em termos acadêmicos, outros estudiosos se preocuparam com ele e de todos os lados vieram críticas. Até hoje não tive tempo nem disposição de as reunir e analisar, numa tentativa de me defender.

De fato, instado insistentemente, não aceitou convite em 1984 para escrever o verbete sobre coronelismo do Dicionário Histórico-Biográĕco Brasileiro organizado pelo Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), em 1984, tarefa de que se desincumbiu

com proficiência o professor José Murilo de Carvalho. Em março de 1980, o Instituto Universitário de Pesquisas no Rio de Janeiro (IUPERJ) promovera

uma homenagem a Victor Nunes Leal. Na ocasião, o professor José Murilo de Carvalho, com o estudo Em louvor de Victor Nunes Leal, homenageou o autor, na inauguração do programa de doutorado do IUPERJ. A escolha se deu no consenso do corpo docente pela contribuição do livro, como “o exemplo de

integridade e coerência, de homem público e de profissional”. Acentuava que o livro tornara-se clássico, o que tem a desvantagem de colocá-lo acima da crítica, impondo-se a leitura que teste novos conhecimentos. Apontava que o Coronelismo foi a primeira obra importante da moderna sociologia política brasileira, não pela temática, pois já fora abordado por vários autores desde o Império, mas pela abordagem e metodologia, e pela quebra do estilo de analisar os fenômenos brasileiros através do estilo dicotômico em polaridades. Por outro lado, avançava na maior integração entre a ciência política e a sociologia, e mesmo a econômica, mostrando a estrutura agrária com o sistema de estratiĕcação social e inserção na economia primária. Um terceiro ponto de inovação era metodológico, com a integração da teoria e da pesquisa. Naquela ocasião, Victor Nunes faria tentativa de explicação do livro, com o expressivo título de “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Agradecendo as referências de José Murilo de Carvalho, que teria revelado compreensão mais profunda do que alguns outros especialistas do tema, procura mostrar que as críticas derivavam de diferença de enfoque do problema e de diferentes conceituações do que seja coronelismo. Mostra que a análise feita por Eul-Soo Pang difere profundamente da abordagem que utilizou e que

Prefácio à segunda edição

Barbosa Lima Sobrinho

Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, foi publicado em 1949, sem indicação do editor, sob a responsabilidade da Revista Forense, que ĕgurava como impressora. Trazia, como primeira nota, uma contribuição preciosa do notável historiador que era Basílio de Magalhães, o qual, tendo casa em Lambari e militando na política de Minas Gerais, conhecera de perto a inĘuência e o poder dos “coronéis”. À guisa de prefácio, procurou analisar o sentido do vocábulo “coronel”, que os dicionários apresentavam como brasileirismo, pela nova acepção com que se apresentara em nosso país, embora traduzindo uma realidade quase universal, como expressão de liderança política. A Guarda Nacional, criada em 1831 para substituição das milícias e ordenanças do período colonial, estabelecera uma hierarquia em que a patente de coronel correspondia a um comando municipal ou regional, por sua vez dependente do prestígio econômico ou social de seu titular, que raramente deixaria de ĕgurar entre os proprietários rurais. De começo, a patente coincidia com um comando efetivo ou uma direção, que a Regência reconhecia, para a defesa das instituições. Mas, pouco a pouco, as patentes passaram a ser avaliadas em dinheiro e concedidas a quem se dispusesse a pagar o preço exigido ou estipulado pelo poder público, o que não chegava a alterar coisa alguma, quando essa faculdade de comprar a patente não deixava de corresponder a um poder econômico, que estava na origem das investiduras anteriores. Recebidas de graça, como uma condecoração, acompanhada de ônus efetivos, ou adquiridas por força de donativos ajustados, as patentes traduziam prestígio real, intercaladas numa estrutura social profundamente hierarquizada como a que costuma corresponder às sociedades organizadas sobre as bases do escravismo. No fundo, estaria o nosso velho conhecido, o latifúndio, com os seus limites e o seu poder inevitável. A presença e a inĘuência do potentado local já estavam registradas em Antonil, na sua justamente famosa Cultura e opulência do Brasil, quando dizia que “o ser senhor de engenho é título, a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”. O próprio Antonil o aproximava da posição dos ĕdalgos, no reino de Portugal. Mas levando a vantagem de apoiar-se a uma base sólida, que era a propriedade territorial, mais do que o favor e as benesses da autoridade régia,

numa fase em que não poucos eram os nobres que decaíam por força da dilapidação de fortunas hereditárias. Alberto Torres estudara de perto a força desses potentados rurais, que ele colocava como eixo de uma “vegetação de caudilhagem”, que em torno dele ia crescendo, como resultante de dependências irresistíveis. E dele é o conceito de que “a base das nossas organizações partidárias é a politicagem local. Sobre a inĘuência dos conselhos eleitorais das aldeias, ergue-se a pirâmide das coligações transitórias de interesses políticos — mais fracos na segmentação do Estado, dependentes dos estreitos interesses locais: tênue, no governo da União, subordinada ao arbítrio e capricho dos governadores”. Mas tendo sempre, como núcleo essencial, o clã rural, ou o potentado, que não raro se enfeitava com a patente de coronel, concedida pelo poder público ou outorgada pelo povo, numa espécie de plebiscito que, pelo fato de ser espontâneo, já dispensava, por si mesmo, o diploma oĕcial e o fardamento das paradas. Coronel por eleição — um fenômeno raro na hierarquia militar, a exemplo daquele herói brasileiro, Abreu e Lima, que parecia ter mais prazer em ser chamado de General das Massas do que de General de Bolívar. O clã rural compõe a parte essencial da sociologia de Oliveira Viana que, inspirado em Le Play, dele fazia a unidade básica de sua doutrinação. O livro de Victor Nunes Leal, desde o seu aparecimento, passou a valer como um clássico de nossa literatura política. Não é um aglomerado de impressões pessoais, mas uma análise profunda de realidades que aprofundaram suas raízes na organização agrária como produto espontâneo do latifúndio. Seu estudo levou em conta a presença do município, assim como o relacionamento com os demais poderes públicos do país, o estadual e o federal. A base do poder vem, senão da propriedade, pelo menos da riqueza. Se o potentado local não possui recursos suĕcientes, não tem como acudir às necessidades de seus amigos e muito menos às despesas eleitorais, que muitas vezes se sente obrigado a satisfazer de seu próprio bolso, embora a criação de partidos políticos tenha concorrido para lhe atenuar os sacrifícios, através do fundo partidário, formado com as subscrições de grandes ĕrmas, interessadas em manter boas relações com os poderes públicos. Eleições sempre se ĕzeram com dinheiro, na base de um rateio, que levava em conta o número de votos arregimentados. Os melhores cabalistas costumavam dividir os Estados em duas zonas, uma a dos comícios, sensíveis à propaganda em praça pública, outra a dos cochichos, na dependência das instruções recebidas dos potentados locais. O que se pode observar, com a expansão dos instrumentos de propaganda, é uma redução considerável da área dos cochichos, em proveito da área dos comícios. Nem sempre, porém, a vida política signiĕcava apenas sacrifício e despesas para o “coronel”. Marcos Vinícius Vilaça e Roberto de Albuquerque, num livro excelente, como observação, 1 revelam que não raro o “coronel” dilatava seus domínios territoriais, à custa de propriedades usurpadas, aos adversários ou aos próprios amigos, pela pressão de cabras, que o “coronel” mobilizava, para criar, no dono de pequenas propriedades, a convicção de que era melhor vendê-las do que abandoná-las, pela impossibilidade de nelas continuarem. No sistema do “coronelismo”, aqueles dois autores conĕrmavam a observação de Victor Nunes Leal, de que o que nele se traduzia era uma hegemonia econômica, social e política, que acarretava, por sua vez, o ĕlhotismo, expresso num regime de favores aos amigos e de perseguições aos adversários. Mas a paixão pela terra cresce tanto que leva o “coronel” a incluir na expansão de sua propriedade as terras dos próprios correligionários, tranquilizando a sua consciência com a avaliação