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PAZ, EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E ETNOMATEMÁTICA
Tipologia: Notas de estudo
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por Ubiratan D’Ambrosio
Resumo: Neste artigo eu elaboro sobre as múltiplas dimensões de paz e falo sobre a responsabilidade do educador, em particular do educador matemático, na busca de paz para a humanidade. Muitos perguntam “Mas o que tem a ver Educação Matemática com Paz?”. Procuro mostrar que tem tudo a ver, relacionando matemática com paz e chego à proposta da etnomatemática como um caminho para preservar a diversidade e eliminar a desigualdade discriminatória, dando assim origem a uma nova organização da sociedade. Palavras-chave: Etnomatemática, Metas da Educação Matemática, Sociologia da Educação Matemática. Abstract : In this paper I elaborate on the several dimensions of peace and I discuss the responsibility of educators, particularly mathematics educators, in the search for peace for mankind. Many question: “But how does Mathematics Education relate to Peace?”. I try to show how do they relate by relating mathematics and peace and I propose ethnomathematics as a way to preserve diversity and at the same time to avoid discriminatory inequity, thus leading to a new society. Key words: Ethnomathematics, Goals of Mathematics Education, Sociology of Mathematics Education.
Introdução.
Na sua luta por uma humanidade em Paz, dois eminentes matemáticos, Albert Einstein e Bertrand Russell, elaboraram, em 1955, o Manifesto Pugwash, onde se lê: "Esqueçam-se de tudo e lembrem-se da humanidade".^1 Procuro, nas minhas propostas de Educação Matemática, seguir os ensinamentos desses dois grandes mestres, que nos legaram muito de Matemática, mas sobretudo de humanidade. Falar em humanidade é procurar atingir um estado de PAZ, considerada nas suas dimensões múltiplas: Paz Interior, Paz Social, Paz Ambiental e Paz Militar. Sem essa paz total não há possibilidade de sobrevivência para a humanidade. Portanto, é prioridade máxima que a educação seja focalizada na Paz. O ano 2000 foi declarado pela UNESCO o Ano Internacional da
Cultura de Paz.^2 Portanto, a Educação para a Paz deve ser uma área prioritária nas discussões sobre currículo.^3 Coincidentemente, a União Matemática Internacional declarou 2000 o Ano Internacional da Matemática.^4 Como se relacionam esses dois propósitos de se iniciar o século XXI? Estamos vivendo um momento de transição do paradigma dominante, responsável por sociedades desiguais e excludentes, por injustiça e opressão, para um novo paradigma, ou trans- paradigma, ainda mal definido, capaz de proporcionar uma vida digna para toda a humanidade. A educação é a estratégia para evitar que a desordem social e a corrupção institucional prevaleçam nesse difícil momento de transição. Uma educação voltada para a PAZ TOTAL.^5 Atingir PAZ TOTAL é também a única justificativa de qualquer esforço para o avanço científico e tecnológico, e deveria ser o substrato de todo discurso sobre Educação e sobre o fazer científico e tecnológico, particularmente o fazer matemático. Muitos ainda questionam: "Mas o que tem isso a ver com a Educação Matemática?". Eu respondo "Tem tudo a ver."^6 Neste trabalho vou elaborar sobre essa afirmação. Como um Educador Matemático eu me vejo como um educador que tem Matemática como sua área de competência e seu instrumento de ação, não como um matemático que utiliza a Educação para a divulgação de habilidades e competências matemáticas. Como Educador Matemático procuro utilizar aquilo que aprendi como Matemático para realizar minha missão de Educador. Minha ciência e meu conhecimento estão subordinados ao meu humanismo. Em termos muito claros e diretos: o aluno é mais importante que programas e conteúdos. A Educação é a estratégia mais importante para levar o indivíduo a estar em paz consigo mesmo e com o seu entorno social, cultural e natural e a se localizar numa realidade cósmica. Eu poderia sintetizar meu posicionamento dizendo que só se justifica insistirmos em Educação para todos se for possível conseguir, através dela, melhor qualidade de vida e maior dignidade da humanidade como um todo, preservando a diversidade mas eliminando a desigualdade discriminatória, assim dando origem a uma nova organização da sociedade. A dignidade de cada indivíduo se manifesta no encontro com si próprio. Portanto atingir o estado de Paz Interior é uma prioridade. Muitos ainda estarão perguntando "Mas o que tem isso a ver com Educação Matemática?" E eu insisto em dizer "Tem tudo a ver".^7 Atingir o estado de paz interior é difícil, sobretudo devido a todos os problemas que enfrentamos no dia-a-dia, particularmente no relacionamento com o outro. Será que o outro estará tendo dificuldades em atingir o estado de sua Paz Interior? Muitas vezes vemos que o outro está tendo problemas que resultam de dificuldades materiais, como falta de segurança, falta de emprego, falta de salário, muitas vezes até mesmo falta de casa e de comida. A solidariedade com o próximo é a primeira manifestação de nos sentirmos parte de uma sociedade. A Paz Social será
Claro, muitos dirão, como já disseram: "Mas isso é um discurso demagógico. Essa destruição horrível só se fará quando necessário. E é importante que nossos jovens estejam preparados para o necessário." E os conteudistas dizem, em última instância, o seguinte: "É necessário conhecer bem os instrumentais do inimigo para poder derrotá-los". Milhões foram nessa conversa durante toda a história da humanidade e em particular durante a Guerra Fria, com perdas materiais e morais para ambas as partes em conflito. Seria fundamental lembrar que os interessados nesse estado de coisas justificam dizendo ser isso necessário porque o alvo da nossa bomba destruidora é um indivíduo que não professa o nosso credo religioso, que não é do nosso partido político, que não segue nosso modelo econômico de propriedade e produção, que não tem nossa cor de pele ou nossa língua, enfim o alvo de nosso bomba destruidora é um indivíduo que é diferente. Tem sido e continua sendo esse o conceito do que é necessário nas relações sociais e políticas. O trinômio de 2°grau serviu como exemplo para argumentar. A importância tão feia que destacamos de uma coisa tão linda como o trinômio do 2°grau é interessante ser comentada. Não se propõe eliminar o trinômio de 2°grau dos programas, mas sim que se utilize algum tempo para mostrar, criticamente, as coisas feias que se faz com ele e destacar as coisas lindas que se pode fazer com ele. Há uma moralidade associada ao conhecimento e em particular ao conhecimento matemático. Por que insistirmos em Educação e Educação Matemática e no próprio fazer matemático se não percebemos como nossa prática pode ajudar a construir uma humanidade ancorada em respeito, solidariedade e cooperação? A Paz total depende essencialmente de cada indivíduo se conhecer e se integrar na sua sociedade, na humanidade, na natureza e no cosmos. Ao longo da existência de cada um de nós pode-se aprender matemática, mas não se pode perder o conhecimento de si próprio e criar barreiras entre indivíduos e os outros, entre indivíduos e a sociedade, e gerar hábitos de desconfiança do outro, de descrença na sociedade, de desrespeito e de ignorância pela humanidade que é uma só, pela natureza que é comum a todos e pelo universo como um todo.
Conhecimento e ação
A geração, organização intelectual e social e a difusão do conhecimento dão o quadro geral no qual procuro desenvolver minhas propostas específicas para a educação matemática. Minhas idéias muitas vezes parecem um tanto vagas, imprecisas e exploratórias. Isto reflete o que se poderia chamar o estado da arte na teoria do conhecimento. Sabemos muito pouco sobre como
pensamos. As contribuições recentes da cibernética e da inteligência artificial e mais recentemente dos neurologistas tornam aquilo que normalmente se estuda nas disciplinas de psicologia, de aprendizagem e correlatas pelo menos obsoleto.^11 Daí a apresentação bem geral e o tom algumas vezes impreciso e vago desta parte, na qual proponho um modelo na qual podem se enquadrar praticamente todos os enfoques modernos ao conhecimento. Ao longo da história se reconhecem esforços de indivíduos e de todas as sociedades para encontrar explicações, formas de lidar e conviver com a realidade natural e sociocultural. Isto deu origem aos modos de comunicação e às línguas, às religiões e às artes, assim como às ciências e às matemáticas, enfim a tudo o que chamamos conhecimento. Indivíduos e a espécie como um todo se destacam entre seus pares e atingem seu potencial de criatividade porque conhecem. Todo conhecimento é resultado de um longo processo cumulativo, onde se identificam estágios, naturalmente não dicotômicos entre si, quando se dá a geração, a organização intelectual, a organização social e a difusão do conhecimento. Esses estágios são normalmente objeto de estudo de teoria da cognição, de epistemologia, de história e sociologia, e de educação e política. O processo como um todo, extremamente dinâmico e jamais finalizado, está obviamente sujeito a condições muito específicas de estímulo e de subordinação ao contexto natural, cultural e social. Assim é o ciclo de aquisição individual e social de conhecimento. Minhas reflexões sobre educação multicultural levaram-me a ver o ato de criação como o elemento mais importante em todo esse processo, como uma manifestação do presente na transição entre passado e futuro. Isto é, a aquisição e elaboração do conhecimento se dá no presente, como resultado de todo um passado, individual e cultural, com vistas às estratégias de ação no presente projetando-se no futuro, desde o futuro imediato até o de mais longo prazo, modificando assim a realidade e incorporando a ela novos fatos, isto é, "artefatos" e "mentefatos". Esse comportamento é intrínseco ao ser humano, e resultam de impulsos naturais para a sobreviver e transcender. Embora se possa reconhecer aí um processo de construção de conhecimento, minha proposta é mais ampla que o construtivismo, que se tornou efetivamente uma proposta pedagógica, e que privilegia o racional. O enfoque holístico que proponho incorpora o sensorial, o intuitivo, o emocional e o racional através da vontade individual de sobreviver e de transcender. Sobrevivência e transcendência constituem a essência de ser [verbo] humano. O ser [substantivo] humano, como todas as espécies vivas, procura apenas sua sobrevivência. A vontade de transcender é o traço mais distintivo da nossa espécie. Não se sabe de onde provém a vontade de sobreviver como indivíduo e como espécie. Sem dúvida, está incorporada ao mecanismo genético a partir da origem da vida. Simplesmente constata-se que essa força é a essência de todas as espécies vivas. Nenhuma espécie, e portanto
O processamento da informação (input) tem como resultado (output) estratégias para ação. Há evidência que essas ações são produtos inteligentes. Em outros termos, o homem executa seu ciclo vital não apenas pela motivação animal de sobrevivência, mas subordina a sobrevivência a objetivos maiores, através da consciência do fazer/saber, isto é, faz porque está sabendo e sabe por estar fazendo.^14 Isto é, transcende o pulsão de sobreviver. As ações para transcendência, que sempre acompanham as ações para sobrevivência, têm seu efeito na realidade, criando novas interpretações e utilizações da realidade natural e artificial, modificando-a pela introdução de novos fatos, artefatos e mentefatos. Há uma incoerência nas denominações concreto e abstrato, pois repousam no modo de captar esses fatos, enquanto aos falarmos em artefato e mentefato estamos pondo ênfase na geração dos fatos. O conhecimento é o gerador do saber, que vai ser decisivo para a ação. Por conseguinte, é no comportamento, na prática, no fazer que se avalia, redefine e reconstrói o conhecimento. A consciência é o impulsionador da ação do homem em direção à sobrevivência e transcendência, ao saber fazendo e fazer sabendo. O processo de aquisição do conhecimento é, portanto, essa relação dialética saber/fazer, impulsionado pela consciência, e se realiza em várias dimensões. Das várias dimensões na aquisição do conhecimento destacamos quatro, que são as mais reconhecidas e interpretadas nas teorias do conhecimento: as dimensões sensorial, intuitiva, emocional e racional. Numa concessão a classificações disciplinares, diríamos que o conhecimento religioso é favorecido pelas dimensões intuitiva e emocional, enquanto o conhecimento científico é favorecido pelo racional, e o emocional prevalece nas artes. Naturalmente essas dimensões não são dicotomizadas nem hierarquizadas, mas são complementares. Desse modo, não há interrupção, não há dicotomia, entre o saber e o fazer, não há priorização entre um e outro, nem há prevalência nas várias dimensões do processo. Tudo se complementa num todo que é o comportamento e que tem como resultado o conhecimento. Conseqüentemente, as dicotomias corpo/mente, matéria/espírito, manual/intelectual e outras tantas que se impregnaram no mundo moderno, são meramente artificiais.
Do individual ao coletivo
O presente, como interface entre passado e futuro, se manifesta pela ação. O presente está assim identificado com comportamento, tem a mesma dinâmica do comportamento, isto é, se alimenta do passado, é resultado da história do indivíduo e da coletividade, de conhecimentos anteriores, individuais e coletivos, condicionados pela projeção do indivíduo no futuro. Tudo a
partir de informação proporcionada pela realidade, portanto pelo presente. Na realidade estão armazenadas todos os fatos passados, que informam o[s] indivíduo[s]. As informações são processadas pelo[s] indivíduo[s] e resultam em estratégias de ação que vai dar origem a novos fatos (artefatos e/ou mentefatos) que são incorporados à realidade, obviamente modificando-a, armazenando-se na coleção de fatos e eventos que a constituem. A realidade está, portanto, em incessante modificação. O passado assim se projeta, pela intermediação de indivíduos, no futuro. Mais uma vez a dicotomia passado e futuro se vê como artificialidade, pois o instante que vem do passado e se projeta no futuro adquire assim o que seria uma transdimensionalidade que poderíamos pensar como uma dobra (um pli no sentido das catástrofes de René Thom). Esse repensar a dimensionalidade do instante dá à vida, incluindo os "instantes" do nascimento e da morte, um caráter de continuidade, de fusão do passado e do futuro no instante. Daí reconhecermos que não pode haver um presente congelado, como não há uma ação estática, como não há comportamento sem uma retroalimentação instantânea (avaliação) que resulta de seu efeito. Assim podemos ver o comportamento como o elo entre a realidade, que informa, e a ação, que a modifica. A ação gera conhecimento, isto é, a capacidade de explicar, de lidar, de manejar, de entender a realidade, gera o matema. Essa capacidade se transmite e se acumula horizontalmente, no convívio com outros, contemporâneos, através de comunicações, e verticalmente, de cada indivíduo para si mesmo (memória) e de cada geração para as próximas gerações (memória histórica). Note que através do que chamamos memória, que é da mesma natureza que os mecanismos de informação associados aos sentidos, à informação genética e aos mecanismos emocionais, as experiências vividas por um indivíduo no passado se incorporam à realidade e informam esse indivíduo da mesma maneira que os demais fatos da realidade. O indivíduo não é só. Há bilhões de outros indivíduos da mesma espécie com o mesmo ciclo vital: .... ---> REALIDADE informa INDIVIDUO que processa e executa uma AÇÃO que modifica a REALIDADE que informa INDIVíDUO ---> .... e bilhões de indivíduos de outras espécies com comportamento próprio, realizando um ciclo vital semelhante, mas próprio ao indivíduo. O processo de gerar conhecimento como ação é enriquecido pelo intercâmbio com outros imersos no mesmo processo através do que chamamos comunicação. A descoberta do outro e de outros, presentes ou distantes, contemporâneos ou do passado, é essencial para o fenômeno vida. Todos estão, incessantemente, contribuindo uma parcela para modificar a realidade. Todo indivíduo está inserido numa realidade cósmica como um elo entre toda uma história desde o início dos tempos e das coisas, um big-bang ou equivalente, até o momento, o agora e aqui. Todas as experiências do passado, reconhecidas e identificadas ou não, constituem a realidade
Quando sociedades, e portanto sistemas culturais, se encontram e se expõem mutualmente, elas estão sujeitas a uma dinâmica de interação que produz um comportamento intercultural que se manifesta em grupos de indivíduos, em comunidades, em tribos e nas sociedades como um todo. A interculturalidade vem se intensificando ao longo da história da humanidade.
O Programa Etnomatemática
A exposição acima sintetiza a fundamentação teórica que serve de base a um programa de pesquisa sobre a geração, organização intelectual, organização social e difusão do conhecimento. Na linguagem acadêmica poder-se-ia dizer um programa interdisciplinar abarcando o que constitui o domínio das chamadas ciências da cognição, da epistemologia, da história, da sociologia e da difusão. Metodologicamente, esse programa reconhece que na sua aventura enquanto espécie planetária o homem (espécie homo sapiens sapiens ), bem como as demais espécies que a precederam, os vários hominídeos reconhecidos desde há 4.5 milhões de anos antes do presente, tem seu comportamento alimentado pela aquisição de conhecimento, de fazer(es) e de saber(es) que lhes permite sobreviver e transcender através de maneiras, de modos, de técnicas ou mesmo de artes [techné ou tica] de explicar, de conhecer, de entender, de lidar com, de conviver com [matema] a realidade natural e sociocultural [etno] na qual ele, homem, está inserido. Ao utilizar, num verdadeiro abuso etimológico, as raízes tica, matema e etno, dei origem à minha conceituação de etnomatemática. Naturalmente, em todas as culturas e em todos os tempos, o conhecimento, que é gerado pela necessidade de uma resposta a problemas e situações distintas, está subordinado a um contexto natural, social e cultural. Indivíduos e povos têm, ao longo de suas existências e ao longo da história, criado e desenvolvido instrumentos de reflexão, de observação, instrumentos teóricos e associados a esses técnicas, habilidades (artes, técnicas, techné, ticas) para explicar, entender, conhecer, aprender para saber e fazer como resposta a necessidades de sobrevivência e de transcendência (matema), em ambientes naturais, sociais e culturais (etnos) os mais diversos. Daí chamarmos o exposto acima de Programa Etnomatemática. O nome sugere o corpus de conhecimento reconhecido academicamente como Matemática. De fato, em todas as culturas encontramos manifestações relacionadas e mesmo identificadas com o que hoje se chama Matemática (processos de organização, classificação, contagem, medição, inferência), geralmente mescladas
ou dificilmente distinguíveis de outras formas, hoje identificadas como Arte, Religião, Música, Técnicas, Ciências. Em todos os tempos e em todas as culturas, Matemática, Artes, Religião, Música, Técnicas, Ciências foram desenvolvidas com a finalidade de explicar, de conhecer, de aprender, de saber/fazer e de predizer (artes divinatórias) o futuro. Todas aparecem, num primeiro estágio da história da humanidade e da vida de cada um de nós, indistinguíveis como formas de conhecimento. Estamos vivendo um período em que os meios de captar informação e o processamento da informação de cada indivíduo encontram nas comunicações e na informática instrumentos auxiliares de alcance inimaginável em outros tempos. A interação entre indivíduos também encontra, na teleinformática, um grande potencial, ainda difícil de se aquilatar, de gerar ações comuns. Nota-se em alguns casos o predomínio de uma forma sobre outra, algumas vezes a substituição de uma forma por outra e mesmo a supressão e a eliminação total de alguma forma, mas na maioria dos casos o resultado é a geração de novas formas culturais, identificadas com a modernidade. Ainda dominadas pelas tensões emocionais, as relações entre indivíduos de uma mesma cultura (intra-culturais) e sobretudo as relações entre indivíduos de culturas distintas (inter- culturais) representam o potencial criativo da espécie. Assim como a bio-diversidade representa o caminho para o surgimento de novas espécies, na diversidade cultural reside o potencial criativo da humanidade. Tem havido o reconhecimento da importância das relações inter-culturais. Mas lamentavelmente ainda há relutância no reconhecimento das relações intra-culturais na educação. Ainda se insiste em colocar crianças em séries de acordo com idade, em oferecer o mesmo currículo numa mesma série, chegando ao absurdo de se propor currículos nacionais. E ainda maior absurdo de se avaliar grupos de indivíduos com testes padronizados. Trata-se efetivamente de uma tentativa de pasteurizar as novas gerações! A pluralidade dos meios de comunicação de massa, facilitada pelos transportes, levou as relações inter-culturais a dimensões verdadeiramente planetárias. Inicia-se assim uma nova era que abre enormes possibilidades de comportamento e de conhecimento planetários, com resultados sem precedentes para o entendimento e harmonia de toda a humanidade. Não a homogeneização biológica ou cultural da espécie, mas a convivência harmoniosa dos diferentes, através de uma ética de respeito mútuo, solidariedade e cooperação. Naturalmente sempre existiram e agora serão mais notadas com maior evidência, maneiras diferentes de explicações, de entendimentos, de lidar e conviver com a realidade, graças aos novos meios de comunicação e transporte criando necessidade de um comportamento que transcenda mesmo as novas formas culturais. Eventualmente o tão desejado livre arbítrio, próprio do ser [verbo] humano, poderá se manifestar num modelo de transculturalidade que permitirá que
A abordagem a distintas formas de conhecer é a essência do Programa Etnomatemática. Na verdade, diferentemente do que sugere o nome, Etnomatemática não é apenas o estudo de "matemáticas das diversas etnias". Para compor a palavra Etno-matema-tica utilizei as raízes tica, matema e etno para significar que há várias maneiras, técnicas, habilidades (ticas) de explicar, de entender, de lidar e de conviver com (matema) distintos contextos naturais e sócio-econômicos da realidade (etnos). A disciplina denominada Matemática é na verdade uma Etnomatemática que se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebido algumas contribuições das civilizações indiana e islâmica, e que chegou à forma atual no séculos XVI e XVII, sendo a partir de então levada e imposta a todo o mundo. Hoje, essa matemática adquire um caráter de universalidade, sobretudo devido ao predomínio da ciência e tecnologia modernas, que foram desenvolvidas a partir do século XVII na Europa. Essa universalização é um exemplo do processo de globalização que estamos testemunhando em todas as atividades e áreas de conhecimento. Falava-se muito das multinacionais. Hoje, as multinacionais são, na verdade, empresas globais, para as quais não é possível identificar uma nação ou grupo nacional dominante. Essa idéia de globalização já começa a se revelar no início do cristianismo e do islamismo. Diferentemente do judaísmo, do qual essas religiões se originaram, bem como de inúmeras outras crenças nas quais há um povo eleito. O cristianismo e o islamismo são essencialmente religiões de conversão de toda humanidade à mesma fé, de todo o planeta subordinado à mesma igreja. Isso fica evidente no processo de expansão do Império Romano cristianizado e do Islão. O processo de globalização da fé cristã se aproxima do seu ideal com as grandes navegações. O catecismo, elemento fundamental da conversão, é levado a todo o mundo. Assim como o cristianismo é um produto do Império Romano levado a um caráter de universalidade com o colonialismo, também o são a matemática, a ciência e a tecnologia. No processo de expansão, o cristianismo foi se modificando, absorvendo elementos da cultura subordinada e produzindo variantes notáveis do cristianismo original do colonizador. Esperar-se-ia que igualmente as formas de explicar, conhecer, lidar, conviver com a realidade sociocultural e natural, obviamente distintas de região para região, e que são as razões de ser da Matemática, das ciências e da tecnologia, também passassem por esse processo de "aclimatação", resultado de uma dinâmica cultural. No entanto, isso não se deu e não se dá e esses ramos do conhecimento adquiriraram um caráter de absoluto universal. Não admitem variações ou qualquer tipo de relativismo. Isso se incorporou até no dito popular "tão certo quanto
dois mais dois são quatro". Não se discute o fato, mas sua contextualização na forma de uma construção simbólica que é ancorada em todo um passado cultural. A Matemática tem sido conceituada como a ciência dos números e das formas, das relações e das medidas, das inferências, e as suas características apontam para precisão, rigor, exatidão. Os grandes heróis da Matemática, isto é, aqueles indivíduos historicamente apontados como responsáveis pelo avanço e consolidação dessa ciência, são identificados na antigüidade grega e posteriormente, na Idade Moderna, nos países centrais da Europa, sobretudo Inglaterra, França, Itália, Alemanha. Os nomes mais lembrados são Tales, Pitágoras, Euclides, Descartes, Galileo, Newton, Leibniz, Hilbert, Einstein, Hawkings. São idéias e homens originários do Norte do Mediterrâneo. Portanto, falar dessa Matemática em ambientes culturais diversificados, sobretudo em se tratando de nativos ou afro-americanos ou outros não europeus, de trabalhadores oprimidos e de classes marginalizadas, além de trazer a lembrança do conquistador, do escravista, enfim do dominador, também se refere a uma forma de conhecimento que foi construído por ele, dominador, e da qual ele se serviu e se serve para exercer seu domínio. Mas isso também se passa com calças "jeans", que se mescla com as vestes tradicionais, ou com a "Coca-Cola", que aparece como uma opção para o guaraná, ainda preferido por muitos, ou com o rap, que está se popularizando e, junto com o samba, produzindo um novo ritmo. As formas tradicionais permanecem e se modificam pela presença das novas. A religião e a língua do dominador se modificaram ao incorporar as tradições do dominado. Mas a Matemática, com seu caráter de infalibilidade, de rigor, de precisão e de ser um instrumento essencial e poderoso no mundo moderno, teve sua presença firmada excluindo outras formas de pensamento. Na verdade, ser racional é identificado com dominar a Matemática. A Matemática se apresenta como um deus mais sábio, mais milagroso e mais poderoso que as divindades tradicionais e outras tradições culturais. Se isto pudesse ser identificado apenas como parte de um processo perverso de aculturação, através do qual se elimina a criatividade essencial ao ser [verbo] humano, eu diria que essa escolarização é uma farsa. Mas é pior, pois na farsa, uma vez terminado o espetáculo, tudo volta ao que era. Enquanto na educação o real é substituído por uma situação que é idealizada para satisfazer os objetivos do dominador. Nada volta ao real ao terminar a experiência educacional. O aluno tem suas raízes culturais, parte de sua identidade, e no processo essas são eliminadas. Essa eliminação produz o excluído. Isto é evidenciado, de maneira trágica, na Educação Indígena. O índio passa pelo processo educacional e não é mais índio ... mas tampouco branco. Sem dúvida a elevada ocorrência de suicídios entre as populações indígenas está associado a isso. Ora, isso se passa
Não se questiona a conveniência e mesmo a necessidade de ensinar aos dominados a língua, a matemática, a medicina, as leis do dominador, sejam esses índios e brancos, pobres e ricos, crianças e adultos. Chegamos a uma estrutura de sociedade e a conceitos de cultura, de nação e de soberania que impõem essa necessidade. O que se questiona é a agressão à dignidade e à identidade cultural daqueles subordinados a essa estrutura. A responsabilidade maior dos teóricos da educação é alertar para os danos irreversíveis que se podem causar a uma cultura, a um povo e a um indivíduo se o processo for conduzido levianamente, muitas vezes até com boa intenção, e fazer propostas para minimizar esses danos. Muitos educadores não se dão conta disso. O que justifica o papel central das idéias matemáticas em todas as civilizações [etnomatemáticas] é o fato de ela fornecer os instrumentos intelectuais para lidar com situações novas e definir estratégias de ação. Portanto a etnomatematica do indígena serve, é eficiente e adequada para as coisas daquele contexto cultural, naquela sociedade. Não há porque substituí- la. A etnomatemática do branco serve para outras coisas, igualmente muito importantes, propostas pela sociedade moderna e não há como ignorá-la. Pretender que uma seja mais eficiente, mais rigorosa, enfim melhor que a outra é, se removida do contexto, uma questão falsa e falsificadora. O domínio de duas etnomatemáticas, e possivelmente de outras, obviamente oferece maiores possibilidades de explicações, de entendimentos, de manejo de situações novas, de resolução de problemas. É exatamente isso que se faz pesquisa matemática -- e na verdade pesquisa em qualquer outro campo do conhecimento. O acesso a um maior número de instrumentos e de técnicas intelectuais dão, quando devidamente contextualizadas, muito maior capacidade de enfrentar situações e de resolver problemas novos, de modelar adequadamente uma situação real para, com esses instrumentos, chegar a uma possível solução ou curso de ação. Isto é aprendizagem por excelência, isto é, a capacidade de explicar, de apreender e compreender, de enfrentar, criticamente, situações novas. Aprender não é o mero domínio de técnicas, habilidades e nem a memorização de algumas explicações e teorias. A adoção de uma nova postura educacional é, na verdade, a busca de um novo paradigma de educação que substitua o já desgastado ensino-aprendizagem, que é baseado numa relação obsoleta de causa-efeito. Procura-se uma educação que estimule o desenvolvimento de criatividade desinibida conduzindo a novas formas de relações interculturais. Essas relações caracterizam a educação de massa e proporcionam o espaço adequado para preservar a diversidade e eliminar a desigualdade discriminatória, dando origem a uma nova organização da sociedade. Fazer da Matemática uma disciplina que preserve a diversidade e
elimine a desigualdade discriminatória é a proposta maior de uma Matemática Humanística. A Etnomatemática tem essa característica.
Notas
(^1) Joseph Rotblat: Scientists in the Quest for Peace. A History of the Pugwash Conferences 2. Cambridge: The MIT Press, 1972;p.137-140.
3 Ver o site http://www.unesco.org/manifesto2000/ Um dos bons trabalhos sobre o tema é o livro de Xesús R. Jares: Educación para la Paz. Su teoria y su práctica. Madrid: Editorial Popular, 1999. 4 5 http://wmy2000.math.jussieu.fr/ Ubiratan D’Ambrosio: Educação para uma sociedade em transição. Campinas: Papirus Editora, 1999. 6 Ubiratan D’Ambrosio: Mathematics and peace: Our resposibilities, Zentralblatt für Didaktik der Mathematik/ZDM , Jahrgang 30, Juni 1998, Heft 3; pp.67-73. 7 Ubiratan D’Ambrosio: A Era da Consciência , Editora Fundação Peirópolis, São Paulo, 1997. 8 Ubiratan D’Ambrosio: Diversity, Equity, and Peace: From Dream to Reality. IN Multicultural and Gender Equity in the Mathematics Classroom. The Gift of Diversity 1997 Yearbook of the NCTM/National Council of Teachers of Mathematics, Janet Trentacosta and Margaret J. Kenney, eds., Reston: NCTM, 1997; pp. 243-248. 9 Ubiratan D’Ambrosio: On Environmental mathematics education Zentralblatt für Didaktik der Mathematik 10 ZDM 94/6 pp.171-174. Boaventura de Sousa Santos: A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência, 11 v.1, São Paulo: Editora Cortez, 2000; p.383. Brian Butterworth: What Counts. How the Brain Is Hardwired for Math, New York 12 : The Free Press, 1999. O instante é uma questão filosófica da mesma natureza que o irracional, que dominou a filosofia desde a antigüidade grega. No século XIX, quando Richard Dedekind colocou em termos precisos o conceito de irracional, deu-se significado ao instante. 13 Oliver Sacks: Um Antropólogo em Marte, São Paulo: Companhia das Letras, 1995; p.141. 14 Este argumento é semelhante ao de Paulo Freire quando diz que “o ser humano é o único [ser vivo] que tem consciência da sua inconclusão”. Ver A conversation with Paulo Freire, For the Learning of Mathematics, vol. 17, n.3, November 1997, pp.7-10. 15 Isso foi muito bem ilustrado por Anthony Burgess no seu clássico A Laranja Mecânica [ A Clockwork Orange, 1962], que em 1971 deu origem a uma película de grande repercussão dirigida por Stanley Kubrick.