Baixe Super Interessante Especial - Bíblia - dossie de dezembro de 2014 e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity!
Os fatos históricos e os mitos pagãos por trás do Livro Sagrado. os E'osimitos pagãos livro Sagrado. Dragões, monstros marinhos e sangue: a história da Criação como você nunca viu. A Arca antes de Noé. De onde vieram os autores da Bíblia. Os verdadeiros criadores do cristianismo. Bibli Os fatos históricos e os mitos pagãos por trás do Livro Sagrado. riação. versão 1.0 Narrativas do Gênesis não são totalmente originais: elas se inspiraram em mitos da Mesopotâmia cheios de ação, sangue e monstros marinhos. O deus Marduk contra a dragoa Tiamat: combate foi subvertido para criar narrativa bíblica. O SUPERINTERESSANTE CRIAÇÃO, vEnsÃo LO OS PRIMEIROS CAPÍTULOS DO GÊNESIS, LIVRO QUE ABRE A BÍBLIA, CONTÊM ALGUMAS DAS NARRATIVAS MAIS POLÊMICAS DE TODOS OS TEMPOS - MAS NÃO APENAS PELOS MOTIVOS QUE VOCÊ TALVEZ TENHA IMAGINADO. Sim, religiosos e ateus continuam se metendo em brigas de foice por causa da suposta historici- dade (ou falta dela) de figuras como Adão e Eva, à respeito dos efeitos da existência ou inexistência deles sobre a teologia cristã ou a teoria da evolução, e por aí vai. Mas a polêmica já estava presente des- de que escritores israelitas anônimos compuseram. essas histórias hoje mundialmente famosas, em algum momento entre os anos 1000 a.C. e 500 a.C. (adata exata é controversa). Tudo indica que, mais do que produzir um relato cientificamente preciso sobre a origem do Cosmos, esses autores queriam mesmo era criticar os mitos de criação de seus vizinhos pagãos, mostrando que a tradição religiosa inovadora de Israel - que hoje conhecemos como monoteísmo, ou seja, a adora-| ção de um só deus - era superior à dos outros povos do Oriente Médio. “Polêmica” aqui, portanto, tem o sentido técnico dado ao termo pelos estudiosos da Bíblia - no caso, o de crítica. CHEGANDO TARDE A primeira coisa que precisa ser levada em conta para explicar essa história de polêmica é que os is- raelitas, que acabariam dando origem ao povo ju- deu, eram recém-chegados no cenário cultural complexo e antigo do Oriente Médio. Por volta do ano 3000 a.C., já tinha gente usando a escrita e erguendo monumentos faraônicos no Egito e na Mesopotâmia (grosso modo, o atual Ira- que). Nessa época, a região que se tornaria o terri- tório ancestral de Israel, conhecida então como Canaa, também já tinha cidades. Entretanto, nos registros históricos dos vizinhos, não havia nem sinal dos israelitas. Os ancestrais dos autores da Bí- blia só são mencionados pela primeira vez numa única inscrição egípcia, lá pelo ano 1200 a.C. - e só parecem ter dominado as artes da literatura vários séculos depois disso. Isso significa que, muito antes de eles se organi- zarem politicamente, formando os reinos de Israel e Judá (daí o nome “judeus”, aliás), as grandes civi- lizações do Oriente Médio já estavam escrevendo histórias sobre a criação do mundo e do ser humano havia quase mil anos. Esses povos mais antigos e “mais civilizados” mantiveram um intenso contato comercial e diplomático com os reinos israelitas - tão intenso que acabou ficando intenso demais, já que primeiro o Império Assírio e, mais tarde, o Im- pério Babilônico (ambos da Mesopotâmia) acaba- ram conquistando Israel e Judá (nessa ordem) e deportando parte de sua população para a própria Mesopotâmia. Ou seja, foi mais uma oportunidade para que os israelitas conhecessem a fundo a cultu ra de seus novos senhores. CRÍTICA NO EXÍLIO O consenso entre os estudiosos modernos da Bíblia é que o primeiro capítulo do Gênesis e um pedaci- nho do segundo foram escritos justamente durante a fase de exílio na Babilônia, ou seja, depois de 587 a.C., quando Jerusalém foi capturada e destruída pelos babilônios. E não é por acaso. Veja como con- tinua a narrativa depois do famoso “No princípio”. “Ora, aterra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas. Deus disse: “Haja luz”, e houve luz.” Se um babilônio ouvisse seus vizinhos israelitas exila- dos contando essa história, ele muito provavelmen-- teia ficar atônito. “As pessoas deviam se perguntar: cadê a batalha? Cadê o sangue? Achei que eu conhe- cesse essa história!”, especula Christine Hayes, professora de estudos clássicos judaicos da Univer- sidade Yale (EUA). Isso porque a narrativa da Bíblia é um repeteco de uma série de temas das histórias de criação típicas da Mesopotâmia - só que sem pancadaria. O mais famoso desses mitos é o Enuma Elish, cuja versão original provavelmente foi escrita em torno do ano 1700 a.C. (o título, aliás, tem um significado muito parecido com o “No princípio”, do Gênesis). À primeira vista, o começo do Enuma Elish é muito similar ao da narrativa israelita: antes da 01 e Coste Commons Arch Der gem do Cosmos, águas primordiais cobrem tudo. E o deus criador também produz um sopro impetuo- so. Mas as semelhanças terminam aí. No mito me- sopotâmico, a divindade que acaba criando a Terra, o guerreiro Marduk, tem de enfrentar a deusa-dra- gão Tiamat, que é justamente uma espécie de per- sonificação desse oceano primordial. O sopro de Marduk funciona como uma flecha ou lança que atravessa o corpo de Tiamat e mata a monstra. De- pois, com o cadáver de sua inimiga, o deus vence- dor constrói o firmamento do céu (entendido como uma tampa colocada lá no alto) e a estrutura da terra.É como se ele cortasse um molusco ao meio, separando os dois pedaços da concha. Muitos estudiosos acreditam que Tiamat, aliás, está presente de forma modificada no relato hebrai- co. Quando a Bíblia diz que “as trevas cobriam o abismo”, a última palavra em hebraico é tehom, que é basicamente o nome da “dragoa” sem a ter- minação feminina -at. (Essa associação é possível porque tanto o hebraico quanto o acadiano, língua da antiga Babilônia, descendem de um ancestral comum, tal como o português e o francês vêm do latim.) No Génesis, o texto faz de tudo para deixar claro que não há batalha nenhuma - Deus é capaz de dominar o abismo apenas com sua palavra. O curioso é que os autores de certos trechos da Bíblia pareciam conhecer versões da história nas “quais Deus se comporta como Marduk. Veja um tre- chinho do Salmo 74, por exemplo: “Tu (Deus, no caso] dividiste o mar com teu poder, quebraste à cabeça dos monstros das águas; tu esmagaste as ca- beças do Leviatã [monstro marinho), dando-o como alimento às feras selvagens”. É mais ou me- nos o que fez o deus babilônio - e o detalhe é que o Gênesis diz que Deus criou as “grandes serpentes do mar”, e não as derrotou. Não dá para terminar essa discussão sem men- cionar a peculiar criação do ser humano no Gêne- sis. Note que a Bíblia diz que o homem e a mulher são criados “a imagem e semelhança” de Deus e recebem uma única obrigação - a de não comer do fruto da “árvore do bem e do mal”. Nas narrativas mesopotâmicas, por outro lado, os humanos são criados como servos dos deuses, cuja obrigação de realizar sacrifícios para eles ajuda a manter o Cos- 'mos funcionando. Da mesma forma, a serpente que engana Eva no Gênesis não passa de uma criatura de Deus, em vez de ser uma arqui-inimiga divina, como Tiamat. A ideia de que ela seria o Diabo só apareceu mais tarde na tradição judaica. O [2 SUPERINTERESSANTE ARCA DE NOÉ DE LIVRINHOS INFANTIS A SUPERPRODUÇÕES COM RUSSELL CROWE, TODO MUNDO JÁ SE ACOSTUMOU COM A IMAGEM DA ARCA DE NOÉ como uma espécie de transatlântico de baixa tecno- logia, com seu casco bojudo e aquela casinha trian- gular no alto. É realmente chato bagunçar memó- rias de infância, mas o mais provável é que a arc; “original” tenha sido... redonda. E com diâmetro bem maior que a altura. Praticamente uma bolacha recheada gigante, como você pode ver no infográfi co que ilustra esta reportagem. Não sou eu que estou dizendo, mas um dos maio- res especialistas do mundo em caracteres cuneifor- mes, principal forma de escrita da antiga Mesopo- tâmia. O nome do homem é Irving Finkel, do Departamento do Oriente Médio do Museu Britâni- co, em Londres. Ele lançou neste ano o livro The Ark before Noah (“A Arca Antes de Nog”), no qual conta como descobriu e decifrou um texto cuneiforme es- crito por volta de 1700 a.C. que é uma das mais an- tigas versões da história do Dilúvio, e a que contém mais detalhes sobre o formato e os métodos de construção da célebre arca. Veja bem, Finkel não está afirmando que achou um relato histórico contemporâneo da inundação que teria destruído a vida na Terra (temporaria - mente). Até onde sabemos, nada do tipo aconteceu historicamente, embora algumas catástrofes bem mais modestas possam ter inspirado a narrativa. Na verdade, as tabuletas de argila estudadas pelo pes- quisador são mais uma prova importante do fenômeno que a gente já encontrou na primeira reportagem desta revista: os autores da Bíblia usaram temas e histórias que circulavam há séculos pelas culturas do Oriente Médio como base de suas narrativas. Mas deram uma interpretação renovada a esse cal- do de cultura, introduzindo uma série de ideias diferentes, ligadas à crença num Deus único. Em resumo, a narrativa da Arca de Noé, tal como a da criação, é teologia, e não história. ESSES HUMANOS SÃO UNS CHATOS Para entender melhor isso, vamos fazer um pequeno flashba- ck, Você deve estar lembrado de que, segundo o Gênesis, o primeiro casal de humanos foi criado “à imagem e semelhan- ça” de Deus, com o direito de governar sobre todos os outros seres vivos e com inteligência e autonomia moral semelhantes as do Criador. Mas eles desobedecem à ordem de não comer do fruto proibido do Éden e, por isso, são expulsos do Paraíso. Começam a ter filhos - o mais velho, Caim, mata o segundo, Abel, aliás - e a humanidade se multiplica pelo planeta. Só que o “jeito Caim de ser” parece que acaba predominando, e Deus fica tão desgostoso com os descendentes dele, extremamente violentos e sanguinários, que decide varrer a humanidade do mapa - com exceção do único homem “íntegro entre seus contemporâneos”, nosso amigo Noé A ideia de que os seres humanos estavam proliferando sobre a Terra também é um ponto importantíssimo das histórias so- bre o Dilúvio anteriores à narrativa bíblica. Só que, nos textos mesopotâmicos, como a Epopeia de Gilgamesh ou o Épico de “Atrahasis, o problema não era a sanguinolência humana, mas sim... o barulho causado por tanta gente. É sério: segundo essa visão, o Dilúvio teria sido apenas uma forma extremamente draconiana de aplicar a Lei do Silêncio. No Épico de Atrahasis, por exemplo, o deus Enlil diz aos seus companheiros divinos: “O barulho da raça humana se tornou intenso demais para mim/Com a balbúrdia deles sou privado do sono”. Esse texto é justamente o estudado por Finkel - ciam várias versões dele, mas as novas tabuletas de argila ana- lisadas pelo britânico trazem dados mais precisos sobre a cons- trução da arca. “A ideia do barulho no Épico de Atrahasis provavelmente reflete a superpopulação que, segundo a ima- ginação do autor, teria surgido antes que os deuses impuses- sema mortalidade ao homem”, explica. “É uma decisão racio- nal por parte dos deuses, digamos, e não uma decisão moral.” Essa é a principal diferença entre a concepção bíblica e a visão mesopotâmica do Dilúvio. “A preocupação característica dos pensadores judeus que escreveram o Antigo Testamento é com a moralidade. Não que a compreensão das diferenças en- treobome o mau comportamento não existisse na antiga Me- sopotâmia, mas eles não faziam tanto barulho em relação a isso quanto as religiões que surgiram depois”, conta Finkel. Na narrativa de Atrahasis, os deuses seguem o conselho de Palmeira e betume A verdadeira arca parecia uma mesa de centro 1. a mM + Enlil - menos um deles, Enki, que decide dar uma mãozinha para o herói-título da história, cujo nome quer dizer “extre- mamentesábio”. Falando através de um muro de juncos (para não dar na cara que ele estava dedurando o plano dos demais deuses), Enki instrui o humano Atrahasis a construir a arca, dando a entender que ela deveria ser redonda. As medidas exatas, segundo o texto, seriam 67,7 metros de iâmetro por 6 m de altura. A matéria-prima: madeira e cor- das feitas de fibra de palmeira, recobertas com betume (que é basicamente petróleo que aflora naturalmente no Iraque). Você deve estar pensando que esse treco não ia ser capaz de navegar nem aqui nem na China. De fato, mas a ideia é que ele só precisaria flutuar nas águas revoltas do Dilúvio, então a na- vegabilidade não seria um grande problema. A sequência dos eventos daí para a frente é quase idêntica nos textos da Mesopotâmia e na Bíblia: os animais subindo a rampa da arca de dois em dois, a entrada de Atrahasis e sua família na embarcação e, conforme as águas baixam, tem atéa ideia de mandar aves por uma abertura no teto da arca para ver seachavam terra firme. Diego Sanches Dani Rosi Na hora de descer da arca, no entanto, há mais uma diferença importante: na história mesopotá- mica, os próprios deuses ficam morrendo de medo da chuvona que causaram, e com fome porque não havia mais humanos para fazer sacrifícios de ani- mais para eles. Por isso, ficam um bocado aliviados quando Atrahasis sai do barco e faz esse favor para eles. No texto bíblico, após o sacrifício, Deus, de forma magnânima, “inventa” o arco-íris como si- nal de que não mais destruiria o mundo com água. MEMÓRIAS GENUÍNAS? Apesar de tanta motivação teológica por trás do texto, Finkel diz que deve haver algum fato real re- motamente refletido por ele. “A história do Dilúvio, na minha visão, é extremamente antiga e deriva de um dilúvio real que aconteceu muito tempo antes da invenção da escrita.” Uma possibilidade é que seja simplesmente uma memória muito distante de alguma grande enchen- te causada pelos super-rios da Mesopotâmia, o Ti- gree o Eufrates, ou então da formação do Mar Ne- gro, a Leste do Mediterrâneo. O Sob o domínio faraó Na época em que figuras como Abraão, Isaac e Jacó teriam existido, a terra que seria o lar dos israelitas era praticamente uma colônia do Egito, servindo de campo de batalha para os impérios do Oriente Médio. A força militar do Egito impossibilitava qualquer unidade política entre as cidades-estado da Palestina. 18 SUPERINTERESSANTE SOB O DOMÍNIO DO FARAÓ dade dos patriarcas. Os textos do livro do Gênesis apresentam nossos heróis viajando de lá para cá em caravanas que incluem camelos - mas esses bichos. só passaram a ser domesticados em larga escala bem mais tarde, no fim da Idade do Bronze, ou seja, em torno de 1200 a.C, Outra escorregada: as histórias citam a presença do povo dos filisteus, futuros arqui-inimigos de Is- rael, na terra de Canaã - mas, de novo, os filisteus provavelmente descendem de imigrantes da ilha de Creta, na Grécia, que na verdade só chegaram à Pa- lestina (termo que, aliás, deriva do nome deles) no fim da Idade do Bronze. E há ainda a esquisitice das narrativas duplicadas, que às vezes fazem com que aleitura do Gênesis pareça uma sequência de déja- -vus. Abraão, por exemplo, mais de uma vez se re- fugia nas terras de um rei poderoso; sabendo que > Sara, sua mulher, é muito bonita, pede que ela finja que eles são irmãos, porque não quer que o rei o mate para ficar com ela. Invariavelmente, o rei percebe o truque, fica fulo da vida e manda Abraão embora. A mesmíssima coisa acontece com Isaac e sua mulher Rebeca. Quais as chances de um episó- dio tão estranho acontecer mais de uma vez com um pai e com um filho? Isso levou os especialistas a postular que, na verdade, estaríamos lendo vi versões diferentes de um mesmo evento lendário, atribuído ora a um patriarca, ora a outro. Finalmente, não há menção a nenhum dos pa- triarcas em qualquer documento extrabíblico, ou seja, que não conste do livro sagrado. É claro que isso não quer dizer necessariamente que eles não tenham existido - mas praticamente impossibilita as tentativas de contar uma história objetiva deles. Os documentos sobre a Idade do Bronze cananeia, na verdade, até que são abundantes. É hora de exa- miná-los com cuidado. DOS HICSOS A RAMSÉS O fato é que os elos entre a terra de Canaã e o Egito parecem ter sido fortes desde que ambas as civilizações surgiram, em parte porque a Palestina éa melhor “estrada” para quem deseja conectar o vale do Rio Nilo com as grandes cidades da Mesopotâmia - as tentativas de cortar caminho esbarrariam num grande obstáculo, o deserto da Síria e da Arábia. Interessava aos egípcios, portanto, exercer sua influência na região, garantindo tanto a passagem de seus mensageiros e exércitos quanto praticando o comércio com os cananeus, que eram produtores de bom vinho e azeite, além de terem cidades mercantes na costa (eram os fenícios, habitantes do atual Líbano), Os negócios eram tão bons que, em egípcio, a expressão “falar cananeu” (idioma, aliás, que não passa de uma versão arcaica do hebraico) virou sinônimo de “barganhar” Muito mais ricos e militarmente poderosos que seus vizinhos ao Norte, os egípcios não tinham muita dificuldade na hora de fazer um bullying bá- sico, obtendo tributos e vantagens comerciais das. cidades-Estado que existiam em Canaã, como Gaza, Jerusalém e Siquém. Por outro lado, o reino do Nilo tinha muitos atrativos para os cananeus, especial- mente em períodos de seca e consequente fome. Muitos relatos egípeios falam de grupos nômades ou mesmo de moradores de cidades que pediam asilo no Egito nessas fases de vagas magras. Por volta de 1800 a.C. esse processo se tornou tão comum que saiu do controle: tantos cananeus emigraram para o delta do Nilo (região costeira do Egito) que a região virou um principado independente. Esse reino asiático em terras egípcias ficaria co- nhecido como a dinastia dos hicsos (corruptela do egípcio hegaw khasut, ou “governantes de terras estrangeiras”). Demorou, mas a elite egípcia final- mente conseguiu chutar os hicsos para fora do país (por volta do ano 1500 a.€.), dando início ao perio- do conhecido como Novo Império. Aparentemente escaldados com o recente domínio estrangeiro, os faraós resolveram impor um controle imperial di- reto sobre Canaã, expandindo-se até a Síria e as fronteiras da Mesopotâmia. O mais casca-grossa dos faraós dessa fase, Tutmósis 3º (1479 .C.-1425 a.C.), chegou até a cruzar 0 Rio Eufrates com seus guerreiros. Com essas ambições, o Egito passou a entrar em conflito periódico com o reino de Mitan- ni (na Síria) e o Império Hitita (na atual Turq) com os cananeus sendo pegos no fogo cruzado. Temos um registro precioso das relações entre Canaã e o Egito no século seguinte. São as chamadas cartas de Amarna, trocadas entre os faraós (princi palmente Aquenaton, que reinou de 1352a.C. a 1336 a.C.) e seus vassalos. Além de disputarem para ver quem bajulava mais o senhor do Nilo, chamando-o de “meu senhor, meu deus, meu deus do Sol” ou dizendo “aos pés do rei, meu senhor, caio sete vezes e mais sete”, os governadores ou reis vassalos das cidades palestinas também ficam tentando puxar o tapete um do outro nessas cartas. Avisam que o go- vernador da cidade rival quer tomar as terras do ecrestive Comme Pé-de-pato, mangalô, três vezes! Quem precisa de magia negra quando se tem um dos. exércitos mais poderosos da Antiguidade? Bem, os egípcios achavam que um pouquinho de mandinga também não fazia mal algum quando você queria dominar estrangeiros insolentes que não tinham a decência de se curvar à benevolência do faraó. É mais ou menos essa a lógica por trás. dos chamados Textos de Execração, um conjunto de feitiços achado na terra do Nilo que tinha entre seus principais alvos os habitantes da terra de Canaã. Esses textos foram produzidos entre os anos 2000 a.C. e 1800 a.C, mais ou menos. A técnica era simples: escrevia-se o nome do inimigo do Egito em certos objetos (que poderiam representar um estrangeiro acorrentado, por exemplo) e, logo depois, era feito um ritual no qual o objeto era quebrado e enterrado. Entre as “vitimas” do bruxedo estavam cidades da Palestina que se tornariam famosas nas narrativas bíblicas, como Jerusalém, Siquém e Hazor. faraó ou que ele se aliou aos chamados Apiru, um misterioso grupo de marginais nômades que, para alguns pesquisadores, seriam a origem do termo bíblico “hebreu” - ou seja, israelita -, embora essa relação nunca tenha sido provada. Entre as cidades mencionadas nas cartas de Amarna estão Jerusalém e Siquém, que são rivais, assim como seriam no período israelita. A fase das cartas de Amarna parece registrar uma certa decadência do poderio imperial egípcio na região, mas a chegada ao poder de uma nova di nastia, representada pelo faraó Ramsés 2º, que co- meçou a reinar em 1279 a.C., virou o jogo mais uma vez. Ramsés e seus generais enfrentaram os arqui- “inimigos do Egito, o Império Hitita, diversas ve- zes, e chegaram a levar algumas sovas, mas as duas potências acabaram assinando um tratado de paz que confirmou Canaã e o sul da Síria como quintais do Egito. Ramsés, de fato, acabou tendo um dos reinados mais longos da história de sua terra. Você deve ter reparado que, fora as menções aos. misteriosos Apiru, não há nem cheiro de Israel em todos esses séculos de história da Palestina. Bem, na época de Ramsés, isso estava prestes a mudar - para alguns, ele teria sido o faraó do Êxodo, aquele que foi derrotado por Moisés. A próxima reporta- gem investiga se foi isso mesmo o que aconteceu. € Que Êxodo? É praticamente impossível achar indícios arqueológicos de que um grande grupo de escravos tenha mesmo fugido do Egito e invadido a Terra Prometida. O mais provável é que os primeiros israelitas tenham sido nativos da Palestina. % Moisés abre as águas do Mar Vermelho: não é possível saber se ele realmente existiu. Os primeiros assentamentos associados ao povo de Israel datam de 1100 a.C. e mostram uma divisão característica a dos cômodos e das atividades domésticas. 24 SUPERINTERESSANTE ExoDO? QUE ExODO? Conforto israelita Como viviam os primeiros hebreus santo Foco capo miúdo 1 aanicnia Mocoumme templos nessa abrigos época, ofogo separados para podia os animais; eles servi para eram quase parte oferece sacrícos da família. Ovelhas alahweh, como ecabras eramos relatam certos textos. principais rebanhos. muito antigos da Biblia. Bois eram mais raros. VELHAA FAR PAU PARA TODA OBRA EB um dm ocpações A ho ani de bai, mais. os] da importantes era família guardavam produzir tecidos implementos. eroupas, uma agricolas simples, atividade que que eles mesmos. consumia boa fabricavame, parte do dia. consertavam. = O próprio nome de Moisés, por exemplo (figura que pode ou não ter existido), é egípcio - e meio tos- co, na verdade. Parece ser a terminação -mses pre- sente em nomes como Ramsés, ou seja, “nascido do deus Ra”. Do mesmo modo, os nomes do irmão de Moisés, Aarão, e de seu sobrinho-neto, Fineias, também parecem ser de origem egípcia. Finalmen- te, como vimos na reportagem anterior, muitos imi- grantes de Canaã iam parar no Egito, às vezes por necessidade, às vezes para aproveitar oportunidades comerciais, sem falar nos que eram vendidos como. escravos ou nos prisioneiros de guerra. Todos esses. fatores podem ter contribuído para uma memória histórica de libertação do jugo egípcio. Para os arqueólogos atuais, no entanto, os dados mais importantes para entender a origem dos isra litas vêm do progressivo colapso do poderio egípcio e das cidades cananeias a partir de 1200 a.C. Esse colapso parece estar ligado à chegada dos Povos do Mar, tribos guerreiras do Mediterrâneo (que podem ter vindo da Grécia, da Sicília e da Sardenha) que invadiram o Oriente Próximo nessa época. Os faraós, incluindo Merneptah, passaram déca- das lutando com levas dos Povos do Mar. Venceram, mas a pancadaria enfraqueceu o Egito, tanto que a região de Gaza acabou virando um feudo de uma dessas tribos guerreiras, os filisteus. Algumas cida- des em outras áreas de Canaã, como Hazor e Betel, acabaram sendo destruídas. A cultura tradicional de cidades-Estado da região continuou a existir, mas de forma abalada e empobrecida. Mais ou menos na mesma época (por volta de 1150 aC.), a região montanhosa no centro da Palestina, que costumava ter populações modestas ao longo da Idade do Bronze, de repente começou a se encher de pequenos povoados rurais. Uma casa típica desses aldeões pode ser vista no infográfico desta reporta- gem. O dado mais importante desse novo fenômeno de povoamento é que as aldeias se concentram jus- tamente nos territórios que se tornariam o coração do futuro reino de Israel, em locais como Siquém, Silo e Jerusalém, mas também do outro lado do Jor- dão. Por conta disso, a maioria dos especialistas chama esses assentamentos de “protoisraelitas”. Alguns dos vilarejos arrumam as casas num es quema circular, que lembra a disposição das tendas de beduínos no deserto, o que indica uma possível origem nômade de parte dos aldeões. Mas, no geral, a cultura material desse pessoal - a cerâmica, os utensílios domésticos, os túmulos etc. - é muito pa- recida com a dos antigos cananeus. O próprio he- anil oi Dez (dez?) mandamentos Um dos pontos mais importantes do Êxodo é a promulgação dos Dez Mandamentos, que teriam sido dados pelo próprio Deus a Moisés no Monte Sinai, Curiosamente, a história dos mandamentos não está isenta de algumas ambiguidades e contradições bem esquisitas. Há uma versão alternativa deles, com pequenas variações, também no livro do Deuteronômio, o quinto da Biblia, A maioria deles muita gente conhece - “não matarás”, “não cometer adultério” etc. O mais estranho, porém, é o que acontece depois que Moisés quebra as tábuas originais dos mandamentos, indignado ao ver os israelitas. adorando uma estátua, o Bezerro de Ouro. Ele faz, então, novas tábuas, mas os mandamentos que aparecem não têm nada a ver com os originais (exemplo: “Não o sangue do meu sacrifício com pão levedado”"). Estudiosos acham que duas tradições diferentes sobre o Êxodo foram misturadas, de modo a dar origem a essa discrepância. braico, idioma que seria falado nessa região na épo- ca dos reinos israelitas, é basicamente um dialeto cananeu. A conclusão lógica que se tira disso tudo: esses novos moradores das montanhas provavel- mente eram de origem cananeia. A ideia é que esses aldedes poderiam ser, em par- te, refugiados das cidades de Canaã, que tomaram o rumo das montanhas para escapar ao caos do fim da Idade do Bronze. Puseram-se a levar uma vida sim- ples, plantando cereais e cultivando parreiras e oli- veiras e também criando gado (em geral, ovelhas e cabras, com um ou outro boi no caso dos mais sor- tudos). Esse pessoal pode ter se unido tanto a bedu- nos vindos do outro lado do Rio Jordão (na atual Jordânia) quanto a grupos de escravos cananeus que conseguiram sair do Egito e voltar para casa. Não havia nada que os diferenciasse dos cananeus que viviam em cidades? Coincidência ou não, pare- ce que as aldeias das montanhas tinham uma dieta diferente. Praticamente não há ossos de porco nos sítios arqueológicos considerados “protoisraelitas”, enquanto os filisteus, recém-chegados à costa de Canaã, parecem ter sido grandes apreciadores de carne suína. Essa regra alimentar, seguida até hoje pelos judeus, talvez tenha sido o primeiro fator de diferenciação entre seus ancestrais e os povos ao re- dor deles. Ao “começar de novo” nas montanhas, eles criaram para si uma nova identidade. O David. Hood israelita Ele provavelmente existiu, mas não matou Golias e estava mais para fora da lei do que para monarca glorioso, sugere a arqueologia. A pedra lançada por David derruba o gigant teria sido de outro herói menos famoso. Poder. e controvérsia O reino israelita do norte foi pintado como um antro de corrupção e injustiça pelos autores bíblicos. Os dados arqueológicos, no entanto, mostram que a região teve séculos de prosperidade, tornando-se uma potência regional. Um dos Bezerros de Ouro, ídolos do reino de Israel que, segundo a Bíblia, atraíram a ira divina sobre o povo. JE SUPERINTERESSANTE PODER, LUXO E CONTROVÉRSIA TODA HISTÓRIA TEM DOIS LADOS - É UMCHA- VÃO, MAS NÃO DEIXA DE SER VERDADE. SE- GUNDO A BÍBLIA, A PARTIR DO ANO 930 A.C., A ANTIGA UNIDADE DO POVO israelita foi rompida. Na região sul da Palestina, o território das tribos de Judá e Benjamim continuou sendo governado pela família de David - mais precisamente pelo rei Ro- boão, neto do suposto matador de gigantes. Mas todas as outras dez tribos israelitas se rebelaram contra os pesados impostos e trabalhos forçados exigidos pela dinastia davídica e formaram um novo Estado ao norte de Jerusalém, chamado simples- mente de reino de Israel. Para os autores bíblicos do Primeiro e Segundo Livro dos Reis, a principal característica do Reino do Norte foi a idolatria, ou seja, a adoração de falsos deuses (por oposição ao verdadeiro Deus israelita, Iahvweh), exemplificada pela construção de dois grandes santuários, nos quais os novos reis g seus seguidores se prostravam diante dos Bezerros de Ouro. Segundo o raciocínio teológico da Bíblia, o Reino do Norte ficou independente como punição divina contra a idolatria de Roboão e seu pai Salo- mão, e também por causa da arrogância e intransi- gência dos herdeiros de David. Com o passar do tempo, alguns dos governantes do reino de Judá, no Sul, até teriam entrado nos eixos e adorado lahweh da maneira correta, enquanto os pecados do Reino do Norte continuavam a se multiplicar. Na visão dos autores da Bíblia, era só questão de tempo até o rei- no de Israel ser esmagado pela ira divina. Pode ser, mas falta o outro lado da história. E esse outro lado, que às vezes aparece de forma secundária no texto bíblico e pode ser recuperado parcialmente graças à arqueologia, é o da enorme prosperidade do Reino do Norte, em diversos peri- odos de sua história conturbada. Tudo indica que os soberanos supostamente “malditos” do Norte foram os que chegaram mais perto de realizar os sonhos de um império israelita atribuídos, na Bíblia, à monar- quia supostamente gloriosa de David e Salomão. REVOLUÇÃO URBANA Como vimos, as terras montanhosas do centro da Palestina, que acabariam se tornando o coração dos reinos de Israel e Judá, passaram por uma explosão de novos assentamentos rurais a partir do fim da Idade do Bronze (seguida, caso você não saiba, pelo início da Idade do Ferro). Essa rede de vilarejos foi se tornando cada vez mais densa ao longo das décadas, numa faixa que ia da Galileia, no Norte, a Hebron (em Judá), no Sul, Mas a região mais próspera, com solo mais fértil, mais disponibilidade de água e maior densidade populacional, ficava na parte central dessa faixa, nas chamadas montanhas de Efraim - provavelmente não por acaso, esse viria a ser o território mais importante do Reino do Norte. Com o advento de dois reinos israelitas na Palestina, o do Norte ficou com as terras mais férteis eo acesso ao mar. tizpa Bruno gare ARAM (síRia) Tudo indica que, por volta do ano 1000 a.€., um guerreiro chamado David conseguiu unificar sob seu domínio as vilas clãs nômades de Jerusalém para o Sul. Só que esse território era bem menos fértil e mais seco, com população esparsa. Enquan- to isso, no Norte, um fenômeno paralelo bastante curioso esta- va ocorrendo: os assentamentos rurais dos séculos anteriores começaram a ser abandonados, enquanto a população passava ase concentrar em cidades de verdade (para os padrões da épo- ca, claro; S mil ou 10 mil habitantes já correspondia a um cen- tro urbano respeitável). É o tipo da coisa que se espera no nas- cimento de Estados nacionais: maior complexidade econômica, surgimento de profissionais especializados, centros urbanos e uma possível unificação política. Arqueólogos e historiadores do século passado costumavam associar esse processo aos reinados de David e de seu filho Sa- lomão. A prova parecia vir de escavações em metrópoles do + O mistério dos bezerros De acordo com o Primeiro Livro dos. Reis, o reino do Norte começou com o pé esquerdo do ponto de vista religioso. Afinal o primeiro rei de Israel, chamado Jeroboão, teria decidido competir com o culto “oficial” a lahweh, realizado no Templo de Jerusalém construído por Salomão (é, aquele que inspirou o da Igreja Universal em São Paulo) Para. isso, Jeroboão teve a ideia de mandar construir dois bezerros de ouro e colocar cada um deles nos extremos Sul e Norte de seu reino, nas cidades de Betel e Dà, As estátuas douradas. teriam virado, a partir daí, o centro de santuários, nos quais se ofereciam sacrifícios a esses ídolos. Bem, essa é a história bíblica. O que não está exatamente claro é se osisraelitas de fato estavam adorando a outro deus, e não à lahweh, quando ofereciam sacrifícios diante dos bezerros. É possível interpretar as estátuas como se elas. fossem representações do próprio tahweh. Na antiga religião cananeia, por exemplo, touros ou bezerros. eram os animais-símbolo de El, o patriarca dos deuses, cujas funções e características parecem ter sido incorporadas por lahweh (o Deus. bíblico, aliás, chega até a ser comparado a um touro poderoso em certas passagens das Escrituras). Mesmo assim, quando considera-. mos a versão original dos Dez Mandamentos no livro do Éxodo, parece que a regra é clara. “Não farás para tiimagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não prostrar-te-ás diante desses. deuses." O problema é a fabricação de imagens de culto, pelo visto. Profetas bons de bico Figuras como Amós, Isaías e Jeremias são uma mistura única: grandes poetas que diziam ter conexão direta com Deus e desafiavam reis e sacerdotes em nome da justiça social e da pureza religiosa. Ea De acordo com o Antigo Testamento, uma carruagem de fogo teria levado o profeta Elias para o céu. 38 SUPERINTERESSANTE PROFETAS BONS DE BICO NINGUÉM SABE MUITO BEM QUAL O SIGNIFI- CADO ORIGINAL DA PALAVRA HEBRAICA NAVI, TRADUZIDA PARA AS LÍNGUAS OCIDENTAIS COMO “PROFETA”. MAS HÁ POUCAS DÚVIDAS sobre o papel central dos profetas bíblicos para a história israelita. Perseguidos por reis, nobres e sa cerdotes por causa de sua desagradável mania de prever a destruição dos reinos de Israel e Judá, esses pregadores certamente não eram o tipo de sujeito que você gostaria de convidar para uma festa, mas sua obra acabou se tornando crucial para a recons- trução da identidade dos israelitas depois que eles perderam sua independência. Isso porque, além da mensagem de destruição, os profetas tinham na manga uma mensagem de consolação, que colocava no centro da história humanaa figura do Deus úni- co de Israel e Judá, lahweh. Aliás, é bastante provável que a própria ideia de uma religião monoteísta, ou seja, a crença na exis- tência de um único Deus verdadeiro, tenha surgido com os profetas. Tudo indica que a maioria dos is- raelitas não tinha grandes problemas em adorar ídolos (imagens de divindades) ou em acender uma vela para Iahweh e outra para antigos deuses de Ca- naã, como Baal e Asherah. E, mesmo que adorassem apenas ao Deus de Israel, não passava pela cabeça deles negar a existência de outros poderes divinos. São os textos proféticos da Bíblia os responsáveis por criar a definição mais antiga, clara e radical do monoteísmo - em parte, ao que tudo indica, como resposta às crises sociais, políticas e militares que seu povo enfrentou. AMIGO URSO Eliseu, profeta do Reino do Norte, teria mandado ursos para atacar rapazes que zombavam dele por ser careca. AGONIA E ÊXTASE Os estudiosos da Bíblia costumam dividir os profe- tas em dois grandes grupos: não literários (mais antigos) e literários. Os primeiros são os que mais se aproximam de outras figuras parecidas no resto do Oriente Médio, e seus mais famosos representantes (com exceção de Moisés, claro, que teria sido o líder do Êxodo) são personagens dos livros dos Reis: Elias e seu discípulo Eliseu. Assim como certos videntes pagãos, tais profetas têm experiências de êxtase religioso, com visões, vozes divinas e transes. Podem “fazer consultas” a partir de pedidos de cidadãos comuns ou da realeza tetimages ese reúnem, por vezes, em “associações profissio- nais”, os chamados grupos dos “filhos de profetas” (“filhos” entendidos aqui como seguidores, e não em sentido literal, de descendência). A grande diferença, no entanto, é que os mais famosos profetas não literários são... bem, lingua- rudos e radicais do ponto de vista político e religio- so. O radicalismo de Elias começa pelo próprio nome do sujeito - em hebraico, Eliyahu, ou seja, “Meu Deus é Iahweh”. Elias era uma das principais dores de cabeça de Acab, poderoso soberano do rei no israelita do Norte que também era um adorador contumaz do deus pagão Baal. Num relato cheio de humor negro, a Bíblia conta como o profeta teria organizado uma competição com os profetas de Baal, para ver qual deus seria capaz de mandar fogo do céu para queimar um animal sacrificado (é claro que Iahweh ganha a parada, e os profetas de Baal são executados). De quebra, ao condenar injusta- mente à morte um israelita cuja propriedade cobi cava, o rei foi ameaçado com a punição divina por Elias e acabou se humilhando diante do profeta (re- sultado: o castigo ficou para a geração seguinte, a dos filhos de Acab) PRIMEIRO PRÉMIO EM POESIA No século seguinte ao que Elias teria vivido, ou seja, por volta do ano 750 a.C., o fenômeno profético muda de figura. Agora, em vez de serem andarilhos milagreiros, como Elias, os profetas se tornam grandes poetas, cujas falas passam a ser registradas por escrito - daí a classificação de profecia literária dada a eles pelos especialistas “Em certo sentido, o aparecimento da profecia literária parece meio milagroso. É como a geniali- dade de Shakespeare. De repente surgem esses su- jeitos no século 8º a.C., como Amós e Oseias, escre- vendo num hebraico maravilhosamente poético, o qual, para ser franco, às vezes é bem difícil de en- tender. Nada desse tipo existia antes, até onde sa- bemos”, diz Shaye Cohen, rabino e professor de li- teratura e filosofia hebraica da Universidade Harvard (Estados Unidos). “De fato, o fenômeno da profecia literária parece ser algo único no Oriente Médio”, concorda Daniel Fleming, professor de estudos judaicos na Univer- sidade de Nova York. “Em outros lugares e épocas, temos videntes e andarilhos milagreiros, mas essa combinação específica de profecia altamente poé- tica e de confronto permanente com as autoridades éalgo típico do antigo Israel.” Ou seja, os profetas literários continuam sendo pedras no sapato da monarquia israelita. Em par- tes, as queixas se parecem com as de Elias - eles basicamente condenam a falta de fidelidade dos reis e seus súditos a Iahweh, comparando-a a um casamento no qual o povo de Israel é a esposa, e Deus, o marido traído. Por outro lado, sujeitos como Amós e Isaías condenam os reinos israelitas pelo pecado da injustiça social: óriãos e viúvas abandonados à própria sorte, mercadores que adulteram pesos e medidas e vendem caro a quem está passando fome, grandes senhores de terra que buscam aumentar cada vez mais seus latifúndios e expulsam os camponeses de suas casas. Por estranho que isso possa parecer, os profetas literários também atacam de analistas de política internacional. É que eles surgem justamente na época em que a ascensão de grandes impérios, como a Assíria e a Babilônia, ameaça a existência dos reinos israelitas. Por vezes, eles enxergam as potências imperiais como instrumentos da justiça divina contra os pecados de Israel; em outros casos, dizem que é preciso ter esperança de que Deus sal- vará ao menos parte de seu povo, E, por falar em estranheza, às vezes os profetas adotam comporta- mentos bizarros como símbolo de suas profecias. Oseias aceita continuar casado com uma mulher adúltera (como representação do “adultério reli- gloso” de Israel); Jeremias usa uma canga (como à de bois num arado) para representar a futura escra- vidão do povo de Judá; e por aí vai O papel dos profetas, no entanto, não termina com o fim da independência israelita (como vere- mos na próxima reportagem). Quando o desastre previsto por Amós, Jeremias e outras figuras final- mente se concretiza, eles enfatizam a ideia de que Jahweh estava no controle dos acontecimentos po- Jíticos mundiais e de que, no fim das contas, ele acabaria perdoando os sobreviventes que fossem fiéis, restaurando, um dia, a glória perdida de Isra- el. Essa esperança ajudou a forjar o judaísmo e o cristianismo que conhecemos hoje. O