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CRENÇAS E PRECONCEITOS EM TORNO DA LÍNGUA DE SINAIS E DA REALIDADE SURDA
Tipologia: Resumos
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CRENÇAS E PRECONCEITOS EM TORNO DA LÍNGUA DE SINAIS E DA REALIDADE SURDA
Foi num encontro de sala de aula em meados da já distante década de 1990 que, hoje sei, fui escutado, e o meu ideal precário tomou contornos definidos. Tratava da natureza da linguagem natural humana, me dirigindo a ingressantes no mestrado em inglês da Universidade Federal de Santa Catarina, quando surgiu a questão — fascinante e ainda incrivelmente desconhecida da platéia — de que as línguas de sinais são línguas naturais tão humanas quanto as demais e que não se limitam a um código restrito de transposição das letras do alfabeto. Tive indícios de ter sido escutado logo quando se apresentou diante de mim uma aluna com sua curiosidade, que resulta na presente obra. De um ensaio sobre as questões suscitadas pela discussão na disciplina, ela seguiu para localizar os espaços antes invisíveis na universidade, PEDRO M. GARCEZ celebrado sociólogo Erving Goffman, na madureza de sua obra final, articula o ideal de todo palestrante de que a platéia esteja de fato engajada na escuta do que ele diz pelo que diz, e que assim seja levada bem além do auditório para os cenários e ocasi- ões no mundo onde o tema de que trata se faz vividamente relevante. Além de ser um ideal, esse é ainda um ideal precário, por- que escutar é bem mais que ouvir.
"Nenhuma opinião, verdadeira ou falsa, mas contrária à opinião dominante e geral, estabeleceu-se no mundo instantaneamente e com base numa demonstração lúcida e palpável, mas à força de repetições e, portanto, de hábito" (LEOPARDIA IBRAS É língua." Foi este o título escolhido para a palestra apresentada por uma linguista em um evento cujo público alvo era o estudante do curso de letras. Uma professora que trabalha na área da surdez, mencionando o título, fez o seguinte comentário: "De novo? Achei que essa questão já estava resolvida!" Foi esse episódio que me veio à mente no momento mesmo em que co- mecei a reler este livro, então já rematado, e que me fez recomeçar justamente a partir desse protesto. De fato, o comentário faz sentido, e a sensação é mesmo a de um discurso repetitivo. Ainda é preciso afirmar que LIBRAS é língua? Essa pergunta me faz pensar: na década de 1960, foi conferido à língua de sinais o status linguístico, e, ainda hoje, mais de quarenta anos passados, continuamos a afirmar e reafirmar essa legitimidade. A sensação é mesmo a de um discurso repetitivo. Entretanto, para a grande maioria, trata-se de uma questão alheia, e pode aparecer como uma novidade que causa certo impacto e surpresa: Não adianta, ésempre a mesma coisa. Quando estamos em um evento que fala para quem está fora do meio da surdez, tudo é novidade mesmo! As pessoas ficam espan- tadas quando tomam conhecimento, e para quem está dentro da área o discurso é sempre a mesma coisa, fica esta coisa batida, e nós ficamos nos repetindo... Esse comentário põe em palavras minha própria surpresa. Uma surpresa "de dentro", que reclama também agora essa mesma repetição. O que vemos é que o discurso aparentemente "gasto" faz-se necessário, precisando ser repetido inúmeras vezes para que a constituição social dessa língua minoritária ocorra, ou seja, para chegarmos à legitimação e ao reconhecimento, por parte da sociedade como um todo, de que a língua de sinais É uma língua. Certamente a marca linguística não é a única questão nas discussões sobre a surdez, mas é a legitimidade da língua que confere ao surdo alguma "libertação" e distanciamento dos moldes e representações até então exclusivamente patológicos. Tornar visível a língua desvia a concepção da surdez
como deficiência — vinculada às lacunas na cognição e no pensamento — para uma concepção da surdez como diferença linguística e cultural. Qual é, pois, o objetivo de escrever este livro? Em primeiro lugar, é criar um espaço em que esse tipo de discussão seja pensado. De forma mais geral, o desejo do livro origina-se de reflexões sobre algumas questões relativas à área da surdez, pensando especificamente a relação do ouvinte com esse outro mundo. 0 momento parece oportuno e particularmente pertinente, na medida em que decisões políticas têm propiciado um olhar diferenciado para as minorias linguísticas no Brasil. Percebe-se que os discursos sobre o surdo, a língua de sinais e a surdez, de uma forma ampliada, "abrem-se" para dois mundos desconhecidos entre si: o do surdo em relação ao mundo ouvinte e o do ouvinte em relação ao mundo surdo. 0 conteúdo aqui esboçado pode alcançar diferentes leitores: surdos, ouvintes, leigos, profissionais da surdez, estudantes, professores ou simples- mente curiosos. Várias são as preocupações aqui delineadas. A principal é a de ilustrar falas recorrentes e repetitivas advindas de algumas situações de interação face a face com/entre surdos e ouvintes para trazer à tona algumas crenças, preconceitos e questionamentos em torno da língua de sinais e da realidade surda. Essa discussão é crucial, pois na e através da linguagem estamos constantemente construindo representações, crenças e significados afirmados, consumidos, naturalizados e disseminados na sociedade, nos espaços escolares e familiares, muitas vezes como "normas" e "verdades absolutas”. 0 leitor encontrará neste livro manifestações discursivas organizadas em três capítulos sob forma de perguntas ou afirmações que venho registrando e acumulando — por meio de conversas formais e informais — nas minhas idas e vindas em contextos de ensino de LIBRAS para ouvintes, em eventos acadêmicos e em interações cotidianas. 0 leitor poderá vislumbrar no livro um ponto de partida para evocar o JREpensar de algumas crenças compartilhadas, práticas, conceitos e posturas à luz de algumas transformações que marcam a área da surdez na atualidade. Ou seja, o que se espera é poder promover um direcionamento para um novo olhar, uma nova forma de narrar a(s) realidade(s) surda(s}. Ao recuperar, no título, a fala de um pai que confessa seu estranhamento em relação à língua do filho surdo, ao dizer " LIBRAS? Que língua é essa?" quero flagrar o total desconhecimento dessa realidade linguística, tanto por parte daqueles que convivem de perto com a surdez, quanto por parte da sociedade ouvinte de maneira geral. Além disso, propõe-se um espaço de articulação em que questões similares possam ser pensadas e, sem evitar seu estranhamento, tornadas mais familiares. Essa foi a forma encontrada para também sensibilizar ouvintes sobre um mundo surdo desconhecido e complexo. Como disse o poeta Leopardi, "à força de repetições, e, portanto, de hábito", podem ser criadas oportunidades para reflexões e mudanças sobre algumas opiniões e também crenças daqueles que não estão ou nunca estiveram em contato com o surdo, a língua de sinais e a surdez.
sinais; no Japão, a língua japonesa de sinais; no Brasil, a língua brasileira de sinais, e assim por diante. Vejamos abaixo a diferença do sinal "mãe" em 4 diferentes línguas de sinais: Em qualquer lugar em que haja surdos interagindo, haverá línguas de sinais. Podemos dizer que o que é universal é o impulso dos indivíduos para a comunicação e, no caso dos surdos, esse impulso é sinalizado. A língua dos surdos não pode ser considerada universal, dado que não funciona como um "decalque" ou "rótulo" que possa ser colado e utilizado por todos os surdos de todas as sociedades de maneira uniforme e sem influências de uso. Na pergunta sobre universalidade, está também implícita uma tendência a simplificar a riqueza linguística, sugerindo que talvez para os surdos fosse mais fácil se todos usassem uma língua única, uniforme. 0 paralelo é inevitável: e no caso de nossa língua oral, essa perspectiva se mantém? Mesmo que, do ponto de vista prático, tal uniformidade fosse desejável, seria possível a existência, nos cinco continentes, de uma língua que, além de única, permanecesse sempre a mesma?
Crença. A língua de sinais dos surdos é natural, pois evoluiu como parte de um grupo cultural do povo surdo. Consideram-se "artificiais" as línguas construídas e estabelecidas por um grupo de indivíduos com algum propósito específico. 0 esperanto^1 (língua oral) e o g estuno (língua de sinais) são (^1) Atualmente, a língua auxiliar planejada mais falada é o esperanto. 0 russo Ludwik Lejzer Za- menhof, oftalmologista e filólogo, publicou, em 1887, a versão inicial do idioma, com o objetivo de
exemplos de línguas "artificiais"^2 , cujo objetivo maior é estabelecer a comu- nicação internacional. Esse tipo de língua funciona como uma língua auxiliar ou franca. 0 gestuno, também conhecido como língua de sinais internacional, é, da mesma forma que o esperanto, uma língua construída, planejada. O nome é de origem italiana e significa "unidade em língua de sinais". Foi mencionada pela primeira vez no Congresso Mundial na Federação Mundial dos Surdos (World Federation of the Deaf - WFD) em 1951. Em meados da década de 1970, o comitê da Comissão de Unificação de Sinais propunha um sistema padronizado de sinais internacionais, tendo como critério a seleção de sinais mais compreensíveis, que facilitassem o aprendizado, a partir da integração das diversas línguas de sinais. A comunidade surda, de forma geral, não considera o gestuno uma língua "real" uma vez que foi inventada e adaptada. Atualmente, entretanto, cursos são oferecidos, e os adeptos do movimento gestunista divulgam os sinais internacionais em conferências mundiais dos surdos (Moody, 1987; Supalla & Webb, 1995; Jones, 2001).
Absolutamente. 0 reconhecimento linguístico tem marca nos estudos descritivos do linguista americano William Stokoe em 1960. No tocante às línguas orais, as investigações vêm acontecendo há muito mais tempo, já que em 1660 (ou seja, trezentos anos antes) desenvolveu-se uma "teoria de língua em que as estruturas e categorias gramaticais podiam ser associadas a padrões lógicos universais de pensamento" (Crystal, 2000: 204), postulada na Gramática de Port-Royal^3. As línguas de sinais, criar uma língua de aprendizagem muito fácil, que funcionasse como língua franca internacional para os povos de todos os cantos do mundo. Sabe-se, entretanto, que nenhuma nação adotou o esperanto como sua língua, mas registra-se um uso por uma comunidade de mais de 1 milhão de falantes. A língua é empregada em várias situações e os adeptos do movimento esperantista implementam e desenvolvem cursos do esperanto em alguns sistemas de educação (Santiago, 1992). (^2) Os seguidores do movimento esperantista não utilizam o termo "artificial’', pois acreditam que há, sim, aspectos naturais na comunicação no esperanto, e preferem termos como linguagem planejada ou auxiliar para defini-lo. Eles argumentam que as linguagens naturais também têm “certa artificialidade", quando se pensa nas medidas normativas (gramáticas normativas) que postulam regras para as línguas de uma forma geral. Trata-se de uma questão conceituai, polêmica e em constante debate (Santiago, 1992). (^3) Este nome é dado a um grupo de estudiosos do século XVII que seguia as ideias de René Descartes. Port-Royal era um convento, ao sul de Versailles, na França. Insatisfeitos com o mé
da mão. Esse contraste de dois itens lexicais com base em um único componente recebe, em linguística, o nome de "par mínimo". Nas línguas orais, por exemplo, pata e rata se diferenciam significativamente pela alteração de um único fonema: a substituição do /p/ por /r/. No nível lexical, temos em LIBRAS pares mínimos como os sinais grátis e amarelo (que se opõem quanto à CM), churrascaria e provocar (diferenciados pelo M), ter e Alemanha (quanto à L): Oposição de CM: Oposição de L Retirado e adaptado de Capovilla & Raphael (2001:174-1242).
Podemos testar os pares mínimos com várias outras palavras, mas vejamos a seguir uma ocorrência em LIBRAS no sinal “ajudar", em que a orientação da palma da mão faz a distinção de significado, sendo validada, portanto, como mais um parâmetro: Desenho adaptado da Enciclopédia de Capovilla & Raphael (2004:169-190). 0 exemplo ilustra a diferença marcada entre o sentido em [1] "eu ajudo X" e em [2] "X ajuda a mim Vários outros verbos fazem a flexão verbal dependendo da orientação da palma da mão: respeitar, responder, telefonar, avisar etc. Esse parâmetro não serve apenas para marcar a flexão do verbo, mas também para a marcação, por exemplo, de negativas como em "querer" e "não querer", "saber" e "não saber", "gostar" e "não gostar"...^5. Os sinais também podem ser realizados com uma ou duas mãos. Vejamos primeiro o exemplo da composição, a partir da segmentação dos quatro parâmetros, do sinal "conhecimento" em LIBRAS (uma mão apenas): (^5) Para uma leitura mais detalhada sobre a estrutura linguística da LIBRAS, cf. Ferreira Brito (1995), Quadros & Karnopp (2004), Xavier (2006), Leite (2008); e da ASL, cf. Stokoe (1960), Friedman (1977), Klima & Bellugi (1979), Liddell (1984) e Liddell & Johnson (1986).
orais (entonação, velocidade, ritmo, sotaque, expressões faciais, hesitações, entre outros), nas línguas de sinais, as expressões faciais (movimento de cabeça, olhos, boca, sobrancelha etc.) são elementos gramaticais que compõem a estrutura da língua; por exemplo, na marcação de formas sintáticas e atuação como componente lexical^6 : A partir da análise desses parâmetros, podemos perceber que as línguas orais e as línguas de sinais são similares em seu nível estrutural, ou (^6) Essas expressões não manuais, na função sintática, podem ser as perguntas retóricas, orações relativas, topicalizações. Na constituição de componentes lexicais, funcionam como uma referência específica ou como uma referência pronominal, uma partícula negativa, um advérbio, um modificador ou uma marca de aspecto" (Ferreira Brito, 1995: 240).
seja, são formadas a partir de unidades simples que, combinadas, formam
construídas de palavras; palavras são construídas a partir de morfemas; e morfemas, por sua vez, são construídos a partir de fonemas" (Pinker, 1995:162). Em que, então, as línguas orais e de sinais diferem? Diferem quanto à forma como as combinações das unidades são construídas. Enquanto as línguas de sinais, de uma maneira geral (mas não
diferença primária se dá devido ao canal de comunicação em que cada língua se estrutura (visual-gestual x vocal-auditivo), pois essas características ficam mais salientes em uma língua do que em outra (Ferreira Brito, 1995; Wilcox & Wilcox, 1997). As investigações linguísticas apontam e descrevem a existência de características linguístico-estruturais que marcam as línguas humanas naturais. A crença, ainda muito forte na sociedade ouvinte, de que a língua de sinais dos surdos não tem gramática está ancorada na crença de que falamos a seguir: a de que elas não passariam de mímicas e pantomimas.
Falso. Para demonstrar a diferença entre a mímica e os sinais, Klima & Bellugi (1979) conduziram um estudo a partir da observação de narrativas que necessitariam de pantomimas durante a contação da história. Nesse estudo, a narrativa estudada foi "0 unicórnio no jardim" de James Thurber. Nela foram constatadas "invenções" de sinais para a palavra "camisa de força" — em inglês
(^7) No início dos anos 1980, entretanto, há formulações de alguns linguistas quanto à incorporação muito evidente da sequencialidade na fonologia da ASL. 0 mesmo é verdadeiro em LIBRAS (cf. Wilcox & Wilcox, 1997; Klima & Bellugi, 1979; Ferreira-Brito, 1995; Quadros, 1997a).
(1) Pantomima de "ovo" (2) Sinal de "ovo" em ASL Constatou-se que, para o exemplo acima, as pantomimas observadas ti- nham muitas possibilidades, variando de um indivíduo para outro; enquanto na língua americana de sinais permanecia apenas uma variedade, ou seja, a variedade legitimada e convencionada pelo grupo de usuários estudados. Outra diferença é que as pantomimas ou mímicas — uma vez que tentavam representar o objeto tal como existe na realidade — eram muito mais deta- lhadas, comparadas aos sinais americanos, levando muito mais tempo para sua realização. A pantomima quer fazer com que você veja o "objeto", enquanto o sinal quer que você veja o símbolo convencionado para esse objeto. Quando me perguntam, entretanto, se a língua de sinais é mímica, entendo que está implícito nessa pergunta um preconceito muito grave, que vai além da discussão sobre a legitimidade linguística ou mesmo sobre quaisquer relações que ela possa ter (ou não) com a língua de sinais. Está associada a essa pergunta a ideia que muitos ouvintes têm sobre os surdos: uma visão embasada na anormalidade, segundo a qual o máximo que o surdo consegue expressar é uma forma pantomímica indecifrável e somente compreensível entre eles. Não à toa, as nomeações pejorativas anormal, deficiente, débil mental, mudo, surdo- mudo, mudinho têm sido equivocadamente atribuídas a esses indivíduos^8. A língua de sinais tem todas as características linguísticas de qualquer língua humana natural. É necessário que nós, indivíduos de uma cultura de língua oral, entendamos que o canal comunicativo diferente Cf. a discussão do capítulo 2.
(visual-gestual) que o surdo usa para se comunicar não anula a existência de uma língua tão natural, complexa e genuína como é a língua de sinais. A esse respeito quero salientar três definições encontradas no Dicionário didático de português (Biderman, 1998: 630-645): mímica s.f. mí- mi-ca. Expressão de idéias, palavras ou sentimentos através de gestos expressivos que acompanham ou substituem a fala. Os mudos usam mímica para comunicarem suas idéias. Durante o piquenique a turma fez várias brincadeiras; uma delas foi o jogo de mímica.// pl: mímicas, [ênfase minha] mudez s.f. mu - dez. Qualidade daquele que é mudo, de quem não fala. Muitas vezes, a mudez é provocada por problemas de audição.// Não se usa no pl./ adj: mudo/ cf: surdez. mudo adj. mu- do. 1. Que não fala por problemas físicos ou psicológicos... As definições inter-relacionadas acima perpetuam as ideias de que os surdos não têm língua, e os desdobramentos dessas definições contribuem para que acreditemos que eles não podem produzir fala inteligível e de que não têm cordas vocais. Os surdos são fisicamente e psicologicamente normais: aqueles que têm o seu aparato vocal intacto [que nada tem a ver com a perda auditiva) podem ser oralizados^9 e falar a língua oral, se assim desejarem. Entretanto, o que deve ficar registrado é a forma pela qual constantemente se atribui à língua de sinais um status menor, inferior e teatral, quando definido e comparado à mímica.
Claro que sim! Novamente, a pressuposição de que não se consegue expressar ideias ou conceitos abstratos está firmada na crença de que a língua de sinais é limitada, simplificada, e não passa de um código primitivo, mímica, pantomima e gesto. No Dicionário de linguística e fonética, por exemplo, gestos são considerados traços paralinguísticos ou extralin- guísticos das línguas orais: (^9) Oralização é um treinamento, com orientação de fonoaudiólogos, para que uma pessoa surda possa produzir os sons vocais da língua oral. Essa prática é realizada juntamente com a prática de leitura labial.
racterística. Podemos verificá-la no clássico exemplo das onomatopéias como
representam, de acordo com cada língua, o significado. Além disso, mesmo sinais mais icônicos tendem a se diferenciar de uma língua de sinais para outra, o que nos remete ao fato de a língua ser um fenômeno convencional mantido por um "acordo coletivo tácito" entre os falantes de uma determinada comunidade [Saussure, 1995). Ainda amarrada a essa crença está o que Wilcox & Wilcox (1997: 6)
do que as línguas orais. Na verdade, todas as línguas são conceituais, a diferença é de que forma cada língua "empacota os conceitos em unidades linguísticas". A metáfora do "pacote" isto é, o modo como cada língua dá forma aos conceitos em unidades linguísticas, ilustra bem a questão: quem de nós já não se perguntou, por exemplo, por que uma palavra, em dada língua, quando traduzida para outra, pode ficar muito maior em seu tamanho? Ou mesmo uma sentença, ou texto?
Isso ocorre porque o conteúdo e a informação nas palavras de certas línguas são "empacotadas" distintamente. Não significa dizer, entretanto, que uma ou outra língua seria simplificada por ter "pacotes menores" e não ne- cessitar, por exemplo, de conjunções, preposições ou flexões verbais em sua
estrutura^10. 0 inglês, se comparado ao português, tem uma construção distinta na conjugação dos verbos, mas isso não significa dizer que uma língua seja simplificada e outra complexa. 0 mesmo serve para as línguas de sinais. Afinal, a complexidade é inerente a todas as línguas humanas e naturais.
Os surdos foram privados de se comunicarem em sua língua natural du- rante séculos. Vários estudos têm apontado a difícil relação dos surdos com a língua oral majoritária e com a sociedade ouvinte. Escolas, profissionais da saúde, e familiares de surdos têm seguido uma tradição de negação do uso dos sinais. Groce (1985), por exemplo, oferece-nos um panorama das atitudes dos ouvintes em relação à surdez, apontando que, por séculos, os surdos não tinham respeitados os seus direitos e reconhecidas suas responsabilidades, mesmo depois de receberem educação. Padden & Humphries (1988) mostram que as escolas, em sua grande maioria, proibiam o uso da língua de sinais para a comunicação entre os surdos, forçando-os a falar e a fazer leitura labial. Quando desobedeciam, eram castigados fisicamente, e tinham as mãos amarradas dentro das salas de aula. 0 desenho da surda Betty G. Miller denuncia a proibição da língua americana de sinais nas escolas de surdos: Betty G. Miller, Ameslan Prohibited, 1972. (^10) Essa discussão tem implicações para a tradução, especificamente pensando a tradução da LIBRAS para o português e vice-versa.