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Guias e Dicas
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REIS, João Jose. A Revolta dos Males 1835, Trabalhos de História

Em abril de 1835, um periódico norte-americano, atento aos embates que a escravidão vinha provocando no continente, noticiou: "Na manhã de 25 de janeiro, toda a cidade da Bahia (Salvador) e sua vizinhança foi lançada a um estado da maior excitação em consequência de uma insurreição de escravos da nação nagô (....)"

Tipologia: Trabalhos

2020

Compartilhado em 25/08/2020

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jefte-oliveira-ballini 🇧🇷

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A Revolta dos Malês
em 1853
João José Reis
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A Revolta dos Malês

em 1853

João José Reis

livres. Um medo que, aliás, se difundiu pelas demais províncias do Império do Brasil. Em quase todas elas, principalmente na capital do país, o Rio de Janeiro, os jornais publicaram notícias sobre o acontecido na Bahia e as autoridades submeteram a população africana a uma vigilância cuidadosa e muitas vezes a uma repressão abusiva.

Salvador tinha na época da revolta em torno de 65.500 habitantes, dos quais cerca de 40 por cento eram escravos. Entre a população não-escrava a maioria era também formada por africanos e seus descentes, chamados na época de crioulos quando eram negros nas- cidos no Brasil, além dos mestiços de branco e negro, chamados de pardos, mulatos e cabras. Juntando os negros e mestiços escravos e livres, os afro-descendentes representa- vam 78 por cento da população. Os brancos não passavam de 22 por cento. Entre os escravos, a grande maioria (63 por cento) era nascida na África, chegando a 80 por cento na região dos engenhos de açúcar, o Recôncavo.

Esses escravos eram trazidos de diversos portos da costa africana. Um grande núme- ro vinha de Luanda, Benguela, Cabinda, mas na época da revolta de 1835 a grande maioria era embarcada nos portos do golfo do Benim (portos de Ajudá, Porto Novo, Badagri, Lagos). Foram alguns desses últimos grupos os mais diretamente ligados à revolta. Eles podiam ser de diversas origens, segundo a língua que falavam: iorubá, haussá, fon, mahi, nupes, bornus etc. Na Bahia a maioria desses escravos era conhecida por nomes diferentes daqueles que tinham na África: os de língua iorubá chamavam-se nagôs, os fon e mahi eram conhecidos como jejes, os nupes como tapas.

Em 1835 a grande maioria dos escravos da Bahia nascidos na África era realmente de língua iorubá, cerca de 30 por cento. Eram como nagôs. Muitos deles professavam a reli- gião muçulmana, embora a maioria dos nagôs fosse de fato adepta do candomblé dos orixás.

A cidade de Salvador tinha uma economia baseada na escravidão, que girava em torno da cana-de-açúcar produzida na região denominada de Recôncavo, terras que cir- cundam a Baía de Todos os Santos. Ali também se plantava o fumo, que era exportado para a Europa e para a África. Na África o fumo era utilizado na compra de escravos.

No Recôncavo, os escravos eram empregados em todo tipo de atividade rural, não apenas no setor açucareiro e fumageiro. Eles também labutavam na criação de gado e no cultivo da mandioca. A farinha de mandioca já era naquela época um item fundamental da dieta de ricos e pobres, senhores e escravos. Como o fumo, a farinha estava também ligada ao tráfico, pois constituía um dos principais alimentos a bordo dos navios negreiros.

Da mesma forma, os escravos eram utilizados nas vilas e cidades, sobretudo na capi- tal, onde se ocupavam no trabalho doméstico, nos diversos ofícios (pedreiro, sapateiro, ferreiro), nas atividades do mar (marinheiro, remador, canoeiro, pescador). Eles lavravam a terra em pequenas plantações existentes na periferia da cidade, trabalhavam em variados tipos de construção pública e privada, vendiam uma grande variedade de pequenas merca- dorias, principalmente comida pronta, verduras, peixe, carne. E eram empregados no trans- porte de volumes grandes e pequenos, como caixas de açúcar, barris de cachaça, merca- dorias importadas, água de gasto e potável, dejetos humanos, balaios de compras e até cartas eram levadas ao correio por escravos. Eles também transportavam pessoas nas cadeiras de arruar, talvez a mais típica atividade dos escravos nas ruas de Salvador.

Uma cadeira de arruar do século XIX. Museu de Arte da Bahia.

As ocupações dos presos por suspeita de participação na revolta de 1835 refletem a variedade de atividades desempenhadas pelos escravos urbanos. Havia entre eles lavra- dores, remadores, domésticos, pedreiros, sapateiros, alfaiates, ferreiros, armeiros, barbei- ros, vendedores ambulantes, carregadores de cadeira, entre outras atividades. A grande maioria dos rebeldes se empregava em ocupações tipicamente urbanas. Foram pouquíssimos os ocupados na lavoura, por exemplo. Um ou outro tinha vindo do Recôncavo para partici- par do levante em Salvador.

Na escravidão urbana os cativos gozavam de maior independência do que na escravi- dão rural, e isso facilitou muito a organização do movimento de 1835. Em geral, os escravos percorriam por toda a cidade trabalhando para seus próprios senhores ou, principalmente, contratados por terceiros para serviços eventuais. Muitos escravos sequer moravam na casa senhorial. Chamados negros ou negras de ganho, e também de ganhadores ou ganhadeiras, esses homens e mulheres escravizados contratavam com seus senhores en- tregar certa quantia diária ou semanal de dinheiro, e tudo que ultrapassasse esta quantia podiam embolsar. O escravo que trabalhasse muito e poupasse muito podia após cerca de nove longos anos comprar sua liberdade, e muitos assim o fizeram. Alguns chegavam se tornar prósperos homens de negócio, que era a ocupação mais comum dos que prospera- vam. Muitos africanos, depois de libertos da escravidão, tornavam-se eles próprios senho- res de escravos. Calcula-se em cerca de 7 por cento a proporção dos africanos libertos na população de Salvador na época da revolta dos malês. Eles representariam em torno de 25 por cento da população africana na cidade.

Africanos escravos e libertos com freqüência trabalhavam e viviam juntos, desempe- nhando as mesmas tarefas, morando nas mesmas casas. No trabalho de rua organizavam-

Salvador; dos sete líderes identificados, pelo menos cinco eram nagôs. Eram nagôs os seguintes líderes: os escravos Ahuna, Pacifico Licutan, Sule ou Nicobé, Dassalu ou Damalu e Gustard. Também nagô era o liberto Manoel Calafate. Os outros eram o escravo tapa Luís Sanim e o liberto haussá Elesbão do Carmo ou Dandará, que negociava com fumo.

Vistos enquanto grupo étnico os nagôs eram na sua maioria não-muçulmanos, e sim devotos dos orixás, embora fizessem incursões no campo muçulmano. Por exemplo usavam os famosos amuletos malês, considerados de grande poder protetor, e provavelmente recor- riam a adivinhos malês, entre outras práticas. Ou seja, naquela fronteira em que as duas religiões se encontrava, os nagôs como um todo, malês e filhos de orixá, também se encontra- vam. E se encontravam como entidade étnica, como pessoas que falavam a mesma língua, tinham histórias comuns, em muitos casos haviam obedecido aos mesmos reis africanos. Essas convergências facilitaram a mobilização em 1835 para além das colunas muçulmanas.

Africano Nagô, que pode ser identificado pelas marcas étnicas no rosto.

Os nagôs vinham de uma parte específica da África, qual seja a região sudeste da atual Nigéria e a parte leste da atual República do Benin. Eram de diversos reinos espalha- dos por esse território, como Oió, Queto, Egba, Yagba, Ijexá, Ijebu, Ifé entre outros. Esses reinos durante muito tempo viveram sob a égide do reino de Oió, embora numa espécie de federação imperial. Na época do levante de 1835 essa federação dominada por Oió estava em franca desintegração em função de lutas intestinas generalizadas. Os malês especifica- mente tiveram sua origem principalmente em Ilorin, que era uma dependência do reino de Oió que se rebelou sob a liderança de Afonjá. Este homem se aliou aos muçulmanos haussás, fulanis e iorubás contra o alafin, que era o título do rei de Oió. Essas guerras foram respon- sáveis pela transformação de milhares dos habitantes locais em prisioneiros, que eram vendidos como escravos aos traficantes do litoral, e daí exportados para a Bahia.

Embora a grande maioria dos interrogados em 1835 respondesse que era apenas “nagô”, alguns fizeram questão de ser mais precisos, indicando também o local específico de onde vinham. O carregador de cadeira Joaquim de Mattos, por exemplo, respondeu ser de “nação Nagô Gexá”, quer dizer de origem Ijexá, um grupo étnico do leste do território iorubá. Joaquim havia se alforriado há pelo menos sete anos e portanto deveria estar na Bahia há cerca de nove anos no mínimo. A liberta Edum disse ser de “nação nagô-bá” e um outro africano interrogado disse ser ela apenas “Bá”, significando ser oriunda de Egba ou Yagba. O liberto Lobão Machado foi bem claro: era de nação “Nagô-Ebá”, ou seja de Egba. Francisco, cerca de 25 anos de idade, escravo doméstico e comprador, que vivia em Salva- dor há cerca de 6 anos, era Yaba, ou, segundo suas próprias palavras, “Nagô-Abá”. E o escravo José se disse “nagô jabu”, provavelmente natural de Ijebu. A expressão nagô reme- tia à África descoberta no Brasil, pois só aqui eles se tornariam conhecidos por aquela expressão, enquanto Ijebu, Egba, Yagba, Oyo, Ijexá (ou Ilesha) representavam a África deixada do lado de lá do Atlântico. O escravo nagô Antônio, doméstico e carregador de cadeira, resumiu bem a questão quando afirmou: “ainda que todos são Nagôs, cada um tem sua terra”.

árabe em sua terra. Ele leu trechos do que havia escrito, embora alegasse não saber tradu- zir para o português.

Observamos em todas essas declarações as lembranças de uma educação muçulmana na África, às vezes lembranças de quando estes escravos eram ainda crianças. Isso aconte- cia mesmo no caso dos nagôs, que vinham de um lugar onde o islamismo era adotado por uma minoria, ao contrário do país haussá, onde a religião estava arraigada há tempos.

Outras tradições islâmicas também atravessaram o Atlântico, como o já mencionado uso do amuleto. O liberto Lobão Machado acima mencionado, quando preso, levava diver- sos amuletos protetores em volta do pescoço. Perguntado para que usava aquilo, disse ser para proteger contra o vento. Provavelmente referia-se ao jinn ou anjonu, espécie de espí- ritos malês. Outros interrogados responderam como ele que os amuletos eram para prote- ger do vento. Pela quantidade de amuletos apreendidos pela polícia em 1835, muita gente se protegia desta forma contra espíritos malignos. O escravo haussá Antônio acima menci- onado usava a educação muçulmana recebida em sua terra para escrever amuletos, que vendia por bom preço — equivalente ao jornal de um escravo de aluguel — a africanos que também desejavam se proteger dessas forças espirituais que haviam acompanhado os afri- canos ao Novo Mundo.

Tais informações têm o valor de explicitar, através da fala dos interrogados, tradições aprendidas na África e mantidas na Bahia. Estes depoimentos mostram com muita nitidez uma projeção da história africana na história brasileira.

É preciso esclarecer que nem todos os africanos muçulmanos existentes na Bahia em 1835 participaram da revolta. As autoridades, porém, usaram a posse de papéis malês como prova de rebeldia e por isso muitos inocentes foram presos e condenados.

Os malês receberam diversos tipos de sentença. Foram elas: prisão simples, prisão com trabalho, açoite, morte e deportação para a África. Esta última pena foi atribuída a muitos libertos presos como suspeitos mas contra os quais nenhuma prova definitiva foi encontrada. Mesmo assim, apesar de absolvidos, foram expulsos do país. A pena de açoi- tes variava de 300 até 1.200 chicotadas, que foram distribuídas ao longo de vários dias. O idoso Pacifico Licutan foi sentenciado a 1.200 chibatadas. Sabe-se de pelo menos um con- denado que morreu em decorrência desta pena de tortura, o escravo nagô Narciso.

A pena de morte, foi imposta, inicialmente a 16 acusados, mas posteriormente 12 deles conseguiram sua comutação. Quatro foram no final executados. Eram eles o liberto Jorge da Cruz Barbosa, cujo nome iorubá era Ajahi, carregador de cal; Pedro, nagô, carre- gador de cadeira, escravo de um negociante inglês; Gonçalo e Joaquim, ambos escravos nagôs. Todos quatro foram executados por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvo- ra, no dia 14 de maio de 1835. E assim se findava um dos episódios mais empolgantes da resistência escrava no Brasil.

BIBLIOGRAFIA

Sobre a África dos malês, ler Robin Law, The Oyo Empire, c. 1600-c. 1836: A West African Imperialism in the Era of the Atlantic Slave Trade, Oxford: Claredon, 1977; Paul Lovejoy, A escravidão na África, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, capítulo 9; Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos, Salvador, Corrupio, 1987; e Alberto da Costa e Silva, A manilha e o libambo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002, pp. 451-562.

Sobre trabalho escravo urbano, alforria e africanos libertos na Bahia, leia Maria Inês C. de Oliveira, O liberto: seu mundo e os outros, Salvador, Corrupio, 1988; João José Reis, “A greve negra de 1857 na Bahia”, Revista USP, nº 18 (1993), pp. 6-29; Stuart B. Schwartz, “A Manumissão dos escravos no Brasil Colonial – Bahia 1684-1745, Anais de Historia, nº 6 (1974), pp. 71-114; Kátia M. de Queirós Mattoso, “A propósito de cartas de alforria”, Anais de História, nº 4 (1972), pp. 23-52.

Sobre a Revolta dos Malês especificamente, ler Joâo José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo, Companhia das Letras, 2003; Décio Freitas, Insurreições escravas, Porto Alegre, Movimento, 1976; e o livro de Pierre Verger, Fluxo e refluxo, capítulo IX.

Os depoimentos dos malês presos em 1835 se encontram nos inquéritos policiais e processos judiciais depositados no Arquivo Público do Estado da Bahia. Esses documentos já foram publicados em diversos números dos Anais do Arquivo do Estado da Bahia. Tam- bém estão sob a guarda do Arquivo o que sobrou dos documentos escritos em árabe.