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Tipologia: Resumos
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Não perca as partes importantes!
Fátima Regina Rodrigues Évora
(Centro de Lógica, epistemologia e História da Ciência da Unicamp)
Num primeiro momento os eruditos medievais dedicaram-se à reconstrução
do pensamento dos antigos. A interpretação e a crítica, com algumas excessões,
só vieram anos mais tarde com os escolásticos. Entre estas exces-sões destaca-se a
crítica à dinâmica de Aristóteles feita, no início da Idade Média, pelo cristão
neoplatônico Philoponus de Alexandria (século VI)
1 .
Philoponus parece ter sido o primeiro medieval a sustentar que a causa do
movimento violento (tal como o movimento de projéteis) não pode ser o meio,
como é previsto pela dinâmica aristotélica, segundo a qual todo movimento local,
natural ou vio lento, é regido por uma mesma lei, de acordo com a qual, a
velocidade (v) de um corpo que se move em uma dada distância é proporcional à
razão entre a força motriz (F) em contato direto com o corpo móvel, e a resistência
ou densidade do meio ( R ) ou, numa notação moderna:
1 Devemos notar que algumas panes da dinâmica de Aristóteles já haviam sido criticadas na Grécia antiga, por exemplo, por Hipparchos (séc. II A. C.) e Plutarchos (50-125). Hipparchos, segundo Simplicius, opôs-se à visão aristotélica do movimento de projéteis, declarando que no caso dos projéteis "arremessados para cima é a força pró-jetora que é a causa do movimento para cima, já que a força projetora domina a tendência para baixo dos projéteis, e que na medida em que esta força projetora predomina, o objeto move-se mais rapidamente para cima; então quando a força diminui: 1) o movimento para cima continua, mas não na mesma proporção, 2) o corpo move-se para baixo sob a influência de seu impulso interno, embora a forca original subsista em alguma medida, e 3) como esta força continua a diminuir o objeto move-se para baixo mais rapidamente, e mais rapidamente quando esta força estiver inteiramente perdida" (SIMPLICIUS. Commentary on Aristotle's De Caelo 264.20-267.6 (Heiberg) apud COHEN, M. R. &, DRABKIN, I.E./4 SourceBook in Greek. .. p. 209).
Uma teoria similar é utilizada por Hipparchos para explicar o movimento dos corpos que caem
"diz que [continua Simplicius] a força que os segura permanece com eles até certo ponto, e este é
o fator restringente que responde peio movimento mais lento junto ao início da queda"
{SIMPLICIUS, apud COHEN, M.R. &. DRABKIN, l.E.A Source Book... p. 209).
Simplicius, como vemos, parece indicar que em Hipparchos já existia a ideia de que alguma coisa
se mantém no objeto, ao longo de seu movimento, que é responsável por este movimento.
Sobre Plutarchos ver: EMILE MEYERSON. Identité et Réalité. 5
ª éditbn. Paris, J. Vrin, 1951,
pp. 114-119 e pp. 526-529.
v R
A força motriz é, para a dinâmica aristotélica, a causa de todos os
movimentos. Cessada a ação que ela exerce sobre o corpo em movimento, cessa o
movimento, já que "tudo que é movido deve ser movido (segundo Aristóteles) por
algo" (AR IST., Physica, 24 1
b
"... Todas as coisas [afirma Aristóteles] cujo movimento é violento
e não - natural são movidas por algo, e algo diferente delas próprias,
e todas as coisas cujo movimento é natural são movidos por algo —
tanto aquelas que são movidas por si [por exemplo os animais] como
aquelas que não são movidas por si (por exemplo as coisas leves e
pesadas, que são movidas ou por aquilo que produziu a coisa como
tal e a fez leve ou pesada, ou por aquib que liberta o que estava
impedindo ou prendendo)"
Assim, no caso do movimento natural dos objetos inanimados terres-
tres (movimento de queda livre) a força motriz é identificada com o peso (que
mede a tendência interna de um corpo pesado a mover-se para o centro do
Universo). Quanto ao movimento violento (tal como o lançamento de uma flecha
ou pedra horizontalmente ou verticalmente para cima), no início a força projetora
é identificada a F. Depois que os projéteis não estão mais em contato direto com
o motor que os lançou, para que seu movimento se mantenha, é necessário uma
força contínua em contato com eles. Aristóteles postula que
"o motor em tais casos move algo mais ao mesmo tempo, que os
que lança.. ., isto é, move também o ar, e que este ao ser movido é
também um motor"
3 .
O movimento violento é também discutido por Aristóteles no livro IV da
Physica onde ele afirma que: os projéteis são movidos adiante mesmo depois que
aquilo que deu a eles seu impulso não esteja mais os tocando, ou 1) pela razão da
2 Aristóteles. Physica, livro VII, 255b, 30-35. 3 Aristóteles. Physica, 266b, 30.
traseira e toma o lugar da flecha ou pedra, e estando então atrás ele
empurra-a adiante, o processo continua até o impetus do projétil se
exaurir, ou, 2) não é o ar empurrado à frente, mas o ar dos lados que
toma o lugar do projétil.
"Deixe-nos supor [continua Philoponus) que antiperistasis ocorre
de acordo com o primeiro método indicado acima... Sobre esta
suposição seria difícil dizer o que é (uma vez que parece na~b
haver forca contrária) que faz o ar, uma vez empurrado adiante,
mover-se de votta, isto é, ao tango dos lados da flecha, e depois
alcançar a traseira da flecha, voltando uma vez mais e
empurrando a flecha adiante. Pois, nesta teoria, o ar em questão
deve realizar três movimentos distintos: ele deve ser empurrado
para frente pela flecha, então mover-se para atrás, e finalmente
voltar e continuar para freme uma vez mais. Todavia o ar é
facilmente movido, e uma vez colocado em movimento atravessa
uma distância considerável. Como então, pode o ar, empurrado
pela flecha, deixar de mover-se na direcão do impulso impresso,
mas em lugar disso, virar, como por algum comando, e retracar
seu curso? Além disso, como pode este ar, ao virar, evitar de ser
disperso no espaço, mas colidir precisamente sobre o entalhe
final da flecha e novamente empurrar a flecha adiante e presa a
ele? Tal visão é inteiramente inacreditável e chega a ser
fantástica"
5 .
Além da explicação pela antiperistasis, Aristóteles, como vimos, apresenta
uma outra explicação para o movimento de projéteis, de acordo com a qual o ar
tendo sido empurrado, por exemplo, junto com a flecha lançada, empurra-a
adiante com um movimento mais rápido do que o movimento natural da flecha
para o seu lugar natural.
"Esta explicação [argumenta Philoponus] embora aparentemente
mais plausível, realmente não é diferente da primeira explicação
pela antiperistasis, e a seguinte refutação aplicar-se-á também à
explicação pela antiperistasis"
6 .
5 PHILOPONUS, I. Commentary on Aristotele's Physics. pp. 639.3-642.9 (Vitelli). Apud
COHEN, M.R. & DRABKIN, I.E. A Sowce Book in Greek Science. pp. 221-222.
6 PHILOPONUS, l. Commentary on Arístotele's Physics. pp. 639.3-642.9 (Vitelli). Apud
COHEN, M.R. & DRABKIN, E.A SourceBook. .. p. 222.
Esta refutação de Philoponus está baseada no fato de que se uma flecha
lançada pela força move-se, em uma direcão contrária à sua direcão natural,
empurrada pelo ar que ela tem atrás de si, então:
"seria possível sem o contato [da pedra com a mão, ou da corda do
arco com a flecha] colocar a flecha no topo de uma vara, como ela
está sobre uma linha fina, e colocar a pedra em uma situação
similar, e então, com inúmeras máquinas, pôr uma grande
quantidade de ar em movimento atrás destes corpos. Agora é
evidente que quanto maior for a quantidade de ar movido e
quanto maior for a força com que ele é movido, mais este ar
empurraria a flecha ou pedra, e mais longe ele as atiraria. Mas o
fato é que, ainda que você coloque a flecha ou pedra sobre uma
linha ou ponto completamente destituído de espessura e ponha
em movimento todo o ar detrás dos projéteis com toda força
possível, o projétil não se moveria a uma distância de um único
côvado"
7 .
Uma vez que Philoponus nega a ideia aristotélica de que o meio produz
tanto a força motriz quanto a resistência do movimento violento, fez-se
necessário encontrar outra explicação para o movimento de pro-jéteis.
Philoponus fez isso postulando uma força motriz (ou impressora) incorpórea:
"... é necessário supor que alguma força motriz incorpórea seja cedida
peb propulsor ao projétil, e que o ar, se estiver presente no
movimento, ou não contribui de forma alguma ou então muito pouco
para este movimento de projétil”
8 .
Essa força motriz incorpórea, segundo Philoponus, não é uma coisa de
natureza permanente, mas desaparece gradualmente, até mesmo no vácuo.
Esta diminuição se dá devido a uma dupla resistência: uma primeira devido ao
meio, e outra devido à tendência do corpo pesado para o seu lugar natural.
7 PHILOPONUS, l. Commentary on Aristotele's Physics. apud COHEN, M.R., & DRABKIN,
E.A Source Book... p. 223.
8 Idem, p. 217.
no vácuo são advogadas, no século XII, pelo árabe espanhol Avempace (1106-
"Philoponus e Avempace seguiram Platão ao procurarem as n ature
zás e causas reais dos fenômenos não na experiência imediata, mas
em f ato r es abstraídos pela razão a partir da experiência"
10 .
Os principais pontos em questão entre a teoria do movimento de
Aristóteles e a teoria neoplatônica defendida por Philoponus e Avempace, como
nota Crombie, foram levantados por Averrões ( 1126 - 1198), ao determinar as
principais linhas do debate presente no início do século XIII na Europa Ocidental.
Averrões se opõe à teoria do movimento de Avempace e a toda a concepção de
"natureza" na qual ela está baseada.
Contudo, a visão de Avempace foi defendida por vários escolásticos, sendo
Santo Tomás de Aquino (1225-1274) o primeiro e mais importante
11 , seguido de
Roger Bacon e Peter Olivi (a esse respeito ver: Crombie, A. C Augustine to Gatileo
II. p. 71-72).
A partir do final do século XIII e do começo do século XIV, vários
comentaristas unem-se a Aristóteles e Averrões contra Tomás de Aquino e
Avempace; iniciando-se aquele que foi um dos debates mais importantes neste
período, a saber: a discussão em torno do movimento.
"A teoria de Philoponus [afirma Crombie] foi apontada por alguns
eruditos, notadamente porOuhem, como a origem de certas concepções
medievais que foram admitidas, por sua vez, como tendo dado origem à
10 CROMBIE, A.C. Augustineto to Galileo. vol. II, p. 68.
Uma vez que a concepção de movimento no vácuo tornou-se plausível, "começou-se a pensar em
termos ideais, mais em movimentos hipoteticamente desobstruídos (embora não observáveis) do
que em movimentos diretameme observáveis, porém complicados, retardados e obstruídos pelo
meio" URITAN, R.A. Medieval Sdence, the Copemican revolulion and physics teaching.
American Journal of Physics. 42(10): 812, oct., 1974.
11 É importante notar que Tomás de Aquino aceitava os princípios essenciais da física de Aristóteles e
sua cosmologia. O principal ponto de oposição de Aquino a Aristóteles é o determinismo absoluto
deste último.
moderna concepção de inércia, que foi a base da revolução na
dinâmica do século X V I I ”
12
Porém existe certa controvérsia sobre a influência da "teoria da força
motriz incorpórea" de Philoponus sobre a "teoria da força motriz", que se
tornou amplamente aceita no século X I V e que foi posteriormente elaborada
por Jean Buridan (13007-1358) sob o nome de "teoria do impetus". Isso porque
os escritos de Philoponus sobre este tema só se tornaram conhecidos em 1535,
numa versão grega, e em 1542. Em latim — embora em 1217, Michel Scot
tenha apresentado no seu Liber Astroiiomiae uma tradução abreviada da
teoria de Avicena, que contém sua teoria da "força motriz".
"Diante da evidência disponível, Dr. Maier conclui [afirma
Crombie] que a 'teoria da força motriz' e a do impetus que a
sucedeu no século XIV, foram desenvolvidas
independentemente petas escolásticos, principalmente através
de suas discussões da causalidade instrumental na reprodução e
nos sacramentos"
13 .
Seja como for, as teses de Philoponus sobre a possibilidade do vácuo,
sobre o movimento no vácuo, e sua oposição à máxima aristotélica de que o ar
12 CROMBIE, A.C. Augustine to Galileo, vol. II, p. 66. Para uma discussão detalhada da influência da teoria de Philoponus e Avempace no futuro desenvolvimento da visão inércia l de Galiteo, que se opõe à visão anti-inercial de Aristóteles, e de algumas das ideias deste item, particularmente aquelas presentes no debate Aristóteles e Averrffes contra T. de Aquino e Avempace ver, além dos textos de Crombie e Uritan já citados: ALAIN FRANKLIN, The Principie of Inertia in the Middle Age. (Colorado: Colorado Associated University Press, 1976); ERNEST, A. Moody. Galileo and Avempace, Journal of lhe History of Ideas. 12 (1951). pp. 163-193; e EDWARD GRANT. Motion in the Void and The Principie of Inertia in the Middle Ages, his, 55 (1964) pp. 265-292.
13 CROMBIE, A.C. Augustine to Galileo, vol. II, p. 74.
Esta visão é compartilhada por M. Clavelin, que afirma: "É quase certo que Buridan não
estava familiarizado com os argumentos de Philoponus. Contudo no começo do século XIV. ..
Francisco de Marchie põe em evidência uma tese que embora não se opusesse,
completamente, à de Aristóteles, era um pressagio da de Buridan". CLAVELIN, M. The
Natural Philosophy of Galileo. Trans. A. J. Pomerans (Cambridge: The M. T. l. Press, 1974) p.
que não há um motor mas muitos. Portanto ele conclui, também, que
o movimento não é continuo mas consiste de sucessivas ou contíguas
entidades"
14
Buridan considera este método e opinião tão impossível quanto o método da
antiperistasis. Isto porque este método também não explica as experiências que
Buridan apresenta como falseadores do método da antiperistasis.
"Assim [conclui Buridan] nós podemos e devemos dizer que em uma
pedra ou em outro projétil há algo impresso que é a força motriz
(virtus motiva) daquele projétil. E isto é evidentemente melhor do que
recorrer à afirmação que o ar continua a mover aquele projétil. Pois o
ar parece mais resistir. Portanto, parece-me que deve ser dito que o
motor, ao mover um corpo móvel, imprime um certo ímpeto (impetus)
ou uma certa forca motriz (vis motiva) ao corpo móvel no qual age o
impetus] na direção para a qual o motor estava movendo o corpo
móvel, para cima ou para baixo ou lateralmente o u circularmente.
Quanto mais rapidamente o motor mover aquele corpo móvel, mais
forte será o impetus que ele lhe imprimirá. Ë por esse impetus que a
pedra é movida depois que o atirador para de movê-la. Porém esse
impetus é continuamente reduzido pela resistência do ar e pela
gravidade da pedra, que a inclina em umadireção contrária àquela à
qual o impetus estava naturalmente predisposto a movê-la. Assim o
movimento da pedra torna-se continuamente mais lento, e finalmente
esse impetus diminui tanto que a gravidade da pedra o vence e move a
pedra para baixo, para seu lugar natural “
15 .
Não fosse a ação da resistência do meio e da gravidade o impetus de Buridan
seria
"uma coisa da natureza permanente (rés nature permanentis) distinta
do movimento local no qual o projétil é movido"
16 .
14 BURIDAN, J. Questiones super Octo Physicarum Libras Aristoteus. livro VIII, questão 12,
parágrafo 2 e 3, trad. M. Clagett, The Science of Mechanics in lhe Mtidle Age (Madison, Wis.:
Unrversity of Wisconsin Press, 1959), p. 534, apud GRANT, E., ed. A Sowce Book in Medieval
Science (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1974), p. 276. 15 BURIDAN, J. Questiones super Octo Physicorum Libras Aristotelis. livro VIII, questão 12,
parágrafo 4,trad. M. Clagett, apud GRANT, E. ed.^ Source Book in Medieval Science, p. 276.
16 BURIDAN, J. Questiones super Octo Physicorum Libros Aristotelis. livro VIII, questão 12, parágrafo 9, trad. M. Clagett, The Science... p. 537, apud GRANT, E. A Source Book in Medieval ... p. 278.
Buridan caracteriza o impetus como sendo diretamente proporcional à
velocidade inicial do projétil e à quantidade de matéria contida nele, o que
aproxima sua noção do conceito newtoniano de quantidade de movimeto.
A teoria do impetus terá um papel fundamental na futura revolução
cosmológica dos séculos XVI e XVII, porque foi uma tentativa de unir os
movimentos terrestres e celestes sob o mesmo conjunto de leis. Buridan usa o
impetus para explicar tanto os movimentos terrestres como os celestes:
"Assim se poderia imaginar que é desnecessário postular inteligências
como motores dos corpos celestes uma vez que as Sagradas Escrituras
não nos informam que inteligências devem ser postuladas. Pois se
poderia dizer que quando Deus criou as esferas celestes. Ele começou
a mover cada uma delas como quis, e elas são movidas até agora pelo
impetus que Ele lhes deu pois, náb havendo resistência, o impetus nem
corrompe nem diminui"
É bem verdade que não se pode afirmar, unicamente a partir da definição
de Buridan do impetus celeste, que ele próprio pretendesse formular uma única
mecânica para todo o Universo. Porém o uso do impetus para explicar tanto o
movimento celeste como o terrestre, representa, certamente, um primeiro passo
para o rompimento da dicotomia aristotélica entre dinâmica celeste e mecânica
terrestre.
Além disso, embora a ênfase dos argumentos escolásticos em favor da
possibilidade do movimento diário da Terra fosse sobre a relatividade do
movimento, é a teoria do impetus que possibilita, a Oresme, por exemplo, supor
que a Terra em movimento seja capaz de dotar de uma propulsão interna os corpos
que a abandonam, na medida em que eles fazem parte do sistema mecânico da
rotação da Terra. Esta propulsão torna possível que tais corpos sigam o movimento
da Terra
18 .
17 BURIDAN, J. Questiones super Octo Physicorum Libros Aristotelis. livro II, questão 12,
parágrafo 7, trad. M. Clagett, apud GRANT, E. ed.,4 Source Booke m Medieval ... p. 282.
O impetus celeste é, também, discutido por Buridan no parágrafo 6, questão 12, do livro VIII.
Clagett ao comentar o impetus celeste afirma que: "A característica de permanência que Buridan
determina para o seu Impetus torna plausível para ele explicar o movimento eterno do céu pela
imposição do impetus por Deus no momento da criação do mundo ... O uso do impetus para
explicar o movimento contínuo do céu é o mais próximo que Buridan chegou da ideia inércia l da
mecânica de Newton. Dificilmente se pode duvidar que o impetus é análogo à inércia posterior,
apesar das diferenças ontológicas" (CLAGETT, M. The Sáence ofMechanics... p. 524-525).
18 Devemos notar que Buridan usa a teoria do impetus contra a possibilidade da rotação diária da
Terra. Ao discutir o problema de como uma flecha lançada verticalmente para cima cai no mesmo
retorna ao lugar a partir do qual ela foi lançada.. ." [Atrajetória real da
flecha] "será uma composição ou uma mistura de movimentos (compo-
sition ou mixtion de mouvemens) retilíneoe circular"
20 .
Marshall Clagett, comentando as análises de Buridan e Oresme com respeito
à compatibilidade de rotação diurna da Terra com os fenómenos astronômicos e a
física terrestre, afirma que:
"talvez Oresme, mais tarde, tenha compreendido que não é o ar
que causa o movimento da flecha, mas o fato de que ela é parte
do sistema mecânico da rotação da Terra, tal qual um homem que
move sua mão verticalmente para cima e para baixo em um mastro
é parte do sistema mecânico do navio"
21 .
Quanto ao fato do movimento composto da flecha não ser observado,
Oresme responde, tendo em mente suas ideias sobre a relatividade óptica do
movimento:
"Se uma pessoa estivesse sobre um navio movendo-se para Leste
muito rapidamente sem estar ciente do movimento, e se ele levasse
sua mão para baixo descrevendo uma linha reta contra o mastro do
navio, parecer-lhe-ia W lui sembleroit) para ela que sua mão está se
movendo somente com movimento retilíneo. De acordo com esta
opinião parece-nos do mesmo modo que a flecha desce e sobe em
linha reta... Em defesa desta opinião, considerem o seguinte: se um
20 A este respeito ver: ORESME, N. Lê Livre d u ciei... (1377), livro II, cap. 25.
Reprodução de P. Duhem no seu Lê systèmedu monde, vol. IX, pp. 320-333;ou trad. A. D.
Menut, editada por A. D. Menut&A. Denomy, C. S. B., (Madison, Wis: Universi-ty of
Wisconsin Press, 1968) pp. 519-539.
Oresme divide o Universo em duas partes: "uma é o Céu com a esfera do fogo e a região
superior do ar. Toda esta parte, de acordo com Aristóteles, no livro l do Me-teors [
provavelmente Meteorologica, I, 3, 340b, 10-12] move-se em um círculo ou gira a cada dia. A
outra parte do Universo está toda em repouso – que é a metade inferior da região do ar, a
água, a terra e os corpos misturados – e de acordo com Aristóteles, toda esta parte está
imóvel e não tem nenhum movimento diário” (ORESME, N. Le Livre du ciel... ed. Menut, A.
D. E Denomy, A.J., pp. 521-23). Embora Oresme aceite a divisão que imputa a Aristóteles.
Ele nega qye se possa sentir ou perceber qual das duas partes do Universo está em repouso
e qual está em movimento. Grant, analisando esta passagem particular do Livre du... afirma
que “há uma controvérsia sobre se Aristóteles, na passagem [do Meteorogica citada por
Oresme], pretendia realmente dividir o Universo tal qual Oresme apresenta”. (GRANT, E. A
Source Book...p. 504).
21 CLAGETT, M. The Science of Mechanics... p. 599, apud GRANT, E., A Source Book in Medieval Sdence. p. 503.
homem naquele navio está indo para Oeste menos rapidamente que
o navio está indo para Leste, parecer-ihe-á que está se
aproximando de Oeste, quando realmente estaria movendo-se para
Leste. Do mesmo modo, no caso apresentado acima, todo
movimento pareceria ser como se a Terra estivesse em repouso...
Eu concluo então que não se pode por toda e qualquer experiência
demonstrar que o Céu e não a Terra é movida com o movimento
diário"
22 .
Além dos argumentos observacionais contra o movimento da Terra
existem os desenvolvidos a partir da razão que derivam principalmente da
máxima aristotélica, segundo a qual, cada um dos corpos elementares só pode
ter um único movimento. No caso das coisas terrestres, este é "naturalmente"
retilíneo e para baixo, tal como é observado. Conseqüentemen-te, o
movimento de rotação axial da Terra teria que ser não-natural e, portanto, a
Terra, a fim de manter este movimento contrário à sua natureza, necessitaria,
continuamente, de um agente externo (motor) que permanecesse em contato
direto com ela. Mas, segundo Aristóteles, é impossível para uma magnitude
finita ter uma força infinita, bem como é impossível uma coisa movida por uma
magnitude finita durar um tempo infinito (a este respeito ver: ARIST., Physica.
267b, 20-25). Portanto, cessada a acão do motor, cessaria o movimento da
Terra, logo seu movimento não poderia ser eterno, dessa forma a ordem do
mundo não poderia ser eterna como é (outros detalhes ver cap 3, parte l deste
livro).
Em oposição a esta tese Oresme afirma que:
22 ORESME, N. Lê Livre du ciei et du monde. (1377). Jivro II, cap. 25, apud reprodução feita
por DUHEM, P. Lê Système du monde. vol. IX, p. 332, ou trad. A. D. Menut no: Menut,
A.&Denomy. A. J., ed. Lê Livre du ciei... p. 525.
O argumento de Oresme está baseado na sua suposição de que "o movimento local não pode ser
percebido sensivelmente a não ser tanto quanto se percebe que um corpo esteja (em
movimento) olhando-se para outro corpo" (ORESME, N. Lê Livre d u ciei... apud DUHEM, P.
Lê Système du monde. vol. IX, p. 331). Oresme, ao desenvolver este argumento, cita o livro IV
do Perspective de Witelo (71250-1275) segundo o qual só os movimentos relativos podem ser
percebidos (ver: VïteHonis Thuringopolomi Opticae libridecem, livro IV, parágrafo 110). Segundo
Grant, Witelo teria desenvolvido esta visão a partir da Óptica de Alhazen (7965-1039) (livro II,
parágrafo 49).
"à primeira vista, parece tanto contrária á razão natural como a todos
ou muitos artigos de nossa fé (contre raison naturèle comme sont
lês articles de notreFoy ou tous, ou plusieun)"
24 .
Também Buridan, depois de formular diversos argumentos em favor da
possibilidade da rotação diurna da Terra, acaba por negá-la — é bem verdade que
por razões inteiramente diferentes daquelas apontadas por seu discípulo
Oresme (ver nota 29, item 7.2).
Apesar disso, os argumentos de Buridan e de Oresme sobre a relati-
vidade do movimento utilizados a favor da possibilidade do movimento da
Terra, são bastante semelhantes àqueles que serão utilizados, em 1530, por
Copérnico. Isto pode ser evidenciado nos seguintes textos de Buridan e
Copérnico respectivamente:
"Se alguém está se movendo em um navio e imagina que está em
repouso, então, se observar outro navio, que na realidade está
em repouso, parecer-lhe-á que o outro navio se move (...). E
assim nós também pressupomos que a esfera do Sol está sempre
em repouso e a Terra carregando-nos estaria girando. Como, no
entanto, nós imaginamos que estamos em repouso, tal como o
homem localizado no navio que está se movendo rapidamente
não percebe seu próprio movimento nem o movimento do navio,
então é claro que o Sol pareceria para nós levantar-se e por-se tal
como o faz quando ele se move e nós permanecemos em repou-
so"
25 .
Copérnico no seu De Revolutionibus faz uma analogia muito parecida:
"E porque não havemos de admitir que a rotação diurna é
aparente no Céu mas real na Terra? E é assim que as coias se
passam na realidade (.. .). Na verdade, quando um navio navega
com bonança, tudo o que está fora dele parece aos navegantes
24 ORESME, N. Lê Livre du ciei et du monde, livro 11, cap. 25, apud reprodução feita por
DUHEM, P. Lê Système du monde. vol. IX, p. 341; ver também a edição de A. Menut&A.
Denomy, C. S. B., p. 538.
25 BURIDAN, J. Quaestiones super l&ris quattuor De Cacto et mundo, livro II, questão 22, p. 227. Ver também a tradução M. Clagett in Grant, E., ed.A Source Book Medieval... p. 501.
mover-se pelo reflexo daquele movimento e, por outro lado,
pensam que estão imóveis com todos os objetos junto deles".
"Naturalmente, a mesma coisa acontece com o movimento da
Terra, de maneira que todo o Universo parece rodar"
26 .
7.4 Cosmologia Medieval
Outras duas discussões faziam parte do Universo escolástico, e agiram
como pano de fundo para a revolução copernicana: o problema de grandezas
infinitas e o da existência de vários mundos.
Estas duas questões estão intimamente ligadas, uma vez que da tese
aristotélica sobre a unicidade da Terra e unicidade desse nosso Mundo,
decorre a negação da possibilidade de um espaço infinito além da esfera
celeste.
O argumento de Aristóteles é o seguinte: dado que nem há agora, nem
nunca houve, nem pode vir a haver, qualquer corpo fora do Céu, então nem há
agora, nem nunca houve, nem poderá ser formado mais de um Céu, mas este nosso
Céu é um, único e completo
27 .
"É portanto (conclui Aristóteles] evidente que também não há
lugar, nem vazio, nem tempo fora do Céu. Pois em todo lugar pode
estar presente unrucorpo, e o vazio é aquilo em que a presença de
26 COPÉRNICO, N. De Revolutionibus Orbium Coelestium. cap. VI II ,Livro Primeiro. 27 A tese aristotélica sobre a unicidade do nosso Mundo e da Terra está baseada na premissa
de que, estes vários Mundos, se existissem, "seriam similares, em natureza, ao nosso, deviam
todos ser compostos dos mesmos corpos que o nosso. Além disso cada um dos corpos, fogo,
terra e seus intermediários deviam ter o mesmo poder como em nosso Mundo... Claramente
então, um destes corpos se moverá naturalmente para longe do centro e outro para o centro, já
que o fogo deve ser idêntico ao fogo, terra com terra, e assim por diante,... Então, a
partícula de terra em outro mundo move-se naturalmente também para o nosso centro e o
fogo para a nossa circunferência. Isto, contudo é impossível, já que, se fosse verdade, a terra
devia, em seu próprio mundo, mover-se para cima, e o fogo para o centro; do mesmo modo a
terra do nosso Mundo devia mover-se naturalmente para longe do centro, quando ela move-se
para o centro de outro Universo. Isto resulta a suposta justaposição dos Mundos. Pois, ou nós
devemos nos negar a admitir a natureza idêntica dos corpos simples em vários Universos, ou
admitindo isto, devemos fazer o centro e a extremidade como sugerido, e sendo assim,
segue que não pode haver mais do que um Mundo" (ARIST. De Caelo. l, cap. 8, 276
a , 25 - 30 e
276
b , 1-20).
mundo, se existir, tendam para o centro deste (nosso) mundo, porque em
seus mundos elas formariam uma massa única, possuindo um único lugar,
e se arranjariam na ordem em cima e em baixo, como nós indicamos, tal
qual a massa dos corpos pesados deste (nosso) mundo. E estes dois
corpos ou massas sendo de um mesmo tipo, seus lugares seriam formal-
mente idênticos e semelhantes nos dois mundos"
30 .
A tendência do movimento natural, para cima ou para baixo, destes corpos,
uma vez dentro de um determinado mundo, seria governada pela natureza da
substância que os compõe.
Dessa forma, mesmo havendo 'várias Terras' (ou mundos similares à Terra)
elas não tenderiam a unir-se numa só, no centro do Universo, como previa
Aristóteles.
Quanto à discussão medieval em torno da existência de um espaço vazio
infinito além da esfera celeste, ela está presente, entre outros, nos trabalhos de
Richard de Middleton (século XIV), Thomas Bradwardine (1290-1349), Johannes
de Ripa (século XIV), Willian Ockhan (1280-1349), Oresme, Nicolau de Cusa
31 e
nos comentários jesuítas junto ao colégio de Coimbra (segunda metade do século
Segundo Oresme
"de acordo com a fé não há espaço fora do Céu, mas podemos
conceber que fora do Céu pode haver um vácuo porque Deus pode criar
um corpo ou um lugar lá. Portanto, se é perguntado o que é que é
30 ORESME, N. Lê Livre du ciei... livro l, cap. 24. Reprodução DUHEM, P. Lê Système... vol.
IX, p. 405-406 ou trad. A. Menut, editado por A. D. Menut e A. Denomy, C. S. B., p. 175. 31 Segundo Koyré, Nicolau de Cusa (1401- ?) foi o primeiro medieval a afirmar a infinitude do
Universo, porém, segundo o próprio Koyré, "suas concepções foram desdenhadas por seus
contemporâneos, e mesmo por seus sucessores, durante mais de cem anos. Ninguém, nem mesmo
Lefèvre d'Etaples, que publicou suas obras, parece ter dado muita atenção a elas". Também Copérnico
— que conhecia petos menos o tratado sobre a quadratura do círculo — parece não ter sido
influenciado por ele. De acordo com a ousada concepção cosmológica de Cusa "embora o mundo
não seja infinito, não pode porém ser concebido como finito, uma vez que não possui limites entre os
quais se confine. A Terra, por conseguinte, que não pode ser o centro, não pode carecer de todo
movimento; mas é necessário que se mova de tal modo que pudesse ser movida infinitamente
menos. Da mesma forma que a Terra não é o centro do mundo, também a esfera das estrelas
fixas não é sua circunferência" (CUSA, Nicolau. De docta ignarantia. livro II, p. 100. apud KOYRÉ,
A. From lhe closed world to the infiniie Uni-verse,, cap. l, nota 14).
vácuo fora do Céu, poder-se-ia reponder que é nada mas o próprio
Deus, o qual é Sua própria imensidade indivisível e Sua própria
eternidade como um todo e todos em um”
32 .
Copérnico, por sua vez, embora náo entrando na polémica sobre a fi-nitude
ou infinitude do Universo, afirma que o mais poderoso argumento em favor da
ideia de que o mundo é finito é o movimento, porque:
"segundo aquele axioma da Física — o infinito não pode ser
percorrido nem movido de forma alguma — o Céu (se infinito) teria
que permanecer imóvel”
33 .
Portanto, a partir do momento em que se defende a imobilidade do Céu, a
infinitude deste torna-se possível.
Copérnico continua seu raciocínio afirmando que:
"... eles diziam que fora do Céu não há corpo nem espaço vazio ou
lugar — nada, numa palavra — e assim não existe nenhuma parte para
onde o Céu possa desviar-se. Neste caso é certamente espantoso que
alguma coisa possa ser limitada pelo nada. Mas se o Céu é infinito e
apenas finito na sua cavidade interior, talvez se possa demonstrar
melhor que nada existe fora do Céu, uma vez que todas as coisas
estão dentro dele, seja qual for o espaço que ocupem, mas o Céu
permanecerá imóvel"
34 .
Tanto a discussão em torno da existência de mundos plurais, como a-quela
da existência de um espaço vazio infinito além da esfera celeste, exercerão um
importante papel dentro da revolução científica dos séculos XVI e XVII, uma vez
que elas estão ligadas a uma terceira questão que é fundamental, a saber: a lei da
inércia, já que o conceito de espaço infinito é esen-cial quando se pensa num
movimento inercial no vácuo.
32 ORESME, N. Questiones super De Caelo, apud GRANT, E. Medieval and Seventeenth Centurv Conceptions of an Infinitive Void Space Bevond the Cosmo, Isis. 60 (1969). p. 48.
33 COPÉRNICO, N. De Revolutionibus Orbium Coelestium. cap. V I I I , Livro Primeiro. 34 COPÉRNICO, N. idem.