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Contextualizar e analisar aspectos da trajetória artística e da obra musical de Mamão (Armando Aguiar), compositor popular mineiro.
Tipologia: Teses (TCC)
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Trabalho de conclusão da disciplina “A canção popular na área de Letras: interações disciplinares, crítica e criação cancional”, ministrada pela Profa. Dra. Cláudia Neiva de Matos, no curso de Doutorado. Área de concentração: Doutorado em Literatura Comparada Sub Área: Literatura Comparada Linha de pesquisa: Literatura, história e cultura
Niterói 2017
cantada. A melodia, a harmonia, o ritmo, o andamento, os arranjos, as performances de interpretação, a atmosfera “viva” que envolve a recepção são elementos essenciais ao processo cancional, intraduzíveis por um texto como este. Reconhecendo estes limites, o desafio a enfrentar é o de olhar para o universo da canção de forma atenta a todas as suas dimensões. Vamos tentar nos aproximar de um compositor popular brasileiro e dos mistérios de suas canções conduzindo a narrativa à moda de quem está numa roda de samba. Em torno de uma mesa, os instrumentos (as “peças”), as vozes, a vontade de cantar e contar histórias, um roteiro que tem um fio condutor formado de ideias, lembranças, descobertas, conexões inesperadas, lacunas não preenchidas. O ritmista dá um aperto de saudade no seu tamborim e puxa o fio da história. Cine Theatro Central, Juiz de Fora, Minas Gerais, 1972: o público que lota plateia, frisa e camarotes da casa de espetáculos aplaude de pé a cantora mineira Clara Nunes, que interpreta o samba “Tristeza pé no chão”, desde a primeira noite a canção de destaque do 5° Festival de Música Popular Brasileira de Juiz de Fora. Ao final, o júri decide alterar o regulamento e dividir o prêmio entre todas as músicas concorrentes, entre elas composições de João Nogueira, Luiz Gonzaga Jr., Eduardo Souto Neto e Geraldo Carneiro, Tavito e Zé Rodrix, Nélson Ângelo, Sá e Guarabira, Sidney Miller, Toninho Horta e Ronaldo Bastos, nomes que se destacariam, de diferentes formas, na história da música popular brasileira. O público vaiou a decisão “salomônica” dos jurados e o samba interpretado por Clara ficou para a história como uma espécie de “vencedor moral” daquele Festival^1. Clara Nunes já era uma cantora de projeção e o autor de “Tristeza pé no chão” estava dando os primeiros passos de sua trajetória artística. O sucesso nacional da canção, gravada por Clara, ainda em 1972, num compacto simples que vendeu mais de 100 mil cópias, e no ano seguinte como faixa de abertura do LP Clara Nunes^2 , é um marco no percurso que o compositor Armando Fernandes Aguiar havia começado poucos anos antes – e que também teve um festival como ambiente, quando Ellen de Lima cantou (e depois gravou) o seu samba “Adeus diferente”. É para eles, o compositor e a obra que construiu neste percurso, que voltaremos nossos olhares (e ouvidos, principalmente) nesta roda que começa agora.
“Mamão” era ainda o apelido do compositor em 1972, que depois seria adotado como seu nome artístico. Natural de Juiz de Fora, ele trabalhava como torneiro mecânico e “fazia bicos” como garçom numa boate da cidade quando sua “Tristeza pé no chão” foi selecionada para o Festival. O radialista e produtor artístico Adelzon
Bloco do Beco e com suas performances nos shows, nas praças, nos botequins) que ele interfere no seu ambiente, na sua cidade. Que ele “manda os seus recados”. Assim, examinar as escolhas temáticas que faz o compositor e o tecido poético que costura suas canções nos auxilia na identificação de seu território criativo (ou, numa linguagem mais próxima do samba, do seu “terreiro”), onde ele transita com desenvoltura a falar de suas inquietações, suas sensações, seus desejos. Ao mesmo tempo, pois que letra e música “se sobredeterminam reciprocamente, exploram mutuamente seus sentidos, transformam-se uma pela outra” (BOSCO, 2007, p. 75), há que se ouvir e tentar decifrar as soluções rítmicas e melódicas apresentadas por Mamão na costura de suas canções. Seria possível encontrar, desde “Tristeza pé no chão”, marcas temáticas, verbais e musicais que se constituam como referências de sua obra? De onde elas vem? A que “projeto” elas servem? Pois então, vamos “pegar as peças” que a roda mal começou.
estandarte, diretor. Pelas mãos do pai, este espaço sempre participou de sua vida: “desde menino que saio na Feliz Lembrança” (MEDEIROS, 1977, p. 374). Ali, conviveu com compositores e instrumentistas; assistiu à criação de canções. E, um pouco mais tarde, encontrou a porta-bandeira Nancy de Carvalho (“o grande amor da minha vida”, conforme entrevista a Luísa BARBOSA, 2005, p. 44), irmã de Djalma de Carvalho, sambista e autor de “Ai, se eu fosse feliz”, “o maior clássico popular de todos os tempos de JF” (MEDEIROS, 1977, p. 71). Lançado no carnaval de 1949, este samba é cantado até hoje nas ruas e bailes da cidade. Mamão tinha 10 anos de idade quando a sua Feliz Lembrança cantou os versos de Djalma e seus parceiros Juquita e B.O. no desfile da rua Halfeld. A letra triste, que lamentava uma desilusão amorosa, contrastava com a animação dos foliões: Ai, se fosse feliz Pra poder sorrir e cantar Beber E aquela mulher amar O destino não quis Tenho que me conformar A vida é tão boa Pra quem tem seu amor Sou a tristeza em pessoa Eu vou chorando a minha dor [...] 5 O menino Mamão estava lá no desfile. Tempos depois, quando se atreveu a escrever seus primeiros versos e suas primeiras melodias, a relação entre a alegria do carnaval e as tristezas da vida apareceriam como uma imagem forte, que viria a ser explorada em vários momentos de sua obra. Mas este é assunto para mais à frente. Vamos suspender aqui, para não atravessar o samba. E manter a cadência, mirando o garoto que teve seu primeiro emprego como alfaiate, aos 14 anos, e depois foi contratado pela Fábrica Juiz de Fora de Armamentos, onde trabalhava seu pai. Nas viagens de trem entre o centro da cidade - onde estava a escola de samba e ele realizava seus estudos na Escola Normal – e a zona norte - no bairro Benfica, onde ficava a fábrica e morava sua família - a música era companheira: “Ia pra Benfica, onde morava, pensando músicas” (MEDEIROS, 1977, p. 374). Do pensamento à ação, era preciso transpor barreiras. Não apenas as geográficas, vencidas pelo trem que ligava o subúrbio ao centro. Em entrevista aos autores do livro História Recente da Música Popular Brasileira em Juiz de Fora , publicado em 1977, Mamão, sob o impacto do sucesso recente de “Tristeza pé no chão” e usando as gírias e jargões da época, fala desta passagem:
procurar os ingredientes para melhorar sua receita e fazer a mistura mais saborosa. O chão de terra da quadra da Feliz Lembrança, a linha de montagem da fábrica de armamentos, os saraus da turma do NUME, os copos e talheres do Chanam: circulando pela diversidade dos ambientes urbanos, o compositor-garçom começa a reunir coragem para tirar o samba do forno e servir. As circunstâncias da história, aquelas que se relacionam ao “espaço amplo de circulação da canção popular”, identificado por Cláudia Matos, seriam grandes aliadas de Mamão. Juiz de Fora, a partir de 1968, começou a organizar anualmente festivais de MPB , e, já a partir do primeiro ano, além da repercussão local (teatro cheio em todas as récitas, farta cobertura da imprensa), o Festival de Juiz de Fora, como ficou conhecido, ganhou dimensão nacional: foi transmitido pela TV Excelsior para todo o país e reuniu, entre os concorrentes nomes de destaque da música brasileira, como Zé Keti, Paulinho da Viola, Guarabyra e Capinam, Roberto Menescal e Ronaldo Boscoli, Macalé e Joyce, Maurício Tapajós, Mauro Duarte e Hermínio Bello de Carvalho, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Toninho Horta e Ronaldo Bastos, Novelli, Elton Medeiros e Cacaso, Milton Nascimento, Sidney Miller (que foi o vencedor com a canção “Sem assunto”, interpretada por Cynara e Cybele). Estas condições (impacto local, participação de grandes nomes da MPB, transmissão por TV) se mantiveram nos festivais de que se seguiram, até 1973^6. Para um artista (compositor, cantor, instrumentista) de Juiz de Fora, os festivais constituíram-se numa especial oportunidade de projeção. E, além disso, uma chance de intercâmbio, de diálogos com outros artistas, de aproximar-se das estrelas da nova MPB, de fazer descobertas e amizades. Pelas características da cidade, à época com cerca de 200 mil habitantes^7 , e por toda a movimentação que proporcionava para além das récitas (ensaios, encontros em casas, botequins e praças, shows paralelos, etc.), os Festivais formavam um ambiente musical de muita informação e provocação criativa para os artistas locais. Entre eles Mamão, que relata, agora já sem os medos e a vergonha: Ninguém estava muito preocupado com o que estava acontecendo no palco, se a música foi ou não classificada ou vencedora. As madrugadas com o samba rasgado (nem dormíamos direito) foram fundamentais. Aquele lance de todo mundo mostrar samba, sem estrelismo nenhum, na boa. (MEDEIROS, 1977, p. 375) Já no segundo festival, em 1969, ele estava lá, apresentando “Adeus diferente”, samba interpretado por Ellen de Lima. A quarta colocação e, neste mesmo ano, a
gravação no LP da cantora, produzido pela gravadora Odeon, representaram uma espécie de momento inaugural de sua trajetória: “O marco realmente foi ‘Adeus Diferente’ (...) Após esta música, fiquei bastante “ouriçado” para a composição” (MEDEIROS, 1977, p. 374), relatou o compositor. E de que falava Mamão neste seu primeiro “teste” público? De samba, de carnaval. E de morte, do velório de um sambista. Quando morria um sambista Era quase uma festa Era aquela seresta Que a gente fazia Pra despedir do artista Todo morro cantava [...] 8 João é o sambista que morreu; é o João da bateria da escola de samba. Como o pai de Mamão; como ele. Mamão/João está no palco de Cine Teatro Central, casa imponente no centro da cidade, sendo ouvido e aplaudido pelo prefeito, pelos vereadores, pelos poetas do NUME, pelos freqüentadores do Chanam (aqui, acompanhados de suas esposas). Inverte-se o “processo de aculturação”. É esta plateia que está aprendendo o que se faz no morro quando morre um sambista; que está velando João; que está ao lado de Maria, que “chora num canto da sala/de lenço na mão”. E que está cantando com Mamão e Ellen de Lima o refrão em forma de lamento: [...] Morreu João O João da Maria Morreu João O João da bateria O samba de Mamão ficou à vontade no terreiro do Cine Teatro e depois no Ginásio do Sport Club, para onde o festival foi transferido para abrigar um público maior, em 1970 (voltaria ao Central, em 71 e 72, e aconteceria de novo no Ginásio em 1973). Depois de “Adeus diferente”, “Boneca Joana” (1970) e “Cadê Katarina” (1971) também foram premiadas (quarto e terceiro lugares, respectivamente), até o encontro com Clara Nunes e a explosão de “Tristeza pé no chão”, em 1972, canção que abriu esta roda – e que vai reaparecer em outros momentos. O primeiro lugar viria em 1973 com “Baianeiro”, interpretada por Nadinho da Ilha. É hora de sair do palco do Central, entrar num beco ali perto e cantar mais baixinho. Afinal, o país vivia um momento político de autoritarismo, com um governo militar ditatorial (instalado, aliás, em 1964, a partir de um golpe que partiu justamente de Juiz de Fora, quando as tropas da 4ª Região Militar, comandadas pelo General
descobre no Beco (o Bar, o Bloco, o Show) o espaço nuclear a partir do qual será espalhada a sua “rede de recados”, alimentada por seu impulso criativo e sua inquietação existencial (e sendo alimentado por ela). Ver e ouvir a “turma do beco” cantando “Beco do Balthazar” (de Mamão com os parceiros Cézar Itaborahy e João Medeiros Filho), que se tornou uma espécie de hino desse espaço e desse movimento, é vivenciar o efeito daquela “simpatia anímica” a que se refere Wisnik.
[...] Fantasia molhada, suada, de tanto sambar No estandarte, um grito de guerra: cheguei pra ganhar A tristeza sofrida, vivida, não vem desfilar Pra mostrar que os becos da vida têm saída na avenida Olha quem vem lá É a turma do beco Cantando pra não chorar Olha quem vem lá É o bloco do beco, do medo, do beco do Balthazar 10 De novo o carnaval como alegoria. Mais uma vez, a tristeza: cantar para não chorar. Só que o canto é de resistência e a tristeza, “vivida, não vem desfilar”. O desfile da “turma do beco” (e “do medo”) traz um grito de guerra; “cheguei pra ganhar” (ganhar o carnaval, ganhar a luta contra a ordem repressiva). Afinal, “os becos da vida têm saída na avenida”. Naquele caso, não apenas metaforicamente. A música foi para festival (desta vez na cidade de Volta Redonda, em 1974) e venceu; virou nome e canção de destaque de um show que ficou vinte dias em cartaz numa casa noturna de Juiz de Fora (“a maior temporada de um show local”, conforme ITABORAY, 2001, p. 58); e transformou-se em bloco, o Bloco do Beco que até hoje está na rua (os becos da vida têm saída para a avenida) na sexta-feira que antecede o carnaval. Com o bloco, Mamão dá o seu recado - os sambas são quase sempre compostos por ele, sozinho ou com parceiros - e mobiliza as pessoas a multiplicar este recado, cantando para não chorar (e para criticar quem precisa ser criticado, homenagear quem deve ser homenageado). A história do Bloco do Beco, de seus enredos e seus sambas, de sua inserção crítica na vida da cidade (e do país) é assunto que daria outra roda como esta... Mas vamos deixar para outro terreiro e retomar nosso roteiro. Elementos da vida de Mamão estão na avenida para quem quiser ver, ouvir, tentar encontrar as pistas que ele deixa espalhadas pelo chão. Abrir a roda com estas referências foi uma forma de envolver o público e apresentar elementos que retornarão em seguida, ainda mais “vivos”, quando vamos olhar para dentro das suas canções.
O passeio que fizemos, por momentos e ambientes simbólicos da experiência vivencial do compositor Mamão, oferece algumas chaves para abrir as portas de suas canções e para nos auxiliar a compreender como se forjou a sua “persona” artística. De partida, vale destacar que ela é a de um sambista: de fato, ele é essencialmente um autor de sambas, em suas diferentes possibilidades, incluindo, além do samba “tradicional”, sambas-canções, partido-alto, sambas-enredo. Em toda sua obra gravada, apenas “Baianeiro”^11 , a vencedora do Festival de 1973, definida pelos autores de História recente da Música Popular em Juiz de Fora como “uma mistura de calango com xaxado” (MEDEIROS, 1977, p. 377) não se enquadraria neste campo. Assim, embora de olho na turma que “transava MPB”, convivendo com compositores e canções dos mais diversos gêneros nos bares, nos festivais, nos meios de reprodução e difusão da canção, Mamão manteve-se fiel à inspiração original nascida da convivência de menino com os compositores das escolas-de-samba de Juiz de Fora: “o samba sempre existiu em mim” (MEDEIROS, 1977, p. 373). E, como é comum entre os sambistas, ele faz de sua experiência de mundo o leitmotiv central de suas canções. O que acontece com ele vai direto da vida para o papel como se fosse natural contar cantando o que vivencia. Ao fazê-lo, ele abre uma fonte inesgotável de assuntos que podem apresentar-se como tema. E, por consequência, revela-se a quem lhe ouve, como se fizesse confidências a um amigo, apresentando seu universo pessoal. Este sou eu; aqui estou eu; isto é o que aconteceu; isto é o que sinto. “Paulinho tanto do tanto” (Mamão) é exemplar deste desnudamento, quando relata um sonho que teve, em que “o samba pedia socorro” e descreve uma vitrine-altar, onde estão dispostas as suas referências: Sonhei Não consigo explicação O morro não era morro O samba pedia socorro E a batucada Era coisa pra contar Numa vitrine Bem forrada de veludo Em frente muita gente Ali, estava tudo Suas sandálias, que eu pintei Com as cores da Portela O apito que eu ganhei De presente na favela Na parede, embaixo do santo Paulinho da Viola Tanto do tanto
primeira escola mineira, a quarta do Brasil. Sete décadas depois, o samba juizforano faz a viagem de volta e conquista a Portela: “E agora/Está de volta a Madureira/A alegria que seduz/Osvaldo Cruz”, canta Mamão, fechando o samba – e o percurso. Para o compositor, não há porque não cantar e contar a influência do Rio sobre Juiz de Fora. Faz parte de sua história de sambista este contato, esta mistura que os festivais ajudaram a estimular. E ele voltará a referências cariocas em outros sambas, como o “O mundo de Mangueira”^14 (em parceria com Toinho) e “Apesar dos pesares” 15 (com Marcinho Itaboray). Mas, mesmo indo a Madureira (e voltando), Mamão está em Juiz de Fora. E a cidade está no seu samba, seja como elemento referencial de suas experiências de vida, seja como motivo de exaltação ou de crítica ou ironia. A cidade é o “seu” lugar, o seu endereço, que ele nos informa, como quem orienta um visitante:
Descendo o morro À direita de quem vai à feira Há um barraco Semi-novo e forrado de esteira Subindo o morro Mesmo do lado da capela Reside a morena Que eu morro de amores por ela [...] (“Endereço”, Mamão) 16 A feira, para quem desce o morro; a capela, para quem sobe, são as referências urbanas para encontrar o barraco “semi-novo” do compositor e para que ele localize a casa da morena. É onde ele está, onde ele ama. Ao jeito de quem conta um caso, o compositor quer apresentar uma “consistência de experiência ”, conforme definiu Silviano Santiago, no artigo “Meditação sobre o ofício de criar” (SANTIAGO, 2008, p. 177). Ao aproximar-se do real, do concreto, ele encontra uma forma de transmitir “veracidade” ou “autenticidade” para quem o escuta e abrir caminho para falar de si, de sua vida.
A presença da cidade auxilia Mamão no seu objetivo de “conversar” cantando, acentuando a força “dialogal” da canção, tema que vai fazer parte desta roda lá na frente. Fiquemos ainda na cidade: a afirmação de sua raiz vai se dando na medida em que ele traz estas referências para dentro de seu samba, mas fica ainda mais explícita quando ele escreve sambas com objetivo explícito de homenagear bairros da cidade que são caros à sua memória afetiva (como as as canções 17 “Orgulho de São Mateus”, com Tiê e Toinho, e “Emergente de Poço Rico”, com Toinho, Carioca, Zezé do Pandeiro e
Massud) ou quando a exaltação é feita à própria cidade. A partir do verso de Manuel Bandeira no poema “Declaração de amor”^18 , apresentando Juiz de Fora como o “primeiro sorriso de Minas Gerais” (BANDEIRA, 1986, p. 138) e brincando com o “título” de “princesa de Minas”, ele canta:
Sei que jamais Hei de esquecer este sorriso Pequeno céu, um paraíso Entre as montanhas de Minas Gerais Pelas manhãs A brisa fina da colina Cai sobre o rosto da menina A princesinha mais linda que há [...] (“Princesinha de Minas”, Mamão)^19 A cidade está nas letras das canções de Mamão para situar os seus recados e envolver o público, para ser valorizada como alvo de admiração e carinho. Mas Mamão também está em Juiz de Fora a olhar para ela de forma crítica e/ou irônica e, assim, participar da sua história. Como já foi discutido no começo da roda, o Bloco do Beco constituiu-se em espaço privilegiado para que Mamão liderasse seus componentes em discussões sobre a cidade (e o país). São muitos os carnavais em que o Beco foi às ruas para tratar de temas do momento, quase sempre desconfortáveis para a elite da cidade ou para o poder político. Só este repertório também daria uma roda à parte. Ficarei somente num exemplo que me parece especial, não apenas pelos fatos envolvidos, mas pela solução poético/crítica encontrada pelo talento do compositor. O ano era 1979 e o prefeito da cidade, Mello Reis, decidiu, por conta de obras de remodelação da avenida Rio Branco, via central da cidade, que os desfiles de carnaval não aconteceriam mais neste local. Acontece que “os becos da vida tem saída na avenida” e era preciso resistir à decisão, que contrariava os foliões e havia sido tomada sem que fossem consultados. Como fazer? Cantando. Na avenida. Mamão escreveu e o Beco levou para a Rio Branco, passando por cima das interdições e da segurança, um samba dirigido diretamente ao prefeito, que havia sido eleito pelo povo e agora voltava-lhe as costas:
Não vou dizer adeus Amanhã é você quem vai partir Quando eu lhe dei a chave da ilusão Não esperava de você ingratidão Quando Despontar um novo dia Você vai ver a distância pequena
Há diversas maneiras através das quais esta “ambivalência” se manifesta no panorama da música brasileira, não somente em relação a um “destino brasileiro” mais abstrato, mas também em expressões de um “estar-no-mundo” individual (que podem ser tornar coletivas como no carnaval). Talvez a mais visível e frequentemente identificável ocorra na combinação de uma melodia “alegre”, “otimista” – pelo seu formato, pelo ritmo, pelo andamento, pela performance interpretativa – com uma letra triste, pessimista, melancólica. Uma aparente “contradição” – que só se torna visível a quem presta atenção no “recado” da letra – e que esteve presente no desfile do Mamão menino em 1949, com os componentes da Feliz Lembrança cantando a plenos pulmões pelas ruas: “sou a tristeza em pessoa/eu vou chorando a minha dor”. Esta convivência de opostos numa mesma estrutura cancional não é característica no repertório de Mamão, podendo aparecer ocasionalmente, como no refrão de “Tristeza pé no chão”, de acordo com a performance interpretativa. Daqui a pouco voltaremos a este refrão. Neste momento desta nossa roda, o movimento pendular entre alegria e tristeza que nos interessa investigar está mais relacionado ao texto: a presença do carnaval como tema e, paradoxalmente, o uso de seus elementos como alegoria para dar conta de cantar tristezas e melancolias. Cumpre registrar que esta “estratégia narrativa” é bastante comum na canção popular brasileira, em especial no samba. A fugacidade e a ilusão da “alegria” carnavalesca oferecem muitas e atraentes opções para lamentações sobre o peso da “realidade” e a volta aos problemas da vida, depois de quarta-feira, quando “desce o pano” e “tudo se acaba”. Uma situação que Mamão também tematiza, em canções como “Avenida em três tempos”^21 , “Avenida vazia” 22 , “Água deu, água levou”^23. Mas o compositor trata do universo do carnaval, relacionando-o com os dissabores da vida, em um outro registro, que me parece mais sofisticado: ele traz a dor, a desesperança e/ou o enfrentamento da dor e da desesperança para dentro do carnaval. Para antes de quarta- feira. Cantemos de novo o sucesso do festival de 1972. Dei um aperto de saudade no meu tamborim Molhei o pano da cuíca com as minhas lágrimas Dei um tempo de espera para a marcação E cantei A minha vida na avenida sem empolgação Vai Manter a tradição Vai meu bloco, tristeza, pé no chão [ bis ]
Fiz o estandarte com as minhas mágoas Usei como destaque a tua falsidade Do nosso desacerto, eu fiz um samba enredo No velho som da minha surda dividi meus versos [ refrão ] Nas platinelas do pandeiro coloquei surdinas Fiz o último ensaio em qualquer esquina Manchei o verde-esperança da nossa bandeira Marquei o dia do desfile para quarta-feira [ refrão ] 24 O desfile do bloco com sua tristeza e seu pé no chão promove o encontro de uma desilusão pessoal com tradicionais elementos de um desfile de carnaval. O tamborim, a cuíca, a marcação, o canto, o estandarte, o destaque, o samba enredo, a surda, o pandeiro, o ensaio, a bandeira se encontram, se “encaixam”, com palavras que o senso comum não associa a eles. Que não se “encaixariam” e que, em outro contexto, soariam banais, como em qualquer canção de “dor-de-cotovelo”: saudade, lágrimas, espera, tristeza, mágoas, falsidade, desacerto. Deste encontro - uma muito improvável combinação - o compositor extrai, pelo estranhamento, um impacto textual (também “visual” e sonoro) que convida o público a “ver” estes dois conjuntos de palavras com um novo “olhar”. É o desfile de uma grande derrota pessoal. Derrota que não será cantada em sussurro no quarto escuro, mas “na avenida”. Sem empolgação, sim, mas na avenida, aos olhos do público. Um último ato. Sem festa, sem o alarido habitual: “nas platinelas do pandeiro coloquei surdinas”. Com uma derradeira e melancólica despedida: “fiz o último ensaio em qualquer esquina”. Sem a menor perspectiva futura: “manchei o verde esperança da nossa bandeira”. Na data destinada ao enterro, às cinzas: “marquei o dia do desfile para quarta-feira”. Vale observar que ele “fala” diretamente a quem lhe proporcionou esta desilusão: “a tua falsidade”; o “ nosso desacerto”, “a nossa bandeira”. Uma primeira leitura identifica este(a) interlocutor(a) como uma pessoa amada, cuja falsidade levou ao desacerto que provoca mágoas e lágrimas no narrador. O contexto da época em que o samba foi criado, no entanto, não desautorizaria uma interpretação mais sutil. A de que, a exemplo de Chico Buarque com seu “Apesar de você”^25 , o compositor estaria se dirigindo ao governo militar. Pode contribuir para apimentar esta tese a informação de que Clara Nunes havia lançado uma gravação de “Apesar de você”, em compacto simples, no início de 1971, e que Mamão escreveu “Tristeza pé no chão”, conforme ele mesmo conta, no início de 1972 (MEDEIROS, 1977, p. 375).
no chão” como nome do bloco. Depois da sua desdita, o narrador saúda o povo e pede passagem, na quarta-feira de cinzas, para a agremiação carnavalesca “Bloco Tristeza Pé no Chão”! Para quem foi criado no “Grêmio Recreativo Escola de Samba Feliz Lembrança”, nada a estranhar. O recurso de trazer a dor para dentro do carnaval vai aparecer novamente em sambas como o já comentado “Beco do Balthazar”, aquele da turma do Beco “cantando pra não chorar”: Mariazinha sorrindo, bandeira na mão Sandália pintada de prata, puxando o cordão O sonho do asfalto não rima com a sua ilusão A verdade, na vida, no verso e no coração Ou “Cordão de metal” 26 , que traz a força do verso/imagem: “É sempre o mesmo confete que detém o pranto no olhar”. E que termina com a resignação do sambista que sabe que o carnaval é parte dos seus tropeços: “Eu não sei/Se o errado sou eu/Quem inventou carnaval não fui eu”. Como se dissesse: “não tenho culpa se o carnaval aí está. Na minha vida. Para me fazer chorar”.
“Geralmente a melodia e a letra vão saindo ao mesmo tempo da cabeça, depois peço aos violonistas amigos pra ver como é que fica tocada, e se preciso, a gente acerta o tom ou coisa que o valha, ali mesmo, na hora” (MEDEIROS, 1977, p. 374). Mamão nos explica o seu processo de composição, abrindo a parte final desta roda de samba e de conversa sobre ele e sua produção cancional. Hora de cantar e falar da simbiose texto-melodia-ritmo que ele engendra, de como ele o faz e dos efeitos que promove. Vamos convocar Luiz Tatit para este nosso terreiro. No capítulo “Dicção do cancionista”, de seu livro O cancionista: composição de canções no Brasil , o pesquisador (e compositor) paulistano dedica uma seção à “inspiração” do compositor. Ele analisa o processo de resgate e tradução de uma experiência pessoal através da canção e destaca o seu poder de capturar a “singularidade da existência”, ressaltando o papel da melodia: “retratar bem uma experiência significa, para o cancionista, fisgá-la com a melodia” (TATIT, 1996, p. 19). A melodia funde-se ao texto e, juntos na forma de canção, eles constituem o discurso do cancionista, o seu “recado”. Em seguida, Tatit volta seu olhar para o instante em que “nasce” o recado. “Mas a canção sai na hora, isso que importa”, enfatiza ele, que parece ouvir Mamão a descrever sua forma de compor. Acrescenta o pesquisador: “A naturalidade, a
espontaneidade e a instantaneidade são valores preciosos ao cancionista” (TATIT, 1996, p. 20). Letra e melodia saem “ao mesmo tempo da cabeça” de Mamão. Saem para o mundo quando cantadas por ele e tão somente neste instante adquirem o status de canção. Mamão não sabe escrever música, sequer domina o ato de tocar um instrumento musical. A canção que surge de forma natural e espontânea reflete “o dom inato, o talento antiacadêmico, a habilidade pragmática”, que são “valores tipicamente atribuídos ao cancionista”, ainda conforme Tatit (TATIT, 1996, p. 17). O compositor intuitivamente percebe que reúne estes atributos: o dom, o talento, a habilidade. Mas ele quer que sua canção cumpra plenamente seu papel na “rede de recados”; quer que seja capaz de tocar o outro, em seus sentidos e suas reflexões. Para chegar lá, há que: