
































Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
O que é Etnocentrismo? Everardo P. Guimarães
Tipologia: Notas de estudo
1 / 40
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
________________________________________________ 1
Copyright © Everardo P. Guimarães Rocha
Capa e ilustrações :
“Pineaple Fields Forever”
Revisão :
José G. Arruda Filho
José W.S. Moraes
editora brasiliense s.a
________________________________________________ 3
ÍNDICE
________________________________________________ 4
Agradeço à leitura, aos comentários críticos e à amizade de: Agenor Miranda Rocha, Ana Paula Carvalho de Oliveira, Angela Menezes Pimentel, Angeluccia Bernardes Haebert, Anthony Seeger, Carlos Alberto M. Pereira, Claudia Lebelson Sterental, Heloísa Fontes Leuzinger, José Carlos Rodrigues, Maria Alice R. de Carvalho, Maria Madalena Diégues Quintella, Patrícia Sobral de Miranda, Roberto da Matta, Rosane Manhães Prado, Rubem Rocha Filho.
________________________________________________ 6
excelência. É onde existe o saber, o trabalho, o progresso. A sociedade do “outro” é atrasada. E o espaço da natureza. São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois, estes somos nós. O barbarismo evoca a confusão, a desarticulação, a desordem.
O selvagem é o que vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a vida animal. O “outro” é o “aquém” ou o “além”, nunca o “igual” ao “eu”.
O que importa realmente, neste conjunto de idéias, é o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os diferentes grupos. O etnocentrismo não é propriedade, como já disse, de uma única sociedade, apesar de que, na nossa, revestiu-se de um caráter ativista e colonizador com os mais diferentes empreendimentos de conquista e destruição de outros povos.
A atitude etnocêntrica tem, por outro lado, um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para a compreensão destas maneiras exacerbadas e até cruéis de encarar o “outro”. Existe realmente, paralelo à violência que a atitude etnocêntrica encerra, o pressuposto de que o “outro” deva ser alguma coisa que não desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo.
Creio que é necessário examinar isto melhor e vou fazê-lo através de uma pequena estória que me parece exemplar.
Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente, do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava freqüentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.
A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relógio.
Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos,
________________________________________________ 7
flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio.
Esta estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda evidência, bastante plausível, demonstra alguns dos importantes sentidos da questão do etnocentrismo.
Em primeiro lugar, não é necessário ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social (ou ainda pastor) para perceber que, neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas fizeram, obviamente, a mesma coisa. Privilegiaram ambos as funções estéticas, ornamentais, decorativas de objetos que, na cultura do “outro”, desempenhavam funções que seriam principalmente técnicas. Para o pastor, o uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto quanto o que causaria ao jovem índio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um “traduziu” nos termos de sua própria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”.
Em segundo lugar, esta estória representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de um etnocentrismo “cordial”, já que ambos – o índio e o pastor – tiveram atitudes concretas sem maiores conseqüências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensão do “outro” que se reveste de uma forma bastante violenta. Como já vimos, pode colocá-lo como “primitivo”, como “algo a ser destruído”, como “atraso ao desenvolvimento”, (fórmula, aliás, muito comum e de uso geral no etnocídio, na matança dos índios).
Assim, por exemplo, um famoso cientista do início do século, Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, justificava o extermínio dos índios Caingangue por serem um empecilho ao desenvolvimento e à colonização das regiões do sertão que eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em vários outros lugares, a lógica do extermínio regulou, infinitas vezes, as relações entre a chamada “civilização ocidental” e as sociedades tribais. Isso lembra o comentário, tristemente exemplar, de uma criança, de um grande centro urbano, que, de tanto ouvir absurdos sobre o índio, seja em casa, seja nos livros didáticos, seja na indústria cultural, acabou por defini-los dizendo: “o índio é o maior amigo do homem”.
Em terceiro lugar, a estória ainda ensina que o “outro” e sua cultura, da qual falamos na nossa sociedade, são apenas uma representação, uma imagem distorcida que é manipulada como bem entendemos. Ao “outro” negamos aquele mínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo. Tudo se passa como se fôssemos autores de filmes e livros de ficção científica onde podemos falar e pensar o quanto é cruel, grotesca e monstruosa uma civilização de marcianos que capturou nosso foguete. Também, porque somos os autores destes filmes e livros, nada nos impede de criarmos um marciano simpático, inteligente e super-poderoso que com incrível perícia salva a Terra de uma colisão fatal com um meteoro gigante. Claro, como o marciano não diz nada, posso pensar dele o que quiser.
Assim, de um ponto de vista do grupo do “eu”, os que estão de fora podem ser brabos e traiçoeiros bem como mansos e bondosos. Aliás, “brabos e “mansos” são dois termos que muitas vezes foram empregados no Brasil para designar o “humor” de determinados animais e o “estado” de várias tribos de índios ou de escravos negros.
________________________________________________ 9
brancos. Em outras palavras, o índio é “alugado” na História do Brasil para aparecer por três vezes em três papéis diferentes.
O primeiro papel que o índio representa é no capítulo do descobrimento. Ali, ele aparece como “selvagem”, “primitivo”, “pré-histórico”, “antropófago”, etc. Isto era para mostrar o quanto os portugueses colonizadores eram “superiores” e “civilizados”.
O segundo papel do índio é no capítulo da catequese. Nele o papel do índio é o de “criança”, “inocente”, “infantil”, “almas-virgens”, etc., para fazer parecer que os índios é que precisavam da “proteção” que a religião lhes queria impingir.
O terceiro papel é muito engraçado. E no capítulo “Etnia brasileira”. Se o índio já havia aparecido como “selvagem” ou “criança”, como iriam falar de um povo – o nosso
Assim são as sutilezas, violências, persistências do que chamamos etnocentrismo. Os exemplos se multiplicam nos nossos cotidianos. A “indústria cultural” – TV, jornais, revistas, publicidade, certo tipo de cinema, rádio – está freqüentemente fornecendo exemplos de etnocentrismo. No universo da indústria cultural é criado sistematicamente um enorme conjunto de “outros” que servem para reafirmar, por oposição, uma série de valores de um grupo dominante que se auto-promove a modelo de humanidade.
Nossas próprias atitudes frente a outros grupos sociais com os quais convivemos nas grandes cidades são, muitas vezes, repletas de resquícios de atitudes etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos através dos quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferença. As idéias etnocêntricas que temos sobre as “mulheres”, os “negros”, os “empregados”, os “paraíbas de obra”, os “colunáveis”, os “doidões”, os “surfistas”, as “dondocas”, os “velhos”, os “caretas”, os “vagabundos”, os gays e todos os demais “outros” com os quais temos familiaridade, são uma espécie de “conhecimento” um “saber”, baseado em formulações ideológicas, que no fundo transforma a diferença pura e simples num juízo de valor perigosamente etnocêntrico.
Mas, existem idéias que se contrapõem ao etnocentrismo. Uma das mais importantes é a de relativização. Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando. Quando o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.
A nossa sociedade já vem, há alguns séculos, construindo um conhecimento ou, se quisermos, uma ciência sobre a diferença entre os seres humanos. Esta ciência chama-se Antropologia Social. Ela, como de resto quase todas as atitudes que temos frente ao “outro”, nasceu marcada pelo etnocentrismo. Ela também possui o compromisso da procura de superá-lo. Diferentemente do saber de “senso comum”, o movimento da Antropologia é no sentido de ver a diferença como forma pela qual os seres humanos deram soluções diversas a limites existenciais comuns. Assim, a diferença não se
________________________________________________ 10
equaciona com a ameaça, mas com a alternativa. Ela não é uma hostilidade do “outro”, mas uma possibilidade que o “outro” pode abrir para o “eu”.
Assim, gostaria, agora, de acompanhar alguns movimentos pelos quais passou a Antropologia neste jogo de refletir sobre a diferença. Entender alguns movimentos deste jogo é acompanhar a superação do etnocentrismo na arena do intelecto e da razão e na arena da emoção e do sentimento. Acredito até que, num certo nível, esta superação que ocorre na ciência que é a ponta de lança do conhecimento do “outro” possa, no plano da sociedade mais geral, ser traduzida num humanismo de olhar mais conseqüente. A diferença das escolhas humanas se fixa, no conhecimento antropológico, no mínimo, como alternativa e testemunho de muitos “outros”, aqui e pelo mundo afora, cujas formas de existência serão sempre a presença do humano em sua singularidade.
O percurso que, na Antropologia, busca a superação do etnocentrismo implicou diferentes movimentos e pode, com maior ou menor grau de dificuldade, ser observado a partir de vários ângulos. Optei por traçar o caminho em torno de algumas visões do conceito de “cultura” dentro da Antropologia. Alguém já disse que o antropólogo é aquele que pensa sobre as questões da cultura humana. De fato, seguindo a pista dada pelos diferentes conceitos de cultura de que a Antropologia dispõe perceberemos como esta foi vista de maneiras mais etnocêntricas que cederam espaço a outras visões mais relativizadoras.
Antes, porém, de ver isto tudo – os conceitos de cultura nas teorias formais da Antropologia –, convém fazer rápida passagem pelo panorama de uma época que acho ter sido fundamental para a constituição de um “sentimento” da Antropologia. Trata-se dos séculos XV, XVI e XVII com suas navegações, expedições, espantos, colonizações, alucinações, sacações e aberturas. E um momento básico de encontro com o “outro”. O “velho” mundo buscando coisas cujas dimensões talvez nem soubesse. O “novo” mundo um tanto indefeso frente ao furacão que começava a envolvê-lo. Povos assustados com o olhar o “outro” frente a frente. Momento marcante a exigir que se começasse a pensar a diferença, porque esta já se impunha na força de sua radicalidade.
________________________________________________ 12
Vamos procurar ver as principais formas pelas quais a Antropologia pensou a diferença ao longo de sua imensa literatura e da amplitude de seus estudos e reflexões. Do palco do encontro inicial no século XVI fica marcada a idéia de uma forte perplexidade. E é esta perplexidade que vai, pouco a pouco, cedendo lugar a novos conjuntos de idéias, sempre mais matizados, procurando compreender as diferenças que, a cada vez, vão assumindo novas formas.
O primeiro destes pensamentos, ocorridos na Antropologia e que procuram explicar a diferença, é conhecido como Evolucionismo.
A noção de evolução é um marco fundamental para o pensamento antropológico. Vai aparecer como idéia básica para toda uma grande fase da teoria antropológica e, na história dos saberes sobre o ser humano, tem um lugar de destaque, quase que como uma âncora, para os trabalhos e estudos que procuravam fazer da Antropologia uma ciência. Assim, a diferença que se travestia em espanto e perplexidade, nos séculos XV e XVI, encontra, nos séculos XVIII e XIX, uma nova explicação: o outro é diferente porque possui diferente grau de evolução.
Mas, o que é, exatamente, evolução? Evolução, no seu sentido mais amplo, equivale a desenvolvimento. É a transformação progressiva no sentido da realização completa de algo latente. É o caminho da manifestação plena do que estava oculto. Evolução, em outras palavras, é o desenvolvimento obrigatório de uma determinada unidade que revela, pelo processo evolutivo, uma segunda forma, mostrando, então, sua potencialidade. É um processo permanente onde uma unidade qualquer se transforma numa segunda que, por sua vez, se transforma numa terceira e assim sucessivamente.
A noção de evolução pode estar ligada ao orgânico, ao nível biológico do desenvolvimento. Este compromisso da idéia de evolução com o crescimento e a formação dos organismos. tem no livro A Origem das Espécies , de Darwin, em plena metade do século XIX, sua formulação clássica. Mas, a esta noção orgânica, biológica, de evolução já se juntavam os pensamentos e discussões filosóficas dos chamados iluministas do século XVIII.
Tudo isso forma um campo intelectual, um espaço correto para um tipo de pensamento que, então, iria contagiar todos os estudos sobre as sociedades humanas. O evolucionismo biológico e o evolucionismo social se encontram e o segundo passa ser o novo modelo explicador da diferença entre o “eu” e o “outro”. O resultado disso, é claro, vai ser a permanência do etnocentrismo agora traduzido na sociedade do “eu” como o estágio mais adiantado e a sociedade do “outro” como o estágio mais atrasado. Mas isto é o fim da estória e é importante que possamos ver mais a fundo o sistema de idéias que se monta em torno da idéia de evolução.
Para o evolucionismo antropológico a noção de progresso torna-se fundamental, pois é no seu rumo que a história do homem se faz. Acredita-se na unidade básica da espécie humana e o fator tempo passa a ser bastante importante. Progresso, evolução, avanço no tempo. O homem a caminho. A direção é a de um estádio superior de civilização.
Saindo de estádios mais primitivos numa trajetória de permanente progresso onde o tempo é a teia onde se tece a evolução. Assim, a origem da humanidade tem de ser num passado longínquo para que as etapas se sucedam na direção de uma civilização mais e mais avançada, mais e mais absoluta em suas conquistas.
________________________________________________ 13
E foi toda uma geração de antropólogos que, em meados do século XIX – na Inglaterra, Sir James George Frazer e Sir Edward Burnett Tylor e, nos Estados Unidos, Lewis Morgan –, começou a produzir seus estudos consciente de que a presença do homem sobre a terra remontava a uma idade muito antiga. Sabedores desta origem remota dos antepassados procuravam escalonar as etapas de evolução das sociedades que encontravam pelo mundo.
A lógica do raciocínio é simples. Numa palavra: transformar sociedades contemporâneas em retratos do passado. Explicando melhor, a Inglaterra do século XIX era, de fato, contemporânea dos aborígenes australianos, por exemplo. Ao afirmar que todas as formações sociais humanas tinham origens remotas e caminhavam no mesmo sentido, na direção do progresso, os evolucionistas pensavam que os australianos haviam parado num estádio “primitivo” e os ingleses avançado para um estádio “civilizado”. É claro que quem assim pensava eram os ingleses, que em plena época da rainha Vitória, o século XIX, a era vitoriana, espalhavam militarmente seu império pelo mundo inteiro. Também podiam pensar assim norte-americanos e outros europeus que se sentiam fazendo parte de uma civilização absoluta, para eles, a melhor por definição.
Mas, restava ainda um problema teórico. A escolha e a definição dos critérios pelos quais seria possível medir o estádio de “avanço” de cada uma das sociedades existentes. Era necessário um instrumento comparativo tipo um “medidor” de progresso. Sim, porque se compararmos Brasil, Estados Unidos e Uruguai e o “medidor” for “futebol”, por exemplo, teríamos o Brasil como o mais “civilizado”, o Uruguai como intermediário e os Estados Unidos no estádio “primitivo”. Se o “medidor” for o número de grupos de rock a ordem já é outra e assim tantas ordenações da hierarquia das culturas quanto os “medidores” escolhidos.
Faz-se, então, fundamental a criação de algo que fizesse as vezes de critério, tendo aceitação, lógica e possibilidade para o estudo comparativo. Acredito que a solução está no próprio conceito de cultura adotado pelos evolucionistas. Este conceito é, talvez, o mais famoso da Antropologia e, dentre mais de cento e cinqüenta definições da cultura que a disciplina produziu, pode-se dizer que é, no mínimo, um clássico. Ele aparece no livro A Origem das Culturas de Sir Edward Tylor que, logo na primeira página, diz o seguinte:
“Cultura ou civilização, no seu sentido etnográfico estrito, é este todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, leis, moral, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade”.
Se pensarmos nesta definição podemos constatar que transparece uma visão da cultura como uma série de itens identificáveis, unitários, separados, que formam um “todo complexo”. Também transparece uma espécie de princípio geral, uma lei, dentro da cultura, como se os problemas colocados aos seres humanos fossem, em toda parte, os mesmos. Aqui, é bom lembrar o missionário do primeiro capítulo. O que é Arte? Lei? Moral?, etc. Sabemos que são relativos. Que, em certas sociedades, os conteúdos destas idéias talvez nem existam. Para os evolucionistas, no entanto, estas idéias eram nítidas e claras. Extraídas dos seus contextos eles as absolutizavam e assumiam como se as idéias de sua própria sociedade fossem não apenas universais como as melhores e mais bem acabadas.
Postulavam uma unidade entre as culturas como se todas tivessem de dar conta de problemas idênticos e que, mais cedo ou mais tarde, os “primitivos” chegariam às formas da “civilização”. Assumiam que os itens da cultura se assemelhavam onde quer
________________________________________________ 15
se armam as bases que virão, pouco a pouco, minando o etnocentrismo dentro da Antropologia. Como pode ser isto? Como um dos movimentos teóricos mais marcados pela ideologia da superioridade pode trazer dentro de si mesmo os germes da superação desta ideologia?
Acredito que a resposta é simples. Ou, pelo menos, a hipótese que coloco aqui é simples. A ausência de um pensamento sistemático sobre o “outro”, a visão caótica do “outro”; o medo oculto, o espanto, a falta ou excesso de significações do “outro”, podem ser mais etnocêntricos do que a reflexão sobre o “outro”. Se o “eu” negava, num primeiro momento, participar da mesma “natureza” humana do “outro”, vê-lo como atrasado e primitivo, mas dotado de uma “natureza” humana da qual também participo, já apresenta alguma diferença. Menos evoluído mas, nem “deus” nem “diabo”, um “outro” tão humano quanto o “eu”.
Aqui fica um dilema interessante: dois sistemas de idéias – o “espanto” do século XVI e o “evolucionismo” do século XIX – são igualmente inadequados, pois que ambos são etnocêntricos na sua maneira de ver o “outro”. Entretanto, entre si, apresentam diferenças e, me parece que nesse sentido, o evolucionismo, por se propor a “pensar” o “outro” e discuti-lo como sócio do clube da humanidade, já traz em si alguma semente de relativização. É certo que a escolha, por assim dizer, entre o ruim e o pior é sempre muito difícil. Sabemos que ambos não são bons mas pode-se também ver qual se distancia mais.
Assim, num resumo, temos o que foi o evolucionismo como primeiro eixo sistemático de pensamento sobre o “outro” dentro da Antropologia, tivemos também um pequeno quadro do encontro fundamental, em termos da experiência do “eu” e do “outro”, que foram os séculos XV, XVI e XVII com seus novos e velhos mundos. Ainda comparamos as duas coisas em termos do que poderiam ter significado.
Agora relativizando; é claro que a época do novo mundo, o evolucionismo e a comparação entre ambos é muito mais, mas muito mais mesmo, complexa do que isto. Tanto aqui, como de resto em todas as coisas sobre as quais procuramos saber, encontra-se uma lógica parecida: quanto mais sabemos mais sabemos o quanto falta saber. A magia, neste processo, reside aí mesmo: na consciência de quão pouco se sabe.
E vai ser, exatamente, esta consciência que vai levar a Antropologia a explodir os esquemas simplificadores do evolucionismo e a ampliar, multiplicando muito, seu campo de estudos, que passa rapidamente a alcançar limites jamais pensados até então. Relativiza-se mais e com isto complexifica-se o “outro” como objeto de estudo. Neste processo, a sociedade do “eu” começa até a questionar-se a si própria. É o que veremos a seguir.
________________________________________________ 16
O PASSAPORTE
Agora tudo começa a acontecer muito rica, confusa e rapidamente. O século XX traz para a Antropologia um conjunto vasto e complexo de novas idéias formuladas por um grupo brilhante de pesquisadores. Tudo isto vai, paulatinamente, exorcizando o fantasma do etnocentrismo de dentro da disciplina. É bem verdade que, ao nível do senso comum, das ideologias, dos cotidianos da sociedade ocidental, a visão etnocêntrica dos diversos “outros” deste mundo muito pouco se abala com as “revoluções” da Antropologia. Relativizar é uma palavra que, até hoje, muito pouco saiu das fronteiras do conhecimento produzido pela Antropologia.
Mas, acompanhando o etnocentrismo dentro da nossa ciência do “outro”, dentro da disciplina que estuda a diferença, encontramos, felizmente, muitas conquistas.
A ordem “natural” em que eu devo explicar estas conquistas é, por uma questão de clareza, a ordem de um tempo linear, feito de causa e conseqüência, com um fato atrás do outro, alguém influenciando alguém, uma coisa resultando na outra. Melhor dizendo, deveria fazer uma “historinha”, normalzinha, certinha, com tudo se encaixando no seu lugar devido. Desde os momentos “primitivos” do etnocentrismo aos momentos “civilizados” da relativização. Deveria, em suma, como vocês já devem ter notado, fazer tal como fizeram os evolucionistas.
E agora? Me prendi num paradoxo. Explicar o avanço da Antropologia em direção à superação do etnocentrismo procedendo, nesta explicação, como os evolucionistas que tão pouco relativizaram.
Com este paradoxo tocamos bem fundo no que é a problemática etnocêntrica e nas dificuldades de sairmos das suas intrincadas malhas. Para não contar esta “historinha” da Antropologia, tipo uma fábula malfeita, é necessário relativizar a própria noção de tempo como história, como passagem linear dos acontecimentos. O mais interessante é que a própria Antropologia vai ser capaz de relativizar a noção ocidental de tempo, assim como a noção ocidental de indivíduo, assim como outras tantas noções tão fundamentais à sociedade do “eu”.
A Antropologia consegue, hoje, ver que sociedades diferentes podem ter concepções da existência tanto diversas entre si quanto igualmente boas para cada uma. Assim, vou poder falar de etnocentrismo e de relativização sem precisar fazer uma “historinha” linear, didática e evolucionista. Vamos, de outra maneira, falar de um jogo
Escolhidos os campos, o apito soou e a saída pode ter sido dada por um alemão chamado Franz Boas. Gênio inquieto, curioso, instigante, procurou investigar muitas áreas do conhecimento humanístico dando toques de primeira linha em inventiva e criatividade. Ao seu nome se liga toda uma escola de pensamento que ficou conhecida como difusionismo ou escola americana. Este alemão, no início do século, vai trabalhar nos Estados Unidos e influencia todo um importante grupo de alunos que desenvolve um trabalho fortemente inspirado na fertilidade do seu pensamento. Vamos a ele então.
________________________________________________ 18
Nessa linha, saiu pesquisando sobre nada mais nada menos que: Antropologia Física, Lingüística, Folclore, Geografia, Migrações, Organização Social e, nisto tudo, a idéia de cultura se renova, se transforma, foge, é reencontrada diferentemente adiante, etc.
Na inquietação e curiosidade do seu pensamento a cultura humana, ou melhor, as diversas culturas humanas (para Boas elas eram diferentes, plurais) vão ser vistas como relacionadas, ora com o ambiente que envolve o grupo, ora com as línguas por eles faladas, ora com os indivíduos – corpo e espírito – que criam estas culturas.
Preocupado com o estudo da história concreta, particular de cada cultura ao invés de, como o evolucionismo, ter uma história única, geral, onde teriam de caber todas as culturas, voltou-se, definitivamente, para o mundo do “outro”. A categoria de história perdia, com ele, o seu “H” maiúsculo tão fundamental aos evolucionistas. O “h”, agora, era minúsculo. Não havia uma única história que se acumulava, inapelavelmente, em direção à sociedade do “eu”. O “outro” também passa a poder contar sua história que não iria desembocar, necessariamente, na “avançada” sociedade do “eu”.
Enfatiza os processos de mudança, de troca e empréstimo cultural como capazes de repercutir nos caminhos trilhados por cada cultura humana. Todas estas idéias, suas sutilezas, relativizações e complexidades, se afinal acabaram por não expressar uma nítida “teoria” da cultura ao menos expressaram a riqueza de uma reflexão que assumiu os riscos de relativizar os limites, os parâmetros, as fronteiras do próprio campo de onde partiu.
Assim, como conseqüência de um pensamento tão fértil, toda uma geração de antropólogos vai ser influenciada e vai desenvolver, em direções distintas, pistas, toques e intuições que, de alguma maneira, se ancoravam nos escritos e nos projetos de Boas.
Vamos acompanhar mais um pouco este importante caminho de fuga ao etnocentrismo tal como aconteceu na escola americana. Os alunos de Boas levam adiante seu pensamento, recebem influências de outras idéias que já nasciam na Europa e mantêm bem vivo o jogo da Antropologia. Aqui, com estes alunos, avançamos algumas décadas a caminho do final da primeira metade do século XX. Sem seguir cronologias rígidas voltaremos depois a outras importantes reviravoltas que aconteciam na Europa. Do etnocentrismo à relativização, em toda parte, em diferentes planos e estratégias, a Antropologia dá andamento ao jogo entre o “eu” – que faz Antropologia – e o “outro” – que cada vez mais pode nela intervir.
Quem ler Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, um clássico da Antropologia brasileira, vai aprender muita coisa sobre a cultura brasileira. Vai aprender que a Antropologia Social se faz, em larga medida, na observação de universos microscópicos, pela análise de pequenos quadros do cotidiano, pelo estudo meticuloso do detalhe da prática social. Vai aprender o quanto se pode revelar da cultura brasileira a partir de um sistemático interesse pelo que os brasileiros fazem e pensam para criar um tipo de existência e uma forma particular de ser na vida que faz desta uma cultura única, singular. Vai ver que a Antropologia conhece uma cultura menos pelas suas manifestações oficiais, públicas, grandiloqüentes que pelas suas manifestações descontraídas, privadas, peculiares. Vai, enfim conhecer um grande livro. Vai se sentir ali como brasileiro, vai se reconhecer no detalhe, no cotidiano, na microscopia.
Mas, vai, também, o leitor de Casa Grande & Senzala , sentir uma oscilação na forma pela qual a cultura brasileira como um todo é explicada. Em certos momentos, vai
________________________________________________ 19
achar que a cultura brasileira pode ser explicada pelo clima, geografia e ambiente. Em outros, vai achar que ela se explica pelas raças e pela personalidade dos povos que a formaram. Ainda poderá achar que é a língua que aqui se fala a chave para entender a cultura. Vai ouvir falar de trocas, difusão, traços e elementos culturais se misturando para formarem a brasilidade.
Da língua à geografia, do povo à raça, da personalidade à família, tudo aparece e tem seu espaço numa hesitação e num arrojo típicos do grande aluno de Franz Boas que foi Gilberto Freyre.
Casa Grande & Senzala tem muito a ver com Boas por, pelo menos, dois motivos. O primeiro é esta oscilação e criatividade que Gilberto Freyre tão bem captou de seu professor. O segundo é pela incrível capacidade de Boas para a formação de grandes alunos que perpetuaram suas visões da cultura humana e do fazer da Antropologia.
Assim, pelo menos três e até talvez mais grupos de alunos desenvolveram e exploraram algumas das idéias principais lançadas como sementes pelos trabalhos do professor.
São, na verdade, visões da cultura que, comparando ao evolucionismo, a relativizam por colocar elementos próprios à vida do povo que produz essa cultura como chave para seu entendimento. Em outras palavras, são estudos que começam a fugir do etnocentrismo por conseguirem ver que o ambiente onde vive uma sociedade deve ser, por exemplo, fator importante para explicar sua cultura.
Um grupo de alunos parte, pois, para investigar a relação ente a cultura e o ambiente – geográfico, ecológico, físico –, buscando aí explicação para a cultura e a história das sociedades humanas. Um segundo parte para relacionar a mentalidade, a psicologia dos indivíduos com a cultura por eles vivida. É a famosa escola personalidade e cultura. Um terceiro grupo investiga as relações entre linguagem e cultura.
Vamos examiná-los um pouco mais de perto. Estes grupos são muito importantes, pois, através deles, mais e mais a Antropologia escapava ao etnocentrismo e relativizava. O “outro” já era olhado com a preocupação de entendê-lo segundo seus próprios problemas, características, segundo sua própria lógica.
Começarei pela escola personalidade e cultura, que não só produziu boa Antropologia como também best-sellers. Ruth Benedict e Margaret Mead, dois dos seus nomes mais famosos, venderam muitos livros nos Estados Unidos, onde foram escritos e editados, e no resto do mundo, onde foram traduzidos. Foi uma escola que relativizou e muito. Comparou a sociedade americana com sociedades tribais fazendo um trabalho de ida ao “outro” e volta ao “eu”. Estabeleceu fértil diálogo com as teorias produzidas pela Psicologia. Em suma, instigou, agitou e renovou dentro da Antropologia. Mas, o que é, enfim, esta corrente de pensamento que tanto sucesso fez extrapolando até o mundo acadêmico e sendo lida por muita gente?
Vou dar um exemplo da sua penetração e tentar explicar rapidamente seus fundamentos.
Estava trabalhando, como professor do segundo grau de um famoso colégio do Rio de Janeiro, às vésperas da copa do mundo de futebol. Todos sabíamos que as aulas batiam com o horário das transmissões televisivas dos jogos. Todos estávamos,