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Este artigo discute a visão representacional computacional da cognição contraposta ao enativismo da ciência cognitiva, que defende que o conhecimento é fruto da afetação do corpo pelo ambiente. O texto também aborda a explicação neuronal da ética, a redução da moralidade a emoções e a relação entre cérebro, ambiente e comportamento moral.
Tipologia: Notas de estudo
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Declaram não haver conflito de interesse.
Revista Bioética Print version ISSN 1983-8042 On-line version ISSN 1983- Rev. Bioét. vol.28 no.2 Brasília Abr./Jun. 2020 Doi: 10.1590/1983-
Carolina Alejandra Reyes Molina^1 , José Roque Junges^2
1. Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo/RS, Brasil. 2. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Unisinos, São Leopoldo/RS, Brasil.
Resumo O artigo parte da discussão entre a visão representacional computacional da cognição contraposta ao enfoque enativo da ciência cognitiva, que defende que o conhecimento é fruto da afetação do corpo pelo ambiente. Discute as consequências dessa visão enativa para a compreensão da neuroética, entendida não como conjunto de parâmetros éticos para as experiências científicas nas neurociências, mas como compreensão neuronal científica do agir moral. A explicação neuronal da ética parte de neuroimagens como expressões de emoção, mas reduzir a moralidade às emoções é discutível, pois juízos emocionais, baseados na proximidade afetiva, destoam de normas éticas de base universal. Outro ponto crítico dessa visão é o artificialismo de suas experi- mentações, devido ao esquecimento do mundo cotidiano de afetações do corpo, enfoque trazido pelo enati- vismo da ciência cognitiva. Palavras-chave: Ciência cognitiva. Neurociências. Meio social. Ética.
Resumen Ciencias cognitivas y la neuroética El articulo parte de la discusión acerca de la visión representacional de la cognición contrapuesta a un enfoque enactivo de la ciencia cognitiva, que defiende que el conocimiento se origina de la afectación del cuerpo por el mundo ambiente. En una segunda parte discute las consecuencias de esta visión enactiva para la comprensión de la neuroética, entendida no como parámetros éticos para las experiencias científicas en las neurociencias, sino como comprensión neuronal científica del actuar moral. Interesa discutir esta segunda concepción. La explicación neuronal de la ética parte de neuroimágenes, como expresiones de emociones. Reducir la morali- dad a las emociones es discutible, porque existen disonancias entre juicios emocionales, basados en la proxi- midad afectiva, y normas éticas de base universal. Otro punto crítico de esta visión es el carácter artificial de sus experimentaciones, causado por el olvido del mundo cotidiano de las afectaciones, enfoque traído por el enactivismo de la ciencia cognitiva. Palabras clave: Ciencia cognitiva. Neurociencias. Medio social. Ética.
Abstract Cognitive sciences and neuroethics This article starts with the discussion between the representational computational cognitive framework versus the enactive perspective of the cognitive science, which argues that knowledge is the result of the body’s interaction with its environment. It discusses the consequences of this enactive perspective for the understanding of neuroethics, read not as a set of ethical parameters for scientific experiments in neurosciences, but as a neural scientific understanding of the moral action. The neural explanation of ethics comprehends neuroimaging as expressions of emotion, but reduce morality to emotions is debatable, since emotional judgments, based on affective proximity, diverge from ethical and universal norms. Another critical point of this framework is the artificiality of its tests, caused by neglecting the environmental effects on daily life, approach brought by the enactive approach. Keywords: Cognitive science. Neurosciences. Social environment. Ethics.
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No final da década de 1950 e início da década de 1960, pequenos grupos de pesquisadores, princi- palmente das áreas de linguística, neurociência, psi- cologia, antropologia, filosofia da mente e, de forma destacada, inteligência artificial, se propuseram a res- ponder em que consiste a mente ou a cognição. Para isso, tiveram que ultrapassar as fronteiras dos seus pró- prios saberes específicos e assumir perspectiva multi- disciplinar, assentando as bases conceituais e metodo- lógicas para a compreensão interdisciplinar da mente e dando origem à assim chamada “ciência cognitiva”1,2. A década de 1990 trouxe a contribuição de Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch com a obra The embodied mind: cognitive science and human experience^3. Nesse livro, os autores apresentam o modelo computacional da mente como origem do cognitivismo, passando pelo modelo conexionista e buscando apresentar o que surgia como nova aborda- gem para as ciências cognitivas: o “enfoque enativo”. Baseado no conceito de enação, entendido como algo que emerge ou brota, o modelo questiona o entendimento tradicional de cognição como repre- sentação do mundo externo totalmente distinto do sistema cognitivo, propondo substituí-lo pela com- preensão da ação corporificada. Os autores se preo- cupavam em estabelecer diálogo entre as ciências, especialmente a sofisticada ciência cognitiva, e a experiência humana, de modo a não resultar em uma cultura científica dividida e irreconciliável com a autocompreensão cotidiana 4. O enfoque corporificado inspira-se na pro- posta fenomenológica de Merleau-Ponty 5 , que con- sidera os corpos simultaneamente estruturas físicas e estruturas experienciais vividas. Diversas áreas apropriaram-se desse enfoque antes mesmo que se estabelecesse programa bem definido, como se demonstra pelo uso de variados termos relaciona- dos à noção de corpo, como corporização ( embo- diment ), mente incorporada, ação ou cognição cor- porizada etc. Contemplando a variedade semântica desses termos, a noção de “mente incorporada” é usualmente utilizada de forma mais abrangente. Dada ainda a influência da teoria da auto- poiese, desenvolvida por Maturana e Varela 6 (este último, fundador do enfoque), o enativismo foi por vezes compreendido como coextensão entre sistema vivente e sistema cognitivo, pela similitude entre vida e cognição. Observa-se nesses casos a necessidade de melhor revisar os conceitos de autopoiese e as implicações e modificações de sua recepção enativa. Outra discussão, já em plano epistemológico, é o grau de homogeneidade e integração entre o
enfoque enativo e o marco teórico metodológico da ciência cognitiva – em outras palavras, debate- -se a compatibilidade entre cognitivismo clássico e enativismo. Nesse contexto, Clark 7 propôs distinguir posturas enativas simples, nas quais é possível con- jugar enfoque enativo e ciências cognitivas, posturas mais radicais, que possibilitam modificar o objeto de estudo, e o marco teórico das ciências cognitivas. A diversidade e o aumento do número de pesquisas de diversas áreas focadas na interação entre fatores corporais, ambientais e comporta - mentais demonstram o interesse nesse enfoque corporizado. Considera-se, portanto, pertinente aproximar os princípios do enfoque enativo, que aborda a relação conceitual entre vida, mente e mundo, como paradigma plausível para as ciências cognitivas, servindo-se de suas consequências para compreender a neuroética. Em vista disso, esboçam-se as principais características do cognitivismo como enfoque a ser superado pelo enativismo, cujas características são então apresentadas como contraponto ao modelo anterior. Posteriormente, explicita-se o significado da neuroética para a identidade da ética, analisando criticamente as tendências que reduzem o agir ético a funções cerebrais, por fim possibilitando aplicar o princípio enativo para a compreensão das decisões morais na neuroética.
O cognitivismo surge com o intuito de com - preender os princípios da cognição – os mecanis - mos que produzem suas funções, como memória, aprendizagem, linguagem etc. Com o surgimento dos computadores e o desenvolvimento da teoria da computação, a mente passou a ser entendida como computação de representações simbólicas de caráter linguístico, representações que adqui - rem realidade física na forma de um código simbó- lico no cérebro ou em uma máquina^8. A cognição humana seria, portanto, a representação mental, compreendida como manipulação de símbolos que representam o mundo externo. Os avanços tecnológicos possibilitaram com- preender os processos cognitivos humanos de forma análoga aos processos computorizados, for- talecendo e potencializando o enfoque cognitivo clássico. Consequentemente, o computador digital se tornou a metáfora-guia deste enfoque cogniti- vista, entendendo-se a relação corpo-mente como hardware-software.
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portuguesa 18 da obra de Varela, Thompson e Rosch traduzem a palavra “ enact ” por “ enacción ” e “enac- ção”, respectivamente, e a edição brasileira 4 utiliza o termo “atuação”. Portanto, “enativismo” significa o mesmo que “atuacionismo”, e enfoque “enativo”, “atuacionista”. Para insistir na originalidade do termo, pode ser preferível usar o anglicismo “enativo”. Inserido em abordagens mais subjetivistas, o enativismo representa o processo de crítica ao cog- nitivismo duro do período inicial ao entender que os processos cognitivos abarcam diversas causas nas quais intervém o cérebro, em íntima interação com o corpo e o entorno, que conformam o seu funcio- namento. Apropriando-se dos princípios de mente estendida e corporizada, o enfoque enativo vai além ao considerar a mente como atuação. A inovação do modelo inativo está no enten- der a percepção intimamente vinculada à ação. Esse enfoque considera, por exemplo, que o corpo atua para perceber uma flor no jardim assim que a decisão de aproximar-se para fazê-lo é tomada. Isso implica que mundo e sujeito não estão separados, ou seja, a base dessa proposta é a relação, a con- tinuidade, o entre-deux (entre o eu e o mundo ou o interior e o exterior) de que fala Merleau-Ponty 5. Essencialmente, essa teoria concebe a cogni- ção não como representação, mas como ação no mundo, ou seja, o contexto e a situação seriam elementos constituintes da cognição. O enativismo considera a cognição como atividade contínua, mol- dada pelos processos auto-organizados da partici- pação ativa no mundo e pela experiência e autoafe- tação do corpo animado. Propõe assim superar o cognitivismo, que entende a cognição como pura projeção do mundo 19,20. O termo “enativo” busca destacar que a ação é “incorporada”, significando duas coisas: primeiro, a cognição depende de dois tipos de experiência decor- rentes de se ter um corpo com várias capacidades sensório-motoras e, segundo, que essas capacidades sensório-motoras individuais estão, elas mesmas, embutidas em contexto biológico, psicológico e cul- tural, mais abrangente^21. Assim, as características da cognição enativa, corporizada e estendida são i) que a mente está ancorada no mundo por intermédio do corpo; ii) as representações internas não são estruturas abstra- tas (…) , mas pré-conceituais, frutos da experiência corporal; iii) a situacionalidade [do conhecimento] envolve o corpo em todo o processo cognitivo; iv) a situacionalidade se relaciona a pessoas em ação; v) portanto, a cognição não depende de manipulação
de representações, mas de padrões de conduta de um organismo em seu entorno^22. A abordagem enativista/atuacionista implica que 1) a percepção consiste em ação perceptiva- mente orientada e 2) as estruturas cognitivas emer- gem dos padrões sensório-motores recorrentes, que possibilitam à ação ser perceptivamente guiada^21. “Ação perceptivamente guiada” implica embasar ações futuras na análise das ações anteriores em determinada situação concreta. Quando o sujeito perceptivo modifica constantemente sua atuação na situação concreta em que se encontra, o ponto referencial para compreender a percepção/cognição é deslocado do mundo preestabelecido para a estru- tura sensório-motora corporal do sujeito perceptivo. Essa estrutura possibilita padrões perceptivos que se modificam em relação ao ambiente, que per- mitem ao sujeito agir no mundo, deixando-se afetar pelos acontecimentos do meio no qual se encontra. Ou seja, o organismo inicia o processo de percep- ção do mundo e é simultaneamente modelado pelo ambiente 4,23^. Quais são as consequências desse entendimento de cognição defendido pelo enfoque enativo/atuacionista para a concepção de ética?
O campo neurocientífico se relaciona de duas maneiras com a ética. Primeiro, a ética das neurociên- cias discute a casuística da pesquisa sobre o cérebro e o sistema nervoso e a aplicação de seus conhecimen- tos em humanos. Nessa concepção, a neuroética faria parte da bioética. Segundo, a neurociência da ética reflete sobre as consequências do conhecimento neu- rocientífico para a compreensão da ética. A questão central seria discutir se o agir moral é conformado por processos neurofisiológicos ou, mais especifica- mente, se a moralidade tem bases neuronais. A primeira definição preocupa-se com os parâ- metros éticos da atuação científica nas neurociên- cias, identificando os princípios fundamentais das investigações sobre o funcionamento neuronal do indivíduo, enquanto a segunda pretende explicar cientificamente o agir moral humano. Esse segundo caso não abarca a ética aplicada, referindo-se em vez disso à compreensão neuronal da racionalidade, liberdade, voluntariedade do agir moral, e é o que de fato interessa para esta discussão. Isso porque signi- fica autêntica revolução, já que pretende explicitar os processos neurofisiológicos subjacentes às questões éticas. Essa visão permitiria teorizar uma ética univer- sal, biologicamente explicável pelas bases neuronais,
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e viabilizaria, com isso, o aperfeiçoamento moral da humanidade por meio da intervenção neuronal 24,25.
As bases neurofisiológicas da ética sustentam- -se em pesquisas empíricas que usam neuroima- gem para demonstrar a ativação de certas regiões do cérebro durante situações que exigem discerni- mento moral entre opções diversas e às vezes opos- tas. Pretende-se encontrar a ética universal integrada no cérebro como conjunto de respostas biológicas a dilemas morais, correspondendo a uma aquisição evolutiva com função adaptativa para sobreviver 26.
Esse modelo de investigação foi a princípio muito aclamado, pois contribuiu para entender as bases neu- ronais de certas opções morais. No entanto, foi tam- bém criticado, pois as primeiras pesquisas a utilizá-lo se basearam em raciocínios morais ativados por cérebros caracterizados por anormalidades, desconsiderando ainda as influências culturais da moralidade e redu- zindo-a ao seu fundamento biológico neuronal. Essa análise aponta a necessidade de incentivar diálogos interdisciplinares sobre a questão, discutindo-se ainda os desafios éticos de incluir nesse tipo de pesquisa indi- víduos com lesões neurológicas 27-29.
Pesquisas de neuroimagem que buscam fun- damentar a base cerebral da ética pressupõem que decisões morais têm caráter emocional, ativando a área cerebral responsável por esse desempenho. Nessa perspectiva, em situações de opção de solida- riedade, o agente moral decidirá ajudar a pessoa ou o grupo com o qual se sente emocionalmente mais próximo e identificado. Essa dimensão emocional é definida pelos diferentes autores como intuições, ins- tintos, sentidos, competências – que têm significados diversos dependendo da tradição filosófica 25,30.
O papel das emoções na vida moral sempre foi tema central da ética no Ocidente. Para Aristóteles 31 , o fim último de toda atividade humana é a felici- dade, que pode ser alcançada pelo entendimento teórico do conhecimento ou pelo domínio prático das paixões, viabilizando uma relação harmônica com o mundo natural e o social. Nessa tarefa, o ser humano é ajudado pelas virtudes, capitaneadas pela virtude da sabedoria prática ( fronesis ), que permite equilibrar excesso e falta 31.
O epicurismo compreende a moral como busca de felicidade entendida como prazer, como satisfa- ção de caráter sensível, sendo sábio aquele que cal- cula a duração e intensidade dos prazeres advindos das atividades morais. Para o estoicismo, a moral se identifica com a ordem do universo e, por isso, a moralidade das ações é definida pela razão cós- mica, que é a lei universal que tudo rege. Na época
helenística, portanto, surgem dois caminhos para determinar as ações morais: satisfação sensível pra- zerosa ou razão cósmica universal 32. Para Hume 33 , nos tempos modernos a moral se refere a sentimentos subjetivos de agrado ou desa- grado, resumindo-se o papel da razão ao conheci- mento das circunstâncias da ação – sem, no entanto, ser suficiente para produzir efeitos práticos no agir. Para o autor, uma vez que a razão não está encarre- gada de estabelecer juízos morais, estes são delega- dos a outras faculdades, que seriam menos impor- tantes que a razão: as paixões e o sentimento 33. No século XX, com o advento da análise dos enunciados morais, de Moore 34 , esse posiciona- mento de Hume foi reeditado com o emotivismo de Ayer 35 e Stevenson 36 , que afirmam que os enuncia- dos morais são aparentes, pois nada comprovam, expressando apenas aprovação ou desaprovação. Esses pseudoenunciados têm dupla função: expres- sam emoções subjetivas ou sentimentos e influen- ciam os interlocutores com a pretensão de motivar a atitude aprovada. Portanto, não pretendem descre- ver situações, mas provocar atitudes. Para Kant 37 , as influências da sensibilidade emocional precisam ser superadas para que a decisão moral seja fruto de boa vontade movida pela racionalidade reta. O imperativo ético surge autonomamente de procedimentos apriorísticos racionais, tendo como critério a universalidade das máximas transcendentais, para além de qualquer particularidade situacional que o sujeito impõe para si. Portanto, para Kant, ser ético é não permitir que as emoções influenciem a vida moral do sujeito. Assim, no final dos tempos modernos aparecem perspectivas diversificadas, aparentemente opostas, expressas nos dois modelos vigentes da ética atual: utilitarismo (satisfação sensível) e deontologismo (deveres apriorísticos). Segundo Bonete 38 , estudos mostram que juízos morais deontológicos se apoia- riam em processos racionais, enquanto os conse- quencialistas responderiam a processos emocionais. Contudo, a história da ética demonstra que a moralidade requer aportes tanto da sensibilidade, por meio das emoções, quanto da racionalidade, por meio de argumentos e juízos. Baseando-se em neuroimagens que apenas estudam as áreas cerebrais das emoções, a neuroética não consegue captar a interação entre sen- sibilidade e racionalidade. Por outro lado, reduzir cer- tas atividades neuronais a áreas definidas do cérebro é esquecer de sua maleabilidade e conectividade, que permite, por exemplo, que as emoções sejam fruto de interfaces entre várias regiões do cérebro.
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sua inserção no mundo, um ambiente particular e próprio de relações e afetações que o configuram 5 , assim como o cérebro que o comanda. Em outras palavras, a mente é o software do corpo sujeito, assumido como expressão de si e como base das relações com os outros e com o mundo, pois o cére- bro expressa e explica o seu funcionamento e suas potencialidades. As experiências corporais do sujeito conformam o cérebro, que, por sua vez, possibilita o desempenho do corpo próprio.
O sistema nervoso faz parte da estrutura biológica do corpo, mas esse hardware neuronal precisa ser configurado por um software funcional que depende da constituição do corpo sujeito, cujo cérebro é conformado pelas afetações do ambiente como próprio, individualizado, como base de desem- penho daquele corpo 42,43^. Esse é o significado do conceito de mente incorporada defendido por Varela, Thompson e Rosch 4 como fundamento do princípio enativo que explica a cognição.
Quais são as consequências dessa relação entre cérebro e ambiente intermediada pelo corpo para a compreensão do comportamento moral? Quais são as implicações para a explicação das bases cerebrais da ética? Se o cérebro é conformado pelas afetações do ambiente sobre o corpo, pois a mente é corporalizada, um dos elementos centrais desse ambiente é o contexto sociocultural. O que verda- deiramente configura o cérebro como mente situada é a cultura, entendida no sentido da palavra alemã bildung , isto é, cultura como formação. Isso explica por que pessoas de determinada cultura pensam, refletem e reagem em certas situações de maneira semelhante: porque elas fazem parte de uma mente coletiva. O núcleo dessa mente é o que Bourdieu chamou de ethos , entendido como
o conglomerado de evidências, símbolos, mitos, valo- res e práticas que fundamentam e regulamentam a vida individual e coletiva. É o ethos que, por um
processo de acumulação, herança, tradição e prá- ticas suscita e institui, em cada um, predisposições para as relações sociais. Essas predisposições podem ser definidas, com maior precisão, como sistemas de disposições duráveis e transferíveis que, integrando todas as experiências passadas, funcionam em cada momento como matriz de percepções, apreciações e ações. Essa matriz torna possível cumprir tarefas infinitamente diferenciadas graças à transferência analógica de esquemas. Permite resolver os proble- mas da mesma forma e graças às correções inces- santes dos resultados obtidos, dialeticamente produ- zidos por esses resultados^44_._
Onde está armazenada essa matriz de pre- disposições duráveis que explica o comportamento moral das pessoas? Ela está configurada nas intera- ções neuronais do cérebro como fruto das afetações do contexto sociocultural sobre o corpo, conformada na mente corpórea de resposta aos desafios morais enfrentados por essa pessoa. Assim, o cérebro ético da pessoa é expressão da cultura moral da mente coletiva à qual ela pertence.
As investigações das neurociências sobre a base neurofisiológica da ética podem trazer contri- buições valiosas para o entendimento do compor- tamento moral das pessoas. Isso porque as ações morais resultam da execução de predisposições con- figuradas na matriz cerebral, fruto de afetações do contexto sociocultural sobre o corpo como mediação para o agir no mundo. Entretanto, o modelo investi- gativo que busca comprovar o fundamento biológico neuronal da ética por meio de pesquisas controladas sobre situações morais, verificáveis em neuroima- gens, contradiz essa constatação, pois desconsidera a base cultural de toda moralidade, ativada pela mente corpórea conformada pelo ambiente.
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Carolina Alejandra Reyes Molina – Mestranda – carolinamolinareyes@gmail.com 0000-0002-7586- José Roque Junges – Doutor – roquejunges@hotmail.com 0000-0003-4675-
Recebido: 8.6. Revisado: 7.1. Aprovado: 10.1.