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4. OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA Boas e Malinowski Se else no final do século XIX homens (geralmen- te missionários e administradores) que possuíam um excelente conhecimento das* populações no meio das quais viviam — é o caso de Codrington, que publica em 1891 uma obra sobre os melanésios, de Spencer e Gillen, que relatam em 1899 suas observações sobre os aborígines australianos, ou de Junod, que escreve A Vida de uma Tribo Sul-africana (1898) — a etnografia propriamente dita só começa a exis- tir a partir do momento no qual se percebe que o pesquisa- dor deve ele mesto efetuar no campo sua própria pesquisa, e que esse trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa. A revolução que ocorrerá da nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é considerável: ela põe fim à repartição das tarefas, até então habitualmente divididas entre o observador (viajante, missionário, administrador) entregue ao papel subalterno de provedor de informações, e o pesquisador erudito, que, tendo permanecido na metrópole, recebe, analisa e interpreta — atividade nobre! — essas informações. O pesquisador compreende a partir desse mo- . 76 OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA ã mento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir vide” compartilhar a “intimidade dos que devem ser considerados Cemv> Inão mais como informadores a serem questionados, e sim mibnva fcômo hóspedes que o recebem e mestrésTque” o “ensinam. dra Ele aprende então, como alt â i entre eles, mas a viver com pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições de estudo radicalmente diferentes das que conheciam o viajante do século XVIII e até o missionário ou o administrador do século XIX, residindo geralmente fora da sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e infor- qual madores: este último termo merece ser repetido. Em suma, «Ae ya) à antropologia se torna pela primeira vez uma atividade ao livre, levada, como diz Malinowski, “ao vivo”, em uma ar, per “natureza imensa, virgem e aberta” “LG Go) Esse trabalho de campo, como o chamamos ainda hoje, mobo “Monge de ser visto como um modo de conhecimento secundá- afAsario servindo para ilustrar uma tese, é considerado como a própria fonte de pesquisa. Orientou a partir desse momento Cemipoja abordagem da nova ger: primeiros anos do século XX, realizou estadias prolongadas “2 lentre as populações do mundo inteiro. Em 1906 e 1908, fonte StRadclifte-Brown estuda os habitantes das ilhas Andaman. pesquinEm 1909 e T910, Seligman dirige uma missão no Sudão. Alguns anos mais tarde, Malinowski volta para a Grã-Breta- nha, impregnado do pensamento e dos sistemas de valores que lhe revelou a população de um minústulo arquipélago melanésio. A partir daí. as missões de pesquisas etnográficas e a publicação das obras que delas resultam se seguem em um ritmo ininterrupto. Em 1901, Rivers, um dos fundado- res da antropologia inglesa, estuda os Todas da Índia; após a Primeira Guerra Mundial, Evans-Pritchard estuda os . Azandés (trad. franc. 1972) e os Nuer (trad. franc. 1968); Nadel, os Nupes da Nigéria; Fortes, os Tallensi; Margaret * Mead, os insulares da Nova Guiné. etc. ção de etnólogos que, desde os | 78 OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA qual se inscreve. Claro; Morgan e, muito antes dele, Montes- quieu tinham aberto o caminho a essa pesquisa cujo objeto é a totalidade das relações sociais e dos elementos que a constituem. Mas a diferença é que, a partir de Boas, estima- se que para compreender o lugar particular ocupado por esse costume não se pode mais confiar nos investigadores e; 4 oramuito menos nos que, da “metrópole”, confiam neles. Ape- 2 nas o antropólogo pode elaborar uma monografia, istoyg, chgruNdar conta cientificamente de uma microssociedade, apreen- Sax dida em sua totalidade e considerada em sua autonomia teórica. Pela primeira vez, o teórico e o observador estão - |. !finalmente reunidos. Assistimos ao nascimento de uma ver: GR dadeira etnografia profissional que não se contenta mais em «8 + coletar materiais à maneira dos antiquários, mas procura detectar o que faz a unida ultura que se expressa através desses diferentes materiais. SL DE Eras Por outro lado, Boas considera, e isso muito antes de = — | Griaule, do qual falaremos mais adiante, que não há objeto A + |nobre nem objeto indigno da ciência. As piadas de um con- Mepha tador são tão importantes quanto a mitologia que expressa obflo o patrimônio metafísico do grupo. Em especial, a maneira noto" pela qual as sociedades tradicionais, na voz dos mais humil-” mio des entre eles, classificam suas atividades mentais e sociais, aa deve ser levada em cons . B inelumorituição do que hoje chamamos de “etnociências”. dacé Finalmente, ele foi um dos primeiros a nos mostrar não + apenas a importância, mas também a necessidade, para e) Imocenetnólogo, do acesso à (língua) da cultura na qual trabalha. xe As tradições que estuda poderiam ser-lhe traduzidas. Ele próprio deve recolhê-las na língua de seus interlocutores. G apra Pode parecer surpreendente, levando em contá o que +. foi dito, que Boas, exceto entre os profissionais da antropo- “ ração. Boas anuncia assim a cons; fo E E : e CEA =, logia, seja praticamente desconhecido. Isso se deve princi- | SUR “* palmente a duas razões: á puma — mental? > sobre a relação da cultura. da língua e do etnólogo, cf. Etieaiêr mente. após Boas. Sapir (1967) e Leenhardt (1946) et A ida a Ce fas crus APRENDER ANTROPOLOGIA 79 1) multiplicando as comunicações e os artigos, ele nun-" ca escreveu nenhum livro destinado ao público erudito, e os textos que nos deixou são de uma concisão e de um rigor ascético. Nada que anuncie, por exemplo, a emoção que se pode sentir (como veremos logo) na leitura de um Mali- nowski; ou que lembre o charme ultrapassado da prosa enfei- tada de um Frazer; aê 2) nunca formulou uma verdadeira teoria, tão estranho ( “Ns era-lhe o espírito de sistema; e a generalização apressada e parecia-lhe o que há de mais distante do espírito científico. As ambições dos primeiros tempos — quero falar dos afres- cos gigantescos do século XIX, que retratam os primórdios da humanidade mas expressam simultaneamente os primór- dios da antropologia, isto é uma antropologia principalmente — sucedem, com ele, a modéstia e a sobriedade da matu- vidade. - De quatificr modo, a influência de Boas foi considerá- vel: Foi um dos primeiros etnógrafos. À sua preocupação de precisão na descrição dos fatos observados, acrescentava-se a de conservação metódica do patrimônio recolhido (foi con- servador do museu de Nova Iorque). Finalmente, foi, en- quanto professor, o grande pedagogo que formou a primeira geração de antropólogos americanos (Kroeber, Lowie, Sapir, Herskovitz, Linton. .. e,em seguida, R. Benedict, M. Mead). Ele permanece sendo o mestre incontestado da antropologia americana na primeira metade do século XX. SM - MALINOWSKI (1884-1942) Malinowski dominou incontestavelmente a cena antro- pológica, de 1922, ano de publicação dê sua primeira obra, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, até sua morte, em 1942. 1) Se não foi o primeiro a conduzir cientificamente uma. experiência etnográfica, isto é, em primeiro lugar, a APRENDER ANTROPOLOGIA 81 sem referir-se a sua história. Enquanto Frazer procurava res- ponder à “pergunta: “Como nossa sociedade chegou a se tornar o que é7”:; e respondia escrevendo essa “obra épica da humanidade” que é O Ramo de Ouro, Malinowski se pergunta o que é uma sociedade dada em si mesma e o que a torna viável para os que a ela pertencem, observando-a no presente através da interação dos aspectos que a constituem. Com Malinowski, a antropologia se torna uma “ciência” da alteridade que vira as costas ao empreendimento evolu- cionista de reconstituição das origens da civilização, e se dedica ao estudo das lógicas particulares características de cada cultura. O que o leitor aprende ao ler Os Argonautas é que os costumes dos Trobriandeses, tão profundamente diferentes dos nossos, têm uma significação e uma coerência. Não são puerilidades que testemunham de alguns vestígios da humanidade, e sim sistemas lógicos perfeitamente elabo- rados. Hoje, tios os etnólogos estão convencidos de que as sociedades diferentes da nossa são sociedades humanas tanto quanto a nossa, que os homens e mulheres que nelas vivem são adultos que se comportam diferentemente de nós, e não “primitivos”, autômatos atrasados (em todos os sentidos do termo) que pararam em uma época distante e vivem presos a tradições estúpidas. Mas nos anos 20 isso era propriamente revolucionário. 3) A fim de pensar essa -toerência interna, Malinowski elabora uma teoria (o funcionalismo) que tira seu modelo das ciências da natureza: o indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como fun- ção .a de satisfazer à sua maneira essas necessidades funda- mentais. Cada uma realiza isso elaborando instituições (eco- nômicas, políticas, jurídicas, educativas. . .), fornecendo res- postas coletivas organizadas, que constituem, cada uma a seu modo, soluções originais que permitem atender a essas necessidades. 4) Uma outra característica do pensamento do autor de Os Argonautas é, ao nosso ver, sua preocupação em abrir 7) OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA as fronteiras disciplinares, devendo o homem ser estudado através da tripla articulação do social, do psicológico e do biológico. Convém em primeiro lugar, para Malinowski, lo-” calizar a relação estreita do social e do biológico; o que decorre do ponto anterior, já que, para ele, uma sociedade funcionando como um organismo, as relações biológicas de- vem ser consideradas não apenas como o modelo epistemo- lógico que permite pensar as relações sociais, e sim com seu próprio fundamento. Além disso, uma verdadeira ciênc da sociedade implica, ou melhor, inclui o estudo das moti- vações psicológicas, dos comportamentos, o estudo dos so- nhos e dos desejos do indivíduo. E Malinowski, quanto à. esse aspecto (gue o separa radicalmente, como veremos, de Durkheim), vai muito além da análise da afetividade de seus interlocutores. Ele procura reviver nele próprio os sentimentos dos outros, fazendo da observação participante uma participação psicológica do pesquisador, que deve “com- preender e compartilhar os sentimentos” destes últimos “inte- riorizando suas reações emotivas”. O fato de a obra (e a própria personalidade) de Mali- nowski ter sido provavelmente a mais controvertida de toda , a história da antropologia (isso inclusive quando era vivo) se deve a duas razões, ligadas ao caráter sistemático de sua reação ao evolucionismo. Té 1),Os antropólogos da época vitoriana identificavam-se totalmente com a sua sociedade, isto é, com a “civilização industrial”, considerada como “a civilização” tout court, e com seus henefícios. Em relação a esta, os costumes dos povos 3. É essa vontade de alcançar o homem em todas as suas dimensões, e, notadamente, de não dissociar o grupo do indivíduo, que faz com que seja um dos primeiros etnólogos a interessar-se pelas obras de Freud. Mas devemos reconhecer que cle demonstra uma grande incompreensão da psicanálise 84 OS PAIS FUNDADORES DA ETNOGRAFIA funcionalismo passa a ser a justificação de uma nova fase do colonialismo. Apesar disso, além das críticas que o próprio Malinowski contribuiu em provocar, tudo o que devemos a ele perma- - necg ainda hoje considerável. 1) Compreendendo que o único modo de conhecimento em profundidade dos outros é a participação a sua existên- cia, ele inventa literalmente e é o primeiro a pôr em prática j a observação participante, dando-nos o exemplo do que deve ser o estudo intensivo de uma sociedade que nos é estranha O fato de efetuar uma estadia de longa duração impregn: do-se da mentalidade de seus hóspedes e esforçando-se para pensar em sua própria língua pode parecer banal hoje. Não o era durante os anos 1914-1920 na Inglaterra, e muito me- nos na França. Malinowski nos ensinou a olhar. Deu-nos o exemplo daquilo que devia ser uma pesquisa de campo, que não tem mais nada a ver com a atividade do “investigador” questionando “informadores”. 2) Em Os Argonautas do Pacífico Ocidental, pela pri- meira vez, o social deixa de ser anedótico, curiosidade exó- tica, descrição moralizante ou coleção exaustiva erudita. Pois, para alcançar o homem em todas as suas dimensões, é pre- ciso dedicar-se à observação de fatos sociais aparentemente minúsculos e insignificantes, cuja significação só pode ser encontrada nas suas posições respectivas no interior de uma totalidade mais ampla. Assim, as canoas trobriandesas (das | quais falamos acima) são descritas em relação ao grupo que as fabrica e utiliza, ao ritual mágico que as consagra, às regulamentações que definem sua posse, etc. Algumas trans- portando de ilha em ilha colares de conchas vermelhas, outras, pulseiras de conchas brancas, efetuando em sentidos contrários percursos invariáveis, passando necessariamente de novo por seu local de origem, Malinowski mostra que APRENDER ANTROPOLOGIA 85 estamos frente a um processo de troca generalizado, irredu- tível à dimensão econômica apenas, pois nos permite encon- trar os significados políticos, mágicos, religiosos, estéticos do grupo inteiro. Os Jardins de Coral, o segundo grande livro de Mali- nowski, trabalha com a mesma abordagem. Esse “estudo dos métodos agrícolas e dos ritos agrários nas ilhas Trobriand”, longe de ser uma pesquisa especializada sobre um fenômeno agronômico dado, mostra que a agricultura dos Trobriandeses inscreve-se na totalidade social desse povo, e toca em muitos outros aspectos que não a agricultura. 5) Finalmente, uma das grandes qualidades de Mali- nowski é sua faculdade de restituição da existência desses homens e dessas mulheres que puderam ser conhecidos ape- nas através de uma relação e de uma experiência pessoais. Mesmo quando estuda instituições, não são nunca vistas como abstrações reguladoras da vida de atores anônimos. Seja em Os Argonautçs ou Os Jardins de Coral, ele faz re- viver para nós esse poo trobriandês que não poderemos nunca mais confundir com outras populações “selvagens”. O homem nunca desaparece em proveito do sistema. Ora, essa exigência de conduzir um projeto científico sem renun- ciar à sensibilidade artística chama-se etnologia. Malinowski ensinou a muitos entre nós não apenas a olhar, mas a escre- ver, restituindo às cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor. Quanto a isso, Os Argonautas me parece exemplar. É um livro escrito num estilo magnífico que aproxima seu autor de um outro polonês que, como ele, viveu na Ingla- terra, expressando-se em inglês: Joseph Conrad, e que anun- cia as mais bonitas páginas de Tristes Trópicos, de Lévi- Strauss, A antropologia contemporânea é frequentemente amea- çada pela abstração e sofisticação dos protocolos, podendo, como mostrou Devereux (1980), ir até a destruição do objeto que pretendia estudar,-e, conjuntamente, da especificidade da nossa disciplina. “Um historiador”, escreve Firth, “pode