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Serviço público, Notas de estudo de Direito

Serviço público

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 15/11/2011

vanessa-alcantara-nascente-oliveira
vanessa-alcantara-nascente-oliveira 🇧🇷

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Ano 2 • nº 1 • julho/2002 97
Revista Jus et Fides
Serviço Público: conceito, privatização
José Soares Filho (DCJ)1
Resumo
É de responsabilidade do Poder Público instituir e manter os serviços indispensá-
veis ao bem-estar e ao progresso da sociedade. Sua execução pode fazer-se direta ou
indiretamente. As contingências de nossa época impõem o afastamento do Estado
de atividades não-pertinentes às suas atribuições fundamentais e a descentralização
da administração pública, com a delegação de serviços públicos à iniciativa privada,
que, em princípio, tem mais aptidão para efetuá-los com eficiência e menor custo.
Trata-se de privatização, que compreende as formas de concessão, permissão,
autorização ou terceirização e cujo processo deve obedecer a critérios de equilíbrio
dos interesses em causa, especialmente os dos usuários e os dos trabalhadores
envolvidos nos respectivos serviços. Urge evitar os efeitos perversos que ele pro-
duz para esse contingente humano, dentre os quais o desemprego ou a redução ou
precarização dos direitos trabalhistas adquiridos. Só assim será preservado o inte-
resse público, consubstanciado no bem comum da sociedade.
Palavras-chave: serviço público, privatização, concessão, permissão, terceirização.
1 Introdução
O presente tema está intrinsecamente ligado à estrutura administrativa
do Estado e diz respeito ao exercício da soberania, que é um de seus
atributos inalienáveis.
Tradicionalmente, ao Poder Público cabe promover e assegurar à
coletividade geral sob sua jurisdição bens e serviços indispensáveis à
subsistência, à segurança, ao bem-estar e ao progresso material e espiritu-
al. É conseqüência do pacto social concebido por Rousseau como condi-
ção de sobrevivência do homem ante os obstáculos que atentam contra
sua conservação no estado natural, em que se necessita
“encontrar uma forma de associação que defenda e pro-
teja a pessoa e os bens de cada associado, de qualquer
força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos,
não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim
tão livre como dantes” (1968: 48).
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Ano 2 • nº 1 • julho/2002 97

Revista Jus et Fides

Serviço Público: conceito, privatização

José Soares Filho (DCJ) 1

Resumo É de responsabilidade do Poder Público instituir e manter os serviços indispensá- veis ao bem-estar e ao progresso da sociedade. Sua execução pode fazer-se direta ou indiretamente. As contingências de nossa época impõem o afastamento do Estado de atividades não-pertinentes às suas atribuições fundamentais e a descentralização da administração pública, com a delegação de serviços públicos à iniciativa privada, que, em princípio, tem mais aptidão para efetuá-los com eficiência e menor custo. Trata-se de privatização, que compreende as formas de concessão, permissão, autorização ou terceirização e cujo processo deve obedecer a critérios de equilíbrio dos interesses em causa, especialmente os dos usuários e os dos trabalhadores envolvidos nos respectivos serviços. Urge evitar os efeitos perversos que ele pro- duz para esse contingente humano, dentre os quais o desemprego ou a redução ou precarização dos direitos trabalhistas adquiridos. Só assim será preservado o inte- resse público, consubstanciado no bem comum da sociedade. Palavras-chave: serviço público, privatização, concessão, permissão, terceirização.

1 Introdução

O

presente tema está intrinsecamente ligado à estrutura administrativa do Estado e diz respeito ao exercício da soberania, que é um de seus atributos inalienáveis. Tradicionalmente, ao Poder Público cabe promover e assegurar à coletividade geral sob sua jurisdição bens e serviços indispensáveis à subsistência, à segurança, ao bem-estar e ao progresso material e espiritu- al. É conseqüência do pacto social concebido por Rousseau como condi- ção de sobrevivência do homem ante os obstáculos que atentam contra sua conservação no estado natural, em que se necessita

“encontrar uma forma de associação que defenda e pro- teja a pessoa e os bens de cada associado, de qualquer força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, ficando assim tão livre como dantes” (1968: 48).

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Segundo esse filósofo e cientista político iluminista, o governo, constituído pela vontade geral, distingue-se pelo desenvolvimento que propicie a seus cidadãos em situação normal e com liberdade (1968: 123). A autoridade do Estado deve ser exercida no interesse dos cida- dãos, para que atinjam sua felicidade fundada no bem comum; por isso sujeita-se a limites, não pode ser concebida como uma p otestas legibus soluta , o que é um imperativo do direito natural (CASSIRER, 1966: 258). Para Kelsen (1997, p. 346) é impensável um Estado não submetido ao Direi- to (direito positivo). Com o liberalismo – para o qual concorreram as idéias iluministas –, o Estado burguês limitava sua atuação às atividades estritamente consideradas próprias da administração pública, não in- tervinha nas de natureza negocial, segundo o princípio do laisser faire, laisser passer adotado pelos fisiocratas franceses. O contrato, como mani- festação da autonomia privada, regulava as relações jurídicas nesse cam- po, como norma a elas aplicável ( voluntas facit legem ), e devia ser cumpri- do fielmente ( pacta sunt servanda ). O postulado da igualdade jurídica en- tre as partes – solenemente proclamado pela Revolução Francesa – gerou a crença de que o pactuado livremente por elas resultaria na justa solução do conflito de interesses. Todavia, não tardou a constatação da ineficiência daquela máxi- ma, que representou a desmoralização de um dogma do capitalismo clássi- co. Em tal circunstância, ante a desigualdade econômica entre as partes, o contrato passou a ser, em vez de um fator de equilíbrio, instrumento de exploração de uma (a mais fraca) pela outra (a mais forte). Gerou-se, destarte, um grande problema social que levou risco à própria estabilidade do regime político, notadamente na área trabalhista, chamado “questão social”. Esse fato obrigou o Estado a abandonar sua postura abstencionista e a intervir nas relações contratuais, a começar pelas de trabalho, nas quais passou a editar normas protetivas do trabalhador (o hipossuficiente), de ordem pú- blica e, por conseguinte, imperativas, integrativas do contrato; assim, pro- curava compensar a inferioridade econômica do obreiro com sua superiori- dade jurídica (segundo a célebre frase de Paul Pic ). Surgia, assim, o estado social. O novo comportamento assumido pelo ente público decorre da ve-

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bens e serviços, conferindo a eles algumas das prerrogativas que lhe são inerentes, necessárias para o desempenho desses misteres, que são de interesse público; reserva-se, contudo, o direito de controle e fiscalização sobre essas atividades. Dentre as formas de delegação ora mencionadas, avulta a concessão de serviços públicos, já instituída há algum tempo em nosso ordenamento jurídico e cuja prática vem intensificando-se ultima- mente, tornando-se, quiçá, a mais utilizada pela administração brasileira. No presente trabalho, traremos o conceito de serviço público, numa síntese de sua formação histórica, com seu fundamento teórico-dou- trinário, na opinião de jurisconsultos especializados na matéria. Discorrere- mos sobre o processo de privatização da economia em geral e, especifica- mente, em nosso país, enfocando seus aspectos de ordem econômica, jurí- dica e ideológica, bem assim as formas como se concretiza, especialmente como mecanismo de descentralização da gestão dos serviços públicos.

2 Conceito de serviço público

É um tema instigante sobre o qual há divergência de opiniões entre os juristas especializados em Direito Administrativo. Está intimamen- te relacionado com a ideologia e a organização política do Estado, pelo que tem acompanhado as mutações experimentadas por este, quanto à sua estrutura e suas atribuições, no curso da história. O conceito de serviço público é vinculado ao de poder público. Ambos informam a base teórica do Direito Administrativo. O conceito de serviço público tem, como qualquer produção do espírito humano, um componente ideológico e situa-se historicamente. Remotos são seus antecedentes. Mesmo antes de sua definição pelo Estado capitalista, a adminis- tração existia como uma relação que se formara e se mantinha autônoma, numa fase de transição entre o regime feudal e o liberalismo, materializada pela burocracia, que se operava pela burguesia de ofício. Tinha uma con- cepção patrimonial, posto que os cargos eram adquiridos por determinadas pessoas por preço de valor econômico-financeiro. Depois alcançaria a ideologia do serviço público e do interesse geral. Mas já apresentava algu-

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mas características desse instituto, tais como: o princípio da continuidade, o da igualdade dos usuários perante o serviço, o da equivalência entre as prestações e as sujeições. As comunidades esforçam-se para reduzir as isenções e os privi- légios. O sistema provençal de arrendamento aproxima-se da concessão de serviço público atual; naquele caso, o concessionário podia majorar suas taxas e restituir uma parte à administração concedente. Além dele, encon- tram-se serviços públicos geridos pelos particulares, arcando estes com os riscos e os perigos inerentes às respectivas atividades. Com o Estado liberal e o surgimento do trabalho assalariado, livre, organizado, criam-se certos serviços públicos, certas instituições sociais, tais como hospitais gerais, asilos – instituições estranhas às relações capi- talistas. Conforme Hegel ,

“a oposição do aparelho do Estado e da sociedade civil foi ultrapassada. O Estado realiza a unidade da vontade geral e das vontades particulares e as reconcilia. Ade- mais, o Estado, expressão suprema da razão, está acima da sociedade civil. Ele une o universal e o particular, inte- gra e transcende as contradições da sociedade civil. Os interesses particulares não alcançam seu pleno desen- volvimento senão no interesse geral (...)” ( apud JOURDAN, 1987, p. 106 s)^2.

A Revolução Francesa submeteu os serviços públicos ao Direito, de modo que eles passaram a ser considerados a própria razão de ser do Estado. Essa concepção foi adotada pela Escola Francesa do Serviço Pú- blico, de Bordeaux, constituída por juristas de grande porte, como Gaston Jèze, Léon Duguit, Rolland, Bonnard. Ela incorreu no exagero de explicar todo o Direito Administrativo pelas regras próprias dos serviços públicos. Essa posição doutrinária chocou-se, logo em seguida, com as primeiras concessões feitas nesse campo, já no século XIX, o que provocou seu reexame. O Estado fundado no liberalismo – como já assinalamos atrás – não se imiscuía nas atividades econômicas; era, assim, sob esse aspecto,

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até nas relações de direito civil (v.g. proteção do consumidor). Assim, a livre concorrência cedeu a uma economia dirigida pelo Poder Público, que, para isso, criou empresas públicas e sociedades de economia mista, para exercerem atividades econômicas próprias das sociedades comerciais. Em nossos dias – como frisam Arnoldo Wald, Luiza Rangel de Moraes e Alexandre de M. Wald (1996, p. 70 s) –, o Estado restringe sua atuação em determinados setores e a fortalece em outros, como, por exem- plo, substituindo a prestação de serviços por sua fiscalização. Nessa pers- pectiva, a delegação de serviços públicos a empresas privadas, mediante concessão, é bem característica dessa nova feição do papel que assume o ente de direito público interno, como meio de alcançar, com a colaboração da iniciativa privada, maior economia e eficiência dos serviços públicos. No plano internacional, em decorrência do processo de globalização, reduz-se o papel dos Estados como indutores de atividades econômicas e, devido ao gigantismo das empresas produtoras, transnacionais – cuja atuação escapa, em grande parte, ao controle e à própria jurisdição daqueles, constituindo-se novos centros de poder –, resta limitada sua soberania. No caso do Brasil, ele encontra-se mais com- prometido com a liberdade de comércio, integrado que se acha no MERCOSUL. Em nosso país, até recentemente, com a Constituição de 1988, consagrou-se um padrão de Estado interventor, que, na opinião do profes- sor Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti (1997, p. 63 s) , apresenta- se em três linhas: a) o Estado como sujeito da atividade econômica; b) o Estado como ente regulador, basicamente com o exercício do poder de polícia sobre as atividades econômicas, além do de planificação; c) o Esta- do executor de atividades indutoras, visando a motivar atividades conside- radas relevantes para o desenvolvimento econômico e social. Todavia, como observa Cavalcanti (1997, p. 64), nas duas últimas décadas, vem-se firmando a tendência de reversão dessa diretriz, com o progressivo afastamento do Estado das atividades econômicas, a redução dos mecanismos protecionistas e a privatização de entidades sob sua ad- ministração. Tal mudança decorre de poderosos fatores externos – quais sejam a globalização da economia e o surgimento de comunidades regio-

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nais de países de caráter predominantemente econômico – que provoram recentes mudanças no texto de nossa Constituição no tocante, especifica- mente, ao tratamento da ordem econômica^4. Fato que revela, de forma contundente, a descentralização da atividade administrativa e a transferência a entidades privadas da explora- ção de parte considerável dos serviços públicos ou atividades periféricas de natureza econômica, até então geridos com exclusividade pelo Estado é a instituição de concessões e permissões, através de um verdadeiro estatu- to básico – a Lei nº 8.987, de 13.02.95 –, que, inclusive, reduz as possibilida- des de o Poder concedente fixar “preços políticos”, com quebra do equilí- brio econômico-financeiro dos contratos – como assinala Cavalcanti (1997, p. 69). Ele acrescenta que tal diploma motivará empresas privadas a partici- parem de procedimentos de licitação sob forma de concessões ou permis- sões, com maior segurança e redução de riscos que sob o regime anterior, que não contava com uma lei básica.

2.1 Fundamento teórico-doutrinário

Como se vê, é discutível o conceito de serviço público. A respeito, apresentam-se correntes de opinião divergentes, cada uma enfoca ou acen- tua determinado aspecto desse setor de atividades, dando mais ênfase ora à atuação do Poder Público, ora à participação da iniciativa privada. Ressal- te-se a posição doutrinária da Escola Francesa do Serviço Público, a cha- mada Escola de Bordeau, que exerceu grande influência em outras, especi- almente na espanhola. Ela só concebia o serviço público como atividade administrativa e, por conseguinte, vinculada ao Poder Público. Em outras palavras, ela identificava o serviço público com atividade estatal ( Farrando , 1994, p. 23). Na concepção de Celso Antônio Bandeira de Mello (1998, p. 433) , o serviço público deve oferecer uma utilidade ou comodidade mate- rial fruível diretamente pelos administrados, bem assim deve a respectiva prestação submeter-se a um regime de direito público, ou seja, o regime jurídico-administrativo.

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A atuação do Estado no campo da atividade particular, ainda que industrial ou comercial, não a descaracteriza, só por isso, como serviço público, quer ela seja exercida por órgãos estatais, quer por entes de direito privado mediante delegação ou concessão, contanto que esteja presente, aí, como elemento essencial do serviço público, o interesse geral da coletividade, o escopo da satisfação de necessidades públicas. Tais atividades são reguladas por um regime misto de direito público e direito privado. A razão da atuação do Estado nessa área reside em duas hipóte- ses: a) a manifesta incapacidade ou ineficiência do setor privado; b) a importância da atividade ser tal para toda a economia do país ou para a defesa nacional, que seria perigoso deixar sua execução em mãos de gru- pos ou interesses privados. Consoante esse regime, que condiz com a modernidade, o público não se confunde com o estatal, o que significa poder o serviço, embora por natureza seja público – visto atender às necessidades gerais da coletividade – ser prestado por particulares de acordo com as diretrizes impostas pelo interesse público, como assinalam Wald , Moraes e Wald (1996, p. 72). A doutrina estrangeira, conquanto apresente divergências pontu- ais sobre o assunto, em questão de fundo não discrepa da nacional; coin- cide com esta no tocante às linhas mestras do conceito de serviço público. O conceituado administrativista português Marcello Caetano (1991, p. 1067) diz que, embora o serviço público vise a atender a necessidades coletivas, sua prestação atinge os indivíduos “uti singuli”, constituindo- se um benefício determinado a ser fruído diretamente por eles. Na Argentina, sobressaem alguns juristas especialistas em direito administrativo, cujas opiniões vale citar. Jorge H. Sarmiento García (1994, p. 3, p. 13) manifesta o entendimento de que o serviço público integra, necessariamente, a atividade administrativa; porém nem toda atividade desse tipo é serviço público – é o caso das relativas às funções estatais inerentes à soberania ou que se referem à “existência mesma da sociedade política e integram, portanto, o conteúdo permanente do bem comum” ( GARCIA , 1994, p. 6) – senão apenas uma parte dela. E indica, como objetivo do serviço público, a satisfação das funções de bem-estar e progresso social

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do Estado, numa visão moderna das atribuições do Poder Público. Ele distingue, a propósito, o “serviço público” – aquele prestado pelo Estado diretamente ou concedido a terceiros – e o “serviço público impróprio” ou “virtual” – que o Estado não presta nem concede, mas apenas regulamenta e fiscaliza (exemplo: farmácias, táxis etc.) – e têm a natureza de atividades individuais de interesse público. Como serviço público consideram-se, outrossim, as prestações que visam a satisfazer necessidades individuais de importância coletiva ( GARCÍA,1994, p. 16) , de natureza material, perió- dicas e sistemáticas, “que constituem o objeto essencial de uma concreta relação jurídica com o administrado” ( GARCÍA, 1994, p. 17). Segundo Farrando (1994, p. 24)^6 , a doutrina argentina define os serviços públicos como “toda ação ou prestação realizada pela administra- ção, direta ou indiretamente, para a satisfação concreta das necessidades coletivas, assegurando essas prestações pelo poder de polícia”. Villegas Basavilbaso , assim como Díez y Marienhoff , não discre- pa dessa linha de raciocínio, conceitua o serviço público como “toda a atividade direta ou indireta da administração pública, cujo objeto é a satis- fação de necessidades coletivas, por um procedimento de direito público” ( apud FARRANDO , 1994, p. 24)^7. Javier Urrutigoity (1994, p. 64) 8 adota, a respeito, conceito mais estrito, admitindo o serviço público como

“atividade administrativa, indispensável para a vida so- cial, de prestação ao público, assumida com exclusivida- de pelo Estado, sob um regime jurídico público, cujas características são a regularidade, continuidade, obrigatoriedade, mutabilidade e igualdade”.

Nota-se que esse jurista se filia às correntes doutrinárias francesa e italiana que tinham o serviço público como atividade atribuída com exclu- sividade ao Estado, a quem seria conferida não só a titularidade desta (monopólio “de iure”) mas também sua prestação, eis que se submete à publicidade, “nota de exclusividade regalística”, que configura uma noção estrita de serviço público. No tocante às concessões, somente se conside-

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tual ineficiência ou incapacidade da iniciativa privada, tratando-se de atividades de relevante interesse social; assume incumbências sem fins lucrativos, promovendo serviços sociais (exemplos: os de educação, os de assistência social) ( García , 1994, p. 10 s); exerce atividades de fomento à iniciativa privada, no sentido de proteger, estimular e apoiar as dos particu- lares, objetivando alcançar o desenvolvimento e assegurar o bem comum. O regime jurídico dos serviços públicos é, predominantemente, o administrativo (direito público) em face da relevância do interesse público ínsita aos mesmos; mas se lhes aplicam, também, normas de direito privado, especificamente naquelas atividades confiadas a particulares, mediante concessão ou permissão, em que se mesclam regras de ordem pública ema- nadas do poder estatal (leis e regulamentos editados para a espécie) e regras contratuais da natureza das que regulam as relações negociais no âmbito da vida civil. Podemos, assim, dizer que é um regime híbrido. Ao mesmo tempo em que o ente – seja público ou privado – preci- sa de meios especiais, quanto a prerrogativas de Poder Público, para de- senvolver as tarefas que lhe são cometidas – satisfazer as necessidades de ordem coletiva –, a regulamentação do serviço público deve dotar os usu- ários de meios eficazes para defender seus direitos contra eventuais abu- sos autoritários seja da parte do concedente, seja da do concessionário. Esses direitos – e os correspondentes deveres dos prestadores – têm por base os princípios que regem os serviços públicos, que, segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1976, p. 336 s), são os princípios da continuida- de, da generalidade e do aperfeiçoamento. Carlos A. Echevesti ( apud GARCIA , 1994, p. 21) relaciona os direitos específicos do usuário ou consumidor do serviço público e os respectivos deveres do prestador, os quais correspondem a princípios que respaldam a prestação: a generalidade, a uniformidade, a continuidade, a regularidade, a obrigatoriedade, a qualidade, a eficiência, o preço justo e razoável. Em sua definição descritiva, Javier Urrutigoity (1994, p. 644- 67) menciona, como características do serviço público – que têm a nature- za de princípios – as seguintes: a regularidade, a continuidade, a obrigatoriedade, a mutabilidade e a igualdade.

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3 Privatização de serviços públicos

O termo presta-se a concepções diversas. No Brasil, como na Ar- gentina ( apud MARTINEZ, 1994, p. 134) , a privatização compreende to- das as formas de transferência de atividades do setor público ao setor privado, inclusive a alienação de empresas do Governo, com a venda das respectivas ações a particulares. Trata-se de um fenômeno decorrente do processo de globalização da economia, em que as empresas precisam ser mais competitivas como condição da própria sobrevivência e desenvolvimento. Para tanto, requer- se maior eficiência na gestão da atividade econômica, principalmente sob o aspecto da produtividade. E a experiência tem demonstrado que, para esse efeito, a iniciativa privada é mais competente que o Poder Público. Como assinala Martinez (1994, p. 134), em relação à Argentina – o que traduz, também, o caso do Brasil –, o Estado sempre se revelou um mau administrador na área da economia, levando suas empresas a situações econômico-financeiras de “deficit”, que implicam serviços deficientes, com prejuízo aos usuários. Ademais, não raro se acha sem condição de incorpo- rar novas tecnologias aos serviços públicos e de aumentar sua oferta a novos usuários. Em conseqüência, deixa de cumprir um de seus objetivos primordiais, que é o de assegurar o bem-estar geral. Essa convicção é universal, presente também na doutrina italiana, como expressa Franco Reviglio (1992, p. 13 ss)^9 :

“Tende-se, contudo, a sublinhar que a gestão pública direta de um monopólio pode, mais facilmente pela forma organizativa alternativa, determinar a ocupação de espa- ços impróprios da parte do poder político que conduzam a gestões particularmente ineficientes”.

A privatização, entendida como um processo necessário e volta- do para os legítimos interesses do homem, adapta-se à filosofia cristã sobre o trabalho, que incorpora o princípio da subsidiariedade da atuação do Estado em relação à dos indivíduos ou suas respectivas comunidades. Ele foi lançado pelo Papa Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno, de 1931 – e

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quaisquer benefícios a essas empresas, não só em função de limitações de ordem jurídica, inclusive a nível internacional, mas também em função de falta de recursos financeiros” ( CAVALCANTI, 1997, p. 70).

A globalização da economia impõe a privatização de bens e servi- ços públicos, o que implica a redução do papel do Estado como indutor de atividades econômicas e o crescimento da atuação da iniciativa privada, a fim de torná-las mais eficientes e, por conseqüência, mais competitivas as empresas. Trata-se de um processo de âmbito mundial, decorrente, dentre outros fatores, da consolidação das comunidades econômicas (exemplo: a do Mercosul, à qual o Brasil se acha vinculado). Os compromissos políti- cos resultantes dessa integração, aliados ao crescimento de grandes gru- pos econômicos transnacionais, concorrem, naturalmente, como já nota- mos, para a redução da soberania estatal. Ora, criam-se novos centros de poder, até mais poderosos que muitos Estados, o que dá nova feição à ordem internacional e, ao mesmo tempo, representa uma crise das estrutu- ras políticas nacionais. No plano interno,

“se algo já se fez para restringir a função do Estado, mediante um esforço válido no campo das privatizações e da desregulamentação da atividade econômica, ao con- trário, muito poucas têm sido as iniciativas da sociedade para criar mecanismos e especialmente órgãos de media- ção com o Poder Público, para colaborar com a adminis- tração, (...)” ( WALD , 1996, p. 21).

Essa colaboração compreende, também, o controle que a socieda- de deve exercer sobre o Estado, no intuito de evitar que ele se desvie dos objetivos gerais e que os serviços públicos concedidos a particulares não alcancem os resultados que se propõem, consubstanciados na satisfação dos legítimos interesses dos seus destinatários, os usuários. A colabora- ção entre a sociedade e o Estado, de modo contínuo, é ressaltada por Moreira Neto (1998) como importante para que as transferências de

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atividades estatais a entes da sociedade não fiquem “à mercê de preconcei- tos e de suspicácias ideológicas”. Na linha da subsidiariedade – de que já falamos atrás –, com a retração do poder estatal se “permitirá que a sociedade retome espaço decisório e assuma um papel protagônico na escolha de seu próprio desti- no, recolocando, no processo, o Estado como seu instrumento , principal- mente para atingir sucessivos níveis de competitividade ”, pois o que mais importa não é seu tamanho, mas, sobretudo, sua competência, ou seja, “as funções que deve desempenhar para se afirmar como um Estado Instru- mento e um Estado Competitivo de sociedades abertas” ( MOREIRA NETO, 1998). Dado seu multifacetário conceito, a privatização de empresas e serviços do Estado constitui um dos assuntos mais discutidos e polêmicos da atualidade que dá ensejo a interpretações e julgamentos os mais diver- sos na doutrina universal e, especialmente, em nosso país. Afinal de con- tas, em que consiste, precisamente, esse processo e qual o valor de seus reflexos na vida das pessoas, em nível de sociedade nacional e comunidade internacional? O que muda na realidade? A essa última pergunta responde Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1997, p. 11 s ) :

“Parece que o que muda é principalmente a ideologia , é a forma de conceber o Estado e a Administração Pública. Não se quer mais o Estado prestador de serviços; quer- se o Estado que estimula, que ajuda, que subsidia a inici- ativa privada; quer-se a democratização da Administra- ção Pública pela participação dos cidadãos nos órgãos de deliberação e de consulta e pela colaboração entre público e privado na realização das atividades adminis- trativas do Estado; (...)”.

Almeja-se, nesse contexto, maior eficiência destas. As idéias de parceria e colaboração dominam todos os setores seja no âmbito interno dos Estados, seja no internacional, em que se constata a busca da parceria entre países que se unem para formar organismos internacionais de coope-

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ativa privada, bem como adotar, na gestão dos serviços públicos, técnicas e meios próprios do setor privado. Isso implica transferência a este de atividade até então afeta ao setor público ou de ações pertencentes ao Estado componentes do capital de empresa de que ele era detentor majori- tário. Significa, em outras palavras, desnacionalizar, desestatizar^10. A privatização ocorreu no âmbito dos serviços públicos pela descentralização administrativa. Ante o acúmulo de atividades assumidas pelo Estado, com o acréscimo dos encargos nos campos econômico e soci- al, tornou-se inviável sua operacionalização com a qualidade e a presteza requeridas, revelando-se a ineficiência do Poder Público nesse setor. Sen- tiu-se, então, a necessidade de encontrar novas formas de gestão dos serviços públicos e das atividades privadas assumidas pela Administra- ção. Nesse sentido, adotou-se a idéia da especialização, através das autarquias, bem como a utilização de métodos de gestão privada mais ade- quados às atividades de natureza industrial e comercial. Procedeu-se, então, à delegação de serviços públicos comerciais e industriais a empresas privadas, por meio de concessão, que tem a vanta- gem de possibilitar ao Estado prestar serviço essencial sem precisar inver- ter recursos públicos e sem correr os riscos do empreendimento. Ora, medi- ante a concessão, o particular executa o serviço em seu próprio nome e por sua conta e risco, submetendo-se, contudo, à fiscalização e ao controle pela Administração Pública e à intervenção desta em alguns aspectos da atividade, especialmente no da remuneração cobrada ao usuário, que é fixada pelo Poder Público. Essas salvaguardas justificam-se em razão do interesse público imanente aos serviços dessa natureza, pelos quais ao Estado cabe velar. Outros procedimentos adotados na linha da privatização são: a permissão, autorização e terceirização de serviços públicos. A permissão é um ato unilateral, discricionário e precário da Admi- nistração, pelo qual ela faculta ao particular a execução de serviço público ou a utilização privativa de bem público, proporcionando, tal como ocorre na concessão, a cobrança de tarifa dos usuários. A diferença fundamental entre a permissão e a concessão é que esta é contrato e, como tal, cria direitos e obrigações recíprocos para as partes, enquanto a permissão é ato

116 Universidade Católica de Pernambuco

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unilateral e precário que, por conseguinte, não gera direito do particular contra a Administração. A concessão e a permissão estão previstas na Constituição Fede- ral de 1988, em seu artigo 175^11. Através delas, o Poder Público delega a particulares o exercício de atividades que atendem a necessidades coletivas, definidas por lei como serviço público, pelo que devem ser prestadas sob regime jurídico parcialmente público. Ora, tanto o concessionário quanto o permissionário sujeitam-se aos princípios que regem os serviços públicos, assim como às normas estabelecidas no contrato, e gozam de prerrogativas de Poder Público para atingirem os objetivos perquiridos, consubstanciados na garantia de uma prestação eficiente, contínua e em condições de igual- dade para os usuários. A autorização^12 é ato administrativo, também unilateral e discrici- onário, pelo qual o Poder Público delega ao particular a exploração de serviço público a título precário. Pode, também, consistir em consentimen- to para utilização privativa de bem público. Constitui, assim como a permis- são e a concessão, forma de delegação da execução de serviço público ao particular. Seu traço distintivo da concessão e da permissão é que ela é dada no interesse exclusivo do particular, que usufrui a atividade unica- mente em seu proveito (não previsto o gozo por terceiros). Por isso não se faz necessário que lhe sejam delegadas prerrogativas públicas, como ocor- re em relação àquelas. O Poder Público dá a autorização com base em seu poder de polícia e, em virtude disso, estabelece as condições em que a atividade será exercida e fiscaliza seu exercício. A rigor, não há fixação de prazo, o que enseja ao Poder Público revogá-la a qualquer momento, sem direito do beneficiário a indenização. A autorização, a permissão e a concessão de uso de bem público estão previstas nos arts. 5º, III, 13 e 14, da Lei nº 9.074/90, assim como no art. 21, XII, da Constituição (com a redação dada pela Emenda nº 8, de 15.8.95). A terceirização, bastante utilizada no âmbito da iniciativa privada, constitui meio pelo qual a Administração Pública estabelece parceria com o setor privado para a realização de atividades de sua responsabilidade. É uma das formas de privatização em sentido amplo. Na prática, assume vári-